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agosto 28, 2019

A Máquina por Levi

Tenho pouco a acrescentar às imensas leituras que já foram feitas de “Se Isto é um Homem” (1947). Já Primo Levi, e Viktor Frankl em “Em Busca de Sentido” (1946), diziam ambos nada terem para acrescentar ao horror já conhecido dos campos de extermínio Nazi, mas isso não era verdade. As suas palavras foram importantes, e tenderão a ser cada vez mais importantes. À medida que vamos avançando no tempo, a tendência será para esquecer, como se vai vendo (ex. relato de viagem à Polónia de um grupo de judeus americanos em 2017). Estas obras devem figurar como leitura obrigatória, nem que seja parcial, nas escolas de toda a Europa.


Frankl e Levi escreveram as primeiras memórias publicadas de Auschwitz, com tons totalmente diferentes. Não por um ser austríaco e outro italiano, mas por um ser psicólogo e o outro engenheiro químico. O modo como olham o mundo, os detalhes em que se fixam, que analisam e escolhem discutir vai de encontro aos modos epistemológicos com que avaliam o real. Frankl, é só humano, só emoção e sentimento, tentativa de compreender a si e aos outros. Levi, é só estrutura, só análise e detalhe, tentativa de dar conta do funcionamento do sistema que regulava os campos internamente. Diferentes, mas imensamente relevantes, porque se complementam completamente.

Já li e vi muita coisa sobre os campos de concentração, mas ao ler Levi, percebi que ainda não tinha compreendido nada sobre a realidade dos campos de concentração Nazi, e mesmo sobre a governação Nazi. Pode parecer fastidioso o detalhe apresentado — sobre as regras, os hábitos, rotinas, afazeres, limitações, diferenças, imposições, condições, repetições, esperas, etc. — mas é esse mesmo detalhe que nos faz entrar pelo campo adentro e vê-lo, senti-lo como ele foi. Não porque me interesse senti-lo, mas porque esta descrição de Levi me mostra de forma efetiva a “Máquina” e o “Método” alemães. Neste registo não se fala dos fornos, nem das câmaras de gás, fala-se do funcionamento específico de um campo de concentração, do seu dia-a-dia, das divisórias sociais internas e da organização sistemática de tudo.

Aquilo que distingue o Holocausto de outros genocídios é o método. Nunca antes, nem depois, o ser humano construiu uma tal “máquina” de matar, e isso só foi possível pela força do método imposto ao estado, governo e militares. A ideia de raça pura e perfeita terá servido para conduzir os governantes alemães à obsessão com o método, tudo em busca da organização perfeita, impermeável a falhas, impermeável ao acaso e ao orgânico. Tudo era controlado, tudo era repetidamente controlado, para que nada falhasse. A organização era feita por humanos, mas de humano nada existia ali, apenas máquina, apenas sistema salvaguardado com redundância para eliminar o erro. Perfeitamente implementado, uma transposição perfeita do papel para o terreno. Insanamente perfeita.

Existia ainda um outro factor, responsável pela elevação da “máquina” a níveis de matança inauditos, o Ódio. Levi disse mais tarde, quando compararam a sua obra com o “Arquipélago Gulag” de Solzhenitsyn, que este se diferenciava do Lager de Auschwitz pela percentagem de mortos, 30% contra 90-98%. Esta diferença deve à máquina montada, sem dúvida, mas essa precisava de ser alimentada para chegar a estas percentagens, e a única forma de o fazer foi pelo ódio. Era preciso manter todos os envolvidos na estrutura motivados, com objetivos claros e concretos, com sensação de progresso e de contributo para o bem dos seus. Para tal todas as diferenças fisiológicas e culturais foram usadas como armas de lavagem cerebral — pelo cinema, jornais, livros, panfletos, às mãos de um dos mais maquiavélicos Ministros da Propaganda de sempre, Goebbels — para gerar o mais profundo Ódio aos judeus. Criou-se na mente dos militares e cidadãos a visão de estarem acima na escala social, e de os outros nem sequer pertencerem a tal escala. Por isso, havia um trabalho a fazer, e cada um precisava de dar o seu melhor para o levar até ao Final...

junho 21, 2018

A brecha na democracia dos EUA

A Fox News tornou-se no maior braço armado da Propaganda Trump, muito mais relevante que Fake News russas nas redes sociais, mais relevante até do que o apoio do próprio Partido Republicano. Tudo graças à imensamente hábil abordagem criada por Rupert Murdoch, senhor do tabloidismo, que vindo de trás se consolidou enormemente neste último ano.


O que temos então é um canal de televisão que se dá à estampa como Noticioso, Fox News, mas que na verdade não notícia, apenas cria entretenimento noticioso. Ao fazê-lo liberta-se das obrigações de factualidade para poder ficcionar de modo criativo. O principal efeito desta abordagem é a criação de um mundo alternativo, no qual os seus espetadores são completamente enredados, atirados para um limbo factual.

Ao longo dos últimos dois anos a Fox News dispensou os menos imaginativos e contratou as estrelas das redes sociais que apoiaram Trump à presidência, deste modo intensificou o seu poder ficcional, aumentando simultaneamente a credibilidade da realidade alternativa por via da união de vozes num mesmo coro, criando coerência e sentimento de grupo. A etiqueta de Notícias que deveria garantir factualidade e contraditório de perspectivas, não o garante, mantendo assim uma identidade apenas aparentemente noticiosa. O problema é que este modo quando usado para fins políticos é tenebroso pois arrisca-se a confinar totalmente os cidadãos. Não é por acaso que se criou todo um código de ética e deontologia no jornalismo.

Acresce a tudo isto o sobrenome Fox. Estamos a falar de um império secular de imaginário americano. Quem nos EUA duvida de algo com que cresceu e aprendeu a amar de todas as vezes que entrou no cinema e ouviu o ribombar e as luzes incidirem sobre as letras 20th Century Fox? Por mais alertas que criemos, é difícil acreditar que quem tanto nos fez sonhar, queira o nosso mal, impossível. E aqui podemos apontar o dedo a Hollywood que hipocritamente tem continuado a viver por conta do império da Fox, sem nunca ousar mexer-se para exigir mais. É fácil falar mal contra Trump, mas colocar a dignidade acima do dinheiro é bastante mais exigente.

Tudo isto se exponenciou com o facto da Fox News ter no poder alguém igual a si. Ou seja, alguém que aceita o modelo e o defende. Ou seja, se tivéssemos apenas a Fox News sozinha, seria mau mas sustentável, mas ter a Fox News apoiada por quem governa, abriu uma brecha estrondosa na democracia americana. A ficção criada por uns é suportada pelos outros num ciclo contínuo de apoio mútuo que impede os cidadãos de ver a realidade por si mesmos. Não é possível ao cidadão médio americano aceitar que Trump mente quando um canal noticioso visto por milhões de pessoas que se unem por interesses comuns, defende e sustenta a mentira com argumentos, ainda que ficcionais, e ainda por cima aponta baterias contra os restantes meios noticiosos, apelidando esses sim de mentirosos. Não é um canal de televisão que aponta o dedo, nem é um governo que aponta o dedo, é a união entre dois elementos que deveriam avaliar-se e escrutinar-se continuamente que gera uma espécie de buraco negro no qual a realidade é regulada por regras próprias.


A Fox News não é o Breitbart, é muito mais perigoso, porque menos extremista, com muito maior cobertura nacional, acesso direto a toda elite económica, financeira e política. Isto deixou de ser um debate direita/esquerda, agora é apenas o "nós" contra "eles" que serviu para criar uma arena no qual se defenderão até às últimas consequências os territórios conquistados. Os EUA estão metidos numa camisa de forças e sair dela não vai ser nada fácil, pelo menos sem que algo de muito grave aconteça pelo meio.

outubro 15, 2016

"Vozes de Chernobyl" (1997/2013)

Fez em abril 30 anos o acidente de Chernobyl, um acontecimento trágico da nossa história recente, com ramificações dramáticas em múltiplas frentes, nomeadamente na relação entre o homem e a Terra que nos obriga a refletir sobre o conhecimento que andamos a criar. A tragédia arrepia tanto como fascina, pela nossa incapacidade de lidar com o resultado desse conhecimento, exercendo simultaneamente uma atração por um desconhecido imensamente poderoso, como se miticamente, tivéssemos despertado um Deus da Matéria que contra nós se virou. É sobre isto que Svetlana Alexievich escreve, usando para tal todo um estilo literário muito pessoal, humano, intenso e único.

"Do Deus da ciência e do conhecimento, ou do Deus do Fogo? Neste sentido, Chernobyl ultrapassou Auschwitz e Kolymá. Ultrapassou o Holocausto. Chernobyl sugere finitude. Vai de encontro ao nada.” (p.53)
Em 1986 compreendia pouco do mundo que me rodeava, mas o impacto do acidente chegou-me, mais histórias e mitos do que factos e informação, o que serviu para criar todo um imaginário que nunca deixou de se ampliar com os anos, com a queda do Muro e o jornalismo, com a banda desenhada, o cinema, e depois a internet. Nos anos mais recentes começaram a chegar imagens da Zona, dando conta do abandono e da retoma do espaço pela natureza, e ao mesmo tempo de um fascínio que continua intacto.

"Hotel Polissia" de Quintin Lake2007, Pripyat, Ucrânia

As Vozes de Chernobyl” foi publicado pela primeira vez em 1997, como fruto de 10 anos de entrevistas, tendo sido revisto e atualizado em 2013, podendo assim encontrar-se na versão atual menções a eventos recentes da história humana, contudo a generalidade dos relatos situam-se nessa janela temporal que medeia a primeira década após o acidente. À semelhança de outras obras da autora o registo resulta de entrevistas a centenas de pessoas reais, compostas num todo encadeado que dá corpo a um estilo descrito como polifónico, principal responsável pelo prémio nobel atribuído em 2015.

Quero contudo dizer que apesar de apresentado como não-ficcional, e de se enfatizar o  jornalismo como profissão da autora, a obra deve pouco a esses registos, essencialmente porque não se coíbe perante a falta de prova ou contraditório, não buscando nunca o mero ato informativo. É verdade que a obra de Alexievich brota do real, mas que obras não brotam, existirá outro espaço de onde alguma criação humana possa emergir além do real? São pessoas reais que falam, mas não são máquinas de registo de verdade, são seres criadores de mitos e histórias, por sua vez filtrados pela autora do texto.

O facto das entrevistas serem realizadas com pessoas reais, não torna o texto de Alexievich mais não-ficcional, já que ele se apresenta filtrado de modo assumidamente autoral. O exemplo fotográfico acima dá bem conta do poder significativo da filtragem do real.

Porque a técnica de Alexievich, que dá forma ao seu estilo polifónico, não se limita à filtragem ou escolha dos melhores relatos, não se podendo falar de mera curadoria. O trabalho resulta antes de todo um processo criativo que recorre às entrevistas como material base para a criação do texto final. Das 500 pessoas entrevistadas, a autora selecionou cerca de uma centena, que por sua vez entrevistou mais de vinte vezes, resultando cada pessoa numa “voz”, que se faz representar num bloco de mais de 100 páginas. Alexievich refere em entrevista, no prefácio, que era “como pintar um retrato. Continuava a contactar as pessoas, e de cada vez acrescentava uma nova pincelada.” Estas “vozes” formam assim as unidades de trabalho de Alexievich, que podem funcionar como as tintas do pintor mas que são muito mais densas do ponto de vista humano, contribuindo diretamente para o traço autoral do trabalho.

Aliás, e apesar da obra de Alexievich ter mais de 30 anos, o seu reconhecimento agora, é imensamente representativo da época em que vivemos, do momento em que finalmente aprendemos a reconhecer o valor do remix na cultura humana, em que compreendemos como a criatividade não existe sem esse mesmo processo de remix, já que não pode surgir do vazio. Sempre o soubemos, mas foi necessário o surgimento das tecnologias criativas e de comunicação, e de toda uma geração capaz de criar e recriar obras completas com recurso a uma mera conexão à internet, para que nos questionássemos sobre leis que tínhamos criado no passado (ex. copyright) que impedem exatamente todo esse processo criativo profundamente humano.

E também, porque somos tapeçaria, somos coletivo, somos fruto de gerações e gerações que nos precederam, e da que nos rodeia em cada momento, é por isso que a obra de Alexievich nos fala tanto. Porque não é apenas ela, o indivíduo que fala, mas como disse antes, as suas unidades de trabalho, as "vozes", dão-lhe toda uma força, não apenas por estarem ali, mas porque ela soube tão bem, por meio delas, reconstituir o espaço por meio do tempo, e assim criar uma história.

Em termos de experiência, recomendo uma contemplação faseada, já que a tapeçaria de vozes apresentada por Alexievich é intensamente dolorosa. Enquanto lia, acabei descrevendo o que sentia como "murros no estômago, uns atrás dos outros". O livro reflete uma realidade passada na Bielorússia, um país pequeno e distante, do qual pouco conhecemos, mas é daí que vem o filme mais doloroso que alguma vi, "Come and See" (1985) de Elem Klimov, que apresenta uma reflexão sobre uma tragédia anterior noa país, a ocupação Nazi. Os entrevistados de Chernobyl comparam amiúde os dois eventos, e um deles chega mesmo a falar da impressão forte deste filme (p.267) para definir o que sente face a tudo o que vive.


Neste sentido, preciso de aprofundar e referir que apesar de aqui desmontar o trabalho de Alexievich em termos da sua ficcionalidade, de o apresentar enquanto obra que vai para além do mero rótulo de não-ficcional, essencialmente por apresentar uma visão pessoal do mundo, existe nesta, tal como acontece no filme de Klimov, uma subliminaridade de verdade, um traço de fundo que a todo o momento clama, dizendo, 'estas pessoas são reais', 'o seu sofrimento aconteceu'.

Por outro lado, à medida que vamos adentrando no livro uma certa capa de insensibilização vai-se formando em nós, como que para nos proteger dos choques seguintes, ainda assim a construção narrativa funcionando em crescendo nunca nos dá verdadeiro descanso, o que por outro lado acaba contribuindo imenso para a manutenção do interesse na leitura. Num trabalho desenhado a partir de tantas vozes sobre um mesmo assunto, seria expectável alguma redundância e sensação de repetição, contudo isso nunca chega a acontecer, o que dá bem conta do trabalho em detalhe realizado pela escritora, e do modo como manipula as vozes para construir a sua própria visão narrativa do tema.
"Bétulas leves... Abetos pesados... Não vou voltar a ver nada disto? Prolongar a vida por mais um segundo, mais um minuto! Para que passei tanto tempo, horas, dias, em frente da televisão, entre pilhas de jornais? O mais importante é a vida e a morte. Nada mais existe. Não dá para os pôr nos pratos de uma balança... Percebi que só o tempo vivo tem um sentido... O nosso tempo vivo..." (p.250)
Ler "Vozes de Chernobyl" é importante porque ajuda a compreender Chernobyl, mas não só, ajuda a compreender o ser-humano, o modo como funcionamos individualmente e em colectivo, dando conta da resistência humana, tanto no campo biológico como cognitivo. Em certa medida até apazigua, porque atira alguns mitos de Chernobyl borda-fora, embora o faça à conta de evidenciar a relação perversa entre políticos, cientistas e o povo. Do mesmo modo lança luz sobre a manipulação de informação dos estados comunistas, e como isso contribuiu para o fim desses mesmos estados, o que não nos descansará muito se pensarmos no quão pouco tudo o que aqui se descreve, sobre essa manipulação, se diferencia daquilo que os estados capitalistas hoje fazem (ex. Edward Snowden).


Nota final: sobre o filme “Voices from Chernobyl” (2016) de Pol Cruchten, baseado neste livro, que tem tido boa recepção da crítica, mas que eu, apesar de apenas ter só visto o trailer, não tenho intenção de ver. Como disse acima, estamos perante uma obra profundamente autoral, criadora de profundas impressões em nós, e se até gostei visualmente do trailer, pouco ou nada o consegui relacionar com a minha experiência pessoal da leitura do livro, que prefiro preservar.