Escondido sob a capa do surrealismo, corrente estética em que a causalidade é desconsiderada conduzindo a consideráveis violações estruturais da história, "Kentucky Route Zero" (KRZ) constrói todo um universo de referências desconectas que obrigam o jogador a ir atrás. Nada disto é original no mundo dos jogos — basta pensar em "The Beginner's Guide", "Everybody's Gone to the Rapture", "Inside". O que é aqui claramente distinto é o uso, diria abuso, do suporte texto. KRZ é muito mais ficção interativa do que jogo de aventura gráfica. A experiência prolonga-se por cerca de 10 horas, tendo sido publicado em 5 episódios entre 2013 e 2020, o que foi permitindo análises distintas no tempo, nomeadamente porque se inicia de forma imensamente promissora, pela inovação na narrativa interativa, mas termina num limbo quase-ausente de interação.
Um dos jogos que ficará deste ano será sem dúvida “Bury me, My Love” (2017) de Florent Maurin do estúdio francês The Pixel Hunt, que já nos tinha dado o interessantíssimo jogo de gestão de crises de comunicação. É apenas uma ficção interativa baseada em mensagens, com meia-dúzia de ilustrações, no entanto com tão pouco consegue fazer muito, consegue dar a sentir, em parte, o que sentem os refugiados sírios que partem para a Europa e os seus familiares que ficam a vê-los partir. O título é baseado num ditado popular árabe, usado por quem parte, para frisar “Nem penses em morrer antes de mim”. Como referência da jogabilidade temos "Lifeline" (2016), um dos jogos sensação do ano passado.
No campo da ideia e conceito, o autor realizou um extenso e interessantíssimo post-mortem que aconselho a ler depois de jogarem. Interessou-me particularmente a inspiração para o jogo que adveio por meio de um artigo no Le Monde “Le voyage d’une migrante syrienne à travers son fil WhatsApp" que usa uma abordagem na apresentação da informação muito próxima daquilo que viria a ser o jogo. Nesse sentido, Maurin refere mesmo que recorreu depois à jornalista para encontrar pessoas reais que tivessem passado pela situação, no sentido de desenvolver um guião o mais credível possível.
"Bury me, My Love" conta a história de Nour, durante a sua fuga da Síria para a Europa, colocando-nos no lugar de Majd, o seu namorado, que fica na Síria e vai comunicando com ela por SMS.
Relativamente ao desenho de mecânicas e experiência, apesar de ser ficção interativa, Maurin não se limitou a criar uma linha de diálogo com pontos de morte ou desistência, foi desenvolvida toda uma estrutura lógica de suporte ao jogo assente em quatro grandes variáveis: Moral, Relacionamento, Orçamento e Inventário. Desta forma, cada nova vez que jogamos, ou reiniciamos o jogo, podemos passar por eventos diferentes, mas mais importante é sentirmos o evoluir da nossa relação em função das nossas escolhas, o que contribui para nos aproximar do casal, tanto de Majd como de Nour. Sobre tudo isto, o jogo (se jogado no modo normal) condiciona a jogabilidade a tempo real, ou seja, vamos interagindo com Nour à medida que ela vai progredindo no terreno, o que pode levar horas ou dias.
No campo da narrativa, consegue conduzir-nos a estabelecer uma ligação com as personagens, enfatizada pelas nossas escolhas interativas que nos vão fazendo compreender melhor quem são aqueles personagens, e porque fazem aquilo que fazem. O mais relevante de tudo para mim, acabou por ser a proximidade que se desenvolve, obrigando-nos a "abrir os olhos" e a sentir aqueles refugiados como nós mesmos, porque apesar de virem de outro continente, pouco ou nada diferem de nós, partilhando culturas tão pouco diferentes das europeias. O jogo acaba assim por funcionar como um excelente medium na comunicação das diferenças mas acima de tudo das semelhanças, fazendo mais pela compreensão dos refugiados do que muito do jornalismo que vimos ao longo destes últimos anos.
Quando se começa a jogar “Lifeline” tem-se a sensação de se ter entrado no mundo de “The Martian” e ter começado a conversar com Mark Watney por SMS. “Lifeline” estabelece uma linha de contacto, via texto, entre nós e um astronauta perdido numa lua distante, pondo-nos na posição de assistente científico, moral e guarda-costas do mesmo.
Nos últimos dois anos o género de ficção interativa (jogos em texto) não tem parado de aumentar, desde “Device 6” a “80 Days” passando pelo "The Writer Will Do Something" de que aqui falei recentemente, são muitos os artefactos que têm sido criados, mais ainda desde que foi lançada a ferramenta open-source Twine, que está também por detrás deste “Lifeline”.
A história de “Lifeline” não é propriamente inovadora, e apesar dum personagem rico peca por alguns eventos menos conseguidos, mas aquilo que a destaca das demais é a premissa interativa, o modo como a narração foi modelada para a criação de agência dramática. Ou seja, o facto de colocar o personagem ficcional numa situação de total isolamento, em que o jogador é o seu único contacto humano, colocando o âmbito ficcional do artefacto sob uma dependência do jogador extremamente credível e imersiva.
Em termos de interface podemos ficar com a ideia de que já vimos algo parecido, os chatbots, a diferença é que isto não é nenhum sistema de inteligência artificial tentando convencer-nos da sua humanidade, mas antes uma narrativa desenhada para nos convencer da existência de um espaço/tempo, convencer da ocorrência de um conjunto de eventos. O personagem com quem aqui interagimos não se limita a conversar connosco, está numa situação particular e tem objetivos que estão enredados por obstáculos, cabendo-nos oferecer apoio na sua ultrapassagem.
Deste modo temos um modelo narrativo capaz de desenvolver agência no plano existencial de cada jogador, porque no mundo ficcional em que participa continua a existir um protagonista que por sua vez se relaciona com o jogador no seu mundo real. Ou seja, o protagonista depende do jogador mas o jogador não assume o seu lugar, o que permite ao herói continuar a existir, exercendo a sua personalidade, discordando por exemplo das decisões do jogador. Assim conseguimos não apenas criar envolvimento com o mundo narrativo, mas convencer o jogador a assumir a sua participação real, não meramente projetada numa qualquer identidade, mas sendo ele mesmo.
"Lifeline" apresenta ainda um último atributo (ou defeito), em parte responsável pelo seu sucesso, que é o facto de ter sido desenhado para o Apple Watch. Assim sendo a interação com o jogo acontece fundamentalmente por via do sistema de notificação, ou seja, o facto de o jogo estabelecer o tempo como variável real, obriga a que jogador tenha de esperar pelas respostas do personagem sempre que este tem de realizar uma atividade mais demorada, como por exemplo dormir. Aqui sou obrigado a discordar da abordagem, se no Apple Watch, e enquanto factor novidade, pode ser interessante, num telemóvel e mais ainda num tablet, este atributo transforma-se num problema porque a narrativa passa a controlar o tempo do jogador, fazendo-o sentir-se aprisionado, resultando em possível frustração. Ou seja, se enquanto jogador retiro tempo para me concentrar na obra, e depois esta não me permite a participação porque está em modo stand by, não existe realismo que salve a relação (o que fez sentir-me imensamente agradecido assim que o "fast mode" foi desbloqueado).
Se quiserem saber como decorrem as reuniões de trabalho durante a produção de um videojogo AAA (embora sirva de exemplo para reuniões de trabalho em múltiplos outros contextos), recomendo vivamente que experienciem a ficção interativa "The Writer Will Do Something" (2015).
"The year is 2012. You are the lead writer for the third game in the wildly popular ShatterGate™ franchise. Expectations are through the roof: fans of the series are waiting for the biggest, most bad-ass entry in the series yet, and your publisher is expecting the best-selling title in its history. But the game's development hasn't gone as smoothly as planned. One morning, just a couple months before E3 and six months before ship, an emergency meeting is called..."
É um artefacto simples, mais focado no relato do que na participação do leitor, ou seja os aspectos de agência são um tanto descurados, e se podemos por vezes sentir que somos ouvidos, nas poucas vezes que somos chamados a decidir, o efeito sobre o progresso narrativo é reduzido. Ainda assim, vale pelo conteúdo do relato, pelo modo como dá conta do vazio de que são feitas tantas reuniões de alto-nível, quando não se sabe propriamente o que se está a tentar fazer, porque já tudo saiu do controlo dos envolvidos.
Talvez, e aqui já sou eu em regime de interpretação do artefacto, os autores tenham desejado fazer-nos sentir alguma da importância do escritor nestas reuniões, do modo como não é ouvido, como procura a maior parte do tempo responder afirmativamente aos desejos de cada um dos responsáveis, para no final se ver como bode expiatório. Não sei se foi pensado assim, mas se o foi, é de génio, já que é isto que acabo por sentir no final por falta de mais agência.
Criado no Twine por Tom Bissel e Matthew S. Burns, ambos com experiência de escrita e produção em vários jogos AAA. Já aqui referenciei váriasvezes Bissel, mais recentemente a propósito do seu livro "Extra Lives". Para quem não sabe o que é o Twine, é uma ferramenta open-source de criação rápida de ficção interativa, altamente recomendada para todos os que desejam iniciar-se na exploração da escrita interativa.