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dezembro 23, 2019

O tio e a génese da arte de Regina Pessoa

Regina Pessoa fez apenas 4 filmes em 20 anos — “A Noite”, 1999; “História Trágica com Final Feliz”, 2005; “Kali, o Pequeno Vampiro”, 2012 e “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”, 2019 — mas foram suficientes para criar uma identidade autoral no cinema de animação internacional. Poucos segundos de visionamento de qualquer um destes quatro filmes atira-nos imediatamente para o universo cultural e estético de Regina Pessoa. Muitos passam toda uma vida à procura dessa identidade sem nunca a encontrar enquanto a Regina o parece ter conseguido logo no seu primeiro filme. Sendo algo impressionante, o questionamento sobre o seu processo criativo tem sido uma constante e a Regina não se tem furtado ao mesmo. Contudo, como acontece com os grandes criadores, a melhor forma de responder surge quase sempre pela mão da sua preferência expressiva, ou seja, do meio expressivo de eleição, e é isso que acaba tornando este seu último filme “Tio Tomás, a contabilidade dos dias” tão relevante, e talvez o mais importante de todos.
O principal marcador da identidade de Regina Pessoa reside na sua técnica de animação. Criada inicialmente a partir da gravura em placas de gesso, oferece-lhe um movimento texturado (traços de linhas que preenchem as formas e se movimentam) muito singular. Colado a esse movimento visual surge depois a particularidade do seu design de personagens que recorre a uma fusão entre o geométrico e o orgânico da texturização que lhe garantem uma particular estranheza, algo que se tem acentuado com o evoluir do seu design de personagens. Por fim, e ainda no campo visual, temos o domínio da luz que é utilizada para acentuar as texturas mas especialmente para a produção de sombras e sua elevação a elementos centrais do cenário. Todo este enquadramento visual vai além da mera identidade visual, serve uma função comunicativa que é denotada pela particularidade das histórias contadas, mas essencialmente pelos motivos narrativos escolhidos e pelo tom dos mesmos. Ou seja, o universo ficcional dos filmes da Regina Pessoa circula à volta de personagens destacados da normalidade, não porque o desejam, mas porque a isso são votados pela sociedade, funcionando as suas histórias como modos de verbalização do interior desses personagens. Por isso a componente visual acaba sendo tão relevante, já que é ela a principal responsável por dar conta do tom do sentir dos seus personagens. No fundo, estamos a falar de uma abordagem profundamente expressionista, que se destacou no cinema alemão dos anos 30 (séc. XX) e que nos diz que o cinema da Regina é um cinema profundamente sensorial.
Personagens dos 4 filmes de Regina Pessoa, da esquerda para a direita: “A Noite”; “História Trágica com Final Feliz”; “Kali, o Pequeno Vampiro”; “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”

Neste sentido, podemos dizer que o seu último filme, “Uncle Thomas, Accounting for the Days”, aprimora toda a sua linguagem, todos os elementos se elevam tecnicamente, acabando por abrir novas direções, mas sem perder as raízes e funções estéticas da sua identidade. Por outro lado, o tema escolhido, que para mim vai muito além do tio especial porque dá conta da génese do próprio processo criativo, acaba por exponenciar ainda mais toda a componente afetiva da obra. Quando surgem os últimos quadros e reconhecemos o cabelo da autora nos traços da sombra animada, é impossível não sentir um toque, quase um arrepio, pela profunda conexão estabelecida com a autora. Diga-se que por Regina fazer um cinema muito expressivo pode para uma boa parte dos espetadores não ocorrer uma relação imediata, nomeadamente se se detiverem na busca de lógicas explicativas dos personagens ou se estiverem à espera de twists narrativos muito conclusivos. Se não conhecerem a obra da Regina e sentirem essa distância, aconselho um segundo e um terceiro visionamentos para poderem entrar dentro do universo e começarem a sentir o pulsar do texto animado.
O filme foi entretanto disponibilizado na rede, pela NFB (ver abaixo), para poder ser visto por todos, enquanto aguardamos que se confirme a nomeação do filme para o Óscar de Melhor Curta de Animação 2019. É a segunda vez que a Regina está na shortlist (seleção de 10 filmes), a primeira foi com "História Trágica com Final Feliz”, esperemos que desta vez a Academia saiba reconhecer o seu trabalho. Não que seja necessário, os seus filmes foram todos amplamente premiados nos mais importantes festivais internacionais da arte de animação, mas não deixa de ser merecido.



Algumas referências 
O Expressionismo Animado na Obra de Regina Pessoa. (2013). Eliane Muniz Gordeeff
Uncle Thomas: Accounting For the Days by Regina Pessoa. (2019). by Olga Bobrowska
Regina Pessoa and Autobiographical Animation (2019). Marie Mello

setembro 20, 2014

"Blankets", uma novela gráfica

Blankets” (2003) deixou-me profundamente emocionado. Craig Thompson fez do meio escolhido, banda desenhada a preto e branco, o seu meio natural expressivo, conseguindo por meio deste, chegar até nós com uma força impressionante. Aquilo que podemos experienciar em “Blankets” é algo raro, poucos trabalhos o conseguem, não só através deste meio, como através de qualquer outro. Thompson constrói um trabalho de grande detalhe - narrativo, dramático, visual e literário - dando-se por completo, colocando-se a si próprio nesse detalhes, impregnando-o de humanidade, de sentimento e racionalidade. “Blankets” é uma porta aberta para o interior de Thompson, porque é uma extensão visceral da sua imaginação, da sua consciência, do seu ser.


A essência do envolvimento narrativo define-se pelas suas capacidades dramáticas que por sua vez se definem no desenvolvimento dos seus personagens. Neste trabalho Raina e Craig são adolescentes em busca de si, que por meio de uma relação crescem e aprendem a lidar com o mundo e consigo próprios. Thompson criou não apenas duas personagens profundamente críveis, como profundamente humanas.

Craig e Raina

Não posso dizer que do ponto de vista narrativo ou dramático seja algo nunca feito, a literatura e o cinema são frutíferos neste domínio. Mas cada meio, por meio das suas próprias particularidades expressivas, enfatiza naturalmente diferentes substâncias. Neste caso o facto de “Blankets” ser uma novela gráfica cria, para além da surpresa de tratar um universo raro no meio, um acesso novo à experiência estética do que se quer dizer. Ou seja, o portal que a arte nos abre para compreender o sentir do autor, apresenta por meio da novela gráfica, dimensões que não estão ao alcance da literatura ou cinema. E é por isso que “Blankets”, para além de emocionante, é tão relevante.


Informações
Editora: Top Shelf Productions
Data: 2003
Páginas: 592
Prémios: Harvey Awards (2004) para "Best Graphic Album of Original Work", "Best Artist" e "Best Cartoonist"; Eisner Award para "Best Graphic Album" (2004), entre outros.

maio 03, 2014

“Papo & Yo” (2012)

A última parte de “Papo & Yo” deixou-me com um nó no estômago. Já tinha jogado quando saiu, mas não tinha terminado. Conhecia bem a história, tinha lido várias análises ao jogo e entrevistas com o criador, Vander Caballero, sabia que esta era a sua história pessoal. Ou seja, não foi a história em si que me bateu, foi o videojogo que me levou a estas emoções fortes, que perto do final estabeleceu uma ligação entre mim, Quico, a sua namorada e o seu pai. No final o videojogo conseguiu fazer-me sentir toda a ambivalência emocional que sente Quico na resolução do dilema, ajudar o seu pai ou desistir e conduzi-lo à destruição...


“Papo & Yo é sobre mim e sobre meu pai, um homem bom, mas também um mal. Como muitos, ele usou álcool e drogas para lidar com uma vida difícil, e eu fui pego no meio dele. O núcleo emocional do jogo é basicamente uma fábula sobre o meu relacionamento com meu pai.” Vander Caballero
Para produzir uma experiência com este alcance, “Papo & Yo” teve de desenvolver um conjunto de metáforas que se encarregaram de traduzir as acções, mas também os personagens e os sentimentos desta história melancólica. A meio do jogo as mecânicas começam a descolar da história, o seu carácter padronizado ainda que sempre muito bem contextualizado com imaginário perde-nos, mas mais perto do final tudo volta a encaixar-se. A duração da obra dá-nos tempo para reflectir sobre a relação que vamos vivendo com aquele Monstro. Quando chega a altura de tomar uma decisão sobre o futuro da relação, a fasquia emocional é colocada bem lá em cima por Caballero, mas posso dizer que é superada de forma magistral. Muito contribui para esta superação, a música e o bom controle da atmosfera do jogo, mas acima de tudo o conhecimento da linguagem de interatividade, o saber colocar o jogador no lugar de actor, levando-o a tomar partido, a querer agir.

"Papo & Yo" mostra como se podem discutir assuntos complexos e profundamente humanos, através de um videojogo. Como é possível usar a interactividade de modo expressivo, lançando os jogadores na indagação e questionamento, não apenas sobre aquilo que se presencia, mas sobre aquilo que se faz. Porque apesar do videojogo me ter conduzido a fazer, de forma linear, senti que o fazia, sinto que o fiz, porque o jogo me ajudou a tomar a decisão antes. Ou seja, no final estou com Quico, e quero fazer o que tem de ser feito...

março 26, 2013

o poder do óleo na animação

Nightingales in December (2012) é a mais recente animação de Theodore Ushev, que já passou pelo Cinanima e pela Monstra do ano passado. Nightingales in December baseia a sua estética numa espécie de "expressionismo alemão" animado, suportado pela força expressiva da pintura a óleo. Theodore Ushev é ilustrador, designer gráfico, artista multimédia e cineasta, nasceu na Bulgária, e está radicado no Canada desde 1999, onde trabalha desde então para o NFB e onde criou alguns dos seus trabalhos de cinema de animação mais premiados.




Esta técnica de criar a animação a partir do movimento de pinturas rápidas, sobrescurecidas e que por vezes se assemelha a algum rotoscoping, é algo que já vem de trás, do seu filme anterior Lipsett Diaries (2010), um filme que ganhou também imensos prémios, e que pode ser visto no site da NFB, mediante pagamento. Sobre esta técnica Ushev diz-nos em entrevista,
"a razão pela qual fiz o meu filme com pintura, foi porque envolvendo cada frame num expressionismo estrito, seria a melhor forma de expressar as suas emoções." [fonte]
E é exactamente isso que podemos sentir neste Nightingales in December (2012), uma força emocional tremenda emanada das imagens que se sucedem, que se movem e entrecortam ao ritmo da música de Spencer Krug e seguem no desvelamento da sinopse escrita pelo autor,
"This metaphorical surrealist tale is an allusion. Nightingales in December is a trip into the memories, and the fields of the current realities. What if the Nightingales were working, instead of singing and going south? Is the innocence the only savior of birds songs? There are no Nightingales in December... What is left, is only the history of our beginning, and our end."
Nightingales in December (2012) de Theodore Ushev

setembro 18, 2011

momentos de transição em NY & Paris

A realizadora Sarah Klein e o director de fotografia Tom Mason, ambos da Redglass Pictures, deram corpo a um conceito de Jennifer McClory que consiste em filmar os momentos que antecedem a saída das estações de metro, o momento em que os nossos olhos se afastam da escuridão dos túneis e enfrentam a cidade banhada de luz.


Foram feitos até ao momento dois episódios, um sobre Paris e o outro sobre Nova Iorque. Os filmes apresentam uma qualidada fotográfica muito cuidada, com os momentos a serem apresentados em câmara lenta e acompanhados por uma música calma que nos transporta, nos faz viajar mentalmente.


São pequenos filmes de dois minutos, que se podem ver e sorver num momento de pausa para relaxar e escapar dos afazeres do momento.


Sub City New York (2011)


Sub City Paris (2011)

janeiro 06, 2011

uma beleza graciosa

Uma criativa de Nova Iorque, Charlex, resolveu desafiar os seus trabalhadores para produzirem o trabalho que desejassem, para assim poder servir de cartão de visita da empresa. O director da empresa Alex Weil diz que,
"Our original intent was simply to have an unfettered creative outlet for the many talented people that are part of our company".
A designer, Diana Park, criadora do desenho original do trabalho diz que a sua inspiração se baseou em,
"crafting the image of a machine creating nature. Usually it's the other way around, but conceptually and aesthetically, I thought it would be fun and challenging to mix the two."
O trabalho criado, "ShapeShifter", é um objecto de excelência do design gráfico, mas não só. Existe toda uma capacidade de fazer fluir narrativamente o grafismo, de lhe atribuir progressão, e levar o espectador. Depois o cuidado colocado na criação de "ShapeShifter" vai ao pormenor de ter como narrador o actor Gabriel Byrne, que eleva o tom de toda a obra, sustentado num fabuloso texto, "Dreams" de Fitzgerald Scott e ainda ancorado por uma banda sonora do compositor Peter Lauridsen.



Créditos
Director: Alex Weil
Narrated by: Gabriel Byrne
Co-Director and Designer: Diana Park
3D Lead/Animation: Adam Burke
Animation Development/Animation: John Karian
Lead Compositing Artist: Jesse Newman
Executive Producer: Chris Byrnes
Producer: Reece Ewing
CG Supervisor: Keith McCabe, Myung Lee
Lead Lighter: Salar Saleh
Character Technical Director: Steve Mann
Lead Modeler: Alex Cheparev
Lighting/Texturing: Mike Marsek, James Fisher, John Cook, Frank Grecco, Cesar Kuriyama, Keith McMenamy, Anthony Patti, Tom Cushwa, Jina Lee, Jeff Chavez
Matte Painting: Jina Lee
Modeling: Hung Kit Ma, Han-Chin Lee, Anthony Patti
Animation: John Wilson, Sam Crees, Jay Randall, Carlos Sandoval, Andrei Savu
Rigging: Andre Stuppert, Charles Le Guen
FX: Greg Ecker, Johnathan Nixon, Mitch Deoudes, Santosh Gunaseelan
Editors: John Zawisha, Kevin Matuszewski
Compositing: Blake Huber
Director of Engineering: Robert Muzer
Chief Engineer: Jerry Stephano
Pipeline: Michael Stella, Dan Schneider
Coordinating Producer for the Director: Jen Cadic
Additional Editor: Eli Mavros
Music Composition: Stimmung; Peter Lauridsen
Sound Design: Stimmung; Andres Velasquez
EP of Audio: Stimmung; Ceinwyn Clark

Mix: Headroom; Fernando Ascani

Associate Producer: Michael Kaufman

Color Correct: CO3; Stefan Sonnenfeld

Prose Poem: "Dreams" written by Fitzgerald Scott

Mais info: TRUST

UPDATE 12.1.2010: Entrevista da Motionographer

maio 19, 2010

Lip Dub na UM

Trago um trabalho de Lip Dub, um formato que parece estar cada vez mais em voga como forma de estimulo à criatividade e estimulo social dentro de grupos organizacionais. Neste caso trata-se do festival organizado pela Universidade do Minho, mais concretamente pela sua Associação Académica e pela Rádio Universitária.

Se coloco aqui o filme não é por terem sido os alunos da Escola da Universidade do Minho onde trabalho, o Instituto de Ciências Sociais, nem é por terem ganho o festival, é porque o considero digno de consideração per se.
O trabalho que podem ver abaixo não se encaixa muito no tipo de trabalhos que aqui trago normalmente muito mais versados na componente formal e visual, na estética e cinematografia, traço ou originalidade. O que este trabalho tem de muito bom é a sua componente coreográfica, de direcção de actores (ainda que deva algo à espontaneidade) e o ritmo audiovisual. Utilizam a estrutura do edifício para iniciar um plano sequência que se prolonga desde a entrada no mesmo até ao topo permitindo assim uma viagem espacial ao espectador que é entre-cortada por constantes coreografias dos alunos que dão vida à viagem e proporcionam uma excelente experiência visual ao corpo da música escolhida.
O trabalho sofre de dois problemas na forma: a fotografia e a trepidação do enquadramento. Se a trepidação seria impossível de ultrapassar com os recursos disponíveis, já a fotografia poderia ter sido toda ela muito mais trabalhada, tanto ao nível da iluminação in loco como depois na pós-produção. Em jeito de recompensa e a demonstrar a capacidade empreendedora dos alunos, estes não se dedicaram apenas a fazer o dubbing mas conseguiram trazer para o seio do filme o próprio intérprete da música e inseri-lo na narrativa do filme.
Fica a nota para um muito bom trabalho realizado de forma colectiva por uma enorme equipa que julgo conseguir atingir por completo o propósito estipulado pelo festival a "promoção das estruturas associativas e culturais da Universidade, a promoção de talentos e o estímulo da criatividade dos alunos da UM em geral". Parabéns.