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fevereiro 07, 2019

A Criação do Mundo de Torga

Confesso que por vezes me custava largar as páginas de "A Criação do Mundo" (1937-1981), abandonar as descrições dos espaços e histórias, porque dava por mim transportado para uma realidade alternativa, feita de paisagens de Torga mescladas com as nostalgias de um mundo vivido e já esquecido por mim. Elevava-se uma melancolia interior, um sentir de realidade passada, plasmada, estanque e inalterável e por isso mais saborosa do que a que se vai vivendo dia após dia, na incerteza do amanhã. Queria dizer apenas estas palavras e calar-me, mas não posso, Torga merece que nos detenhamos, que sobre ele falemos, que não deixemos calar o seu legado, porque é uma das melhores ilustrações escritas do Portugal do século XX.


Torga era médico e poeta, mas o sentido da sua vida foram as letras, sempre o seu primeiro amor, desde que na escola entrou até que no túmulo nos disse adeus. Dedicou-se de corpo e alma à poesia, mas o seu maior legado é diarista, tendo publicado entre 1941 e 1993 nada menos que 16 volumes, à média de um por cada três anos. São milhares de páginas com registos sobre tudo o que lhe ia na alma, o seu modo de ver que sofregamente passava para o papel. A este juntam-se algumas novelas em prosa, muitos contos e centenas de poemas publicados em revistas e livros que foi editando.


Torga foi sempre o seu próprio editor, criou várias revistas de poesia e editou praticamente todos os seus livros como "Edições de Autor", o que nos diz muito sobre a pessoa e o seu círculo próximo. A honra e a dignidade acima de tudo, valores provindos da força telúrica de se seu pai, mas que elevou a pontos de total obstinação que o foram afastando de tudo e todos enquanto viveu. Passou 4 meses na prisão, metade dos quais em isolamento por não ceder nunca à ideologia política, incapaz do agachamento intelectual a que praticamente todo o país se votou, incluindo a Universidade portuguesa. Lendo Torga, senti por várias vezes que se em Portugal alguém lançasse mãos à obra para construir uma Auschwitz, teria acontecido cá como lá (a verdade é que tínhamos já expulso praticamente toda a comunidade judia em 1496 sob as ordens de Dom Manuel I e Isabel de Espanha).

Ler XVI volumes de um diário não é tarefa que me atraia. Gosto de conhecer autores e criadores por dentro, mas não considero necessário perscrutar todo o seu mundo para deles me aproximar, respeitar e até amar. Por isso considero este livro, "A Criação do Mundo", tão importante, porque em certa medida funciona como síntese de todos esses diários. O registo aqui não é diarista nem sequer confessional, ainda que o texto transpire autenticidade, mas mais pela personalidade e ser do autor. O que temos nestas páginas é romance puro, com laivos de realidade, mas contado a partir de um olhar com sentido idealizante do mundo. Nomes e lugares são por vezes alterados, mas o sentido está lá, como histórias que se contam, e produzem em nós o efeito esperado. É o próprio Torga que define o sentido da obra, no modo como vivemos, dia após dia, o modo como criamos o nosso real, e criamos o nosso mundo, um mundo que é diferente de indivíduo para indivíduo, e daí a enorme riqueza da espécie humana.
Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos Longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. O meu tinha de ser como é, uma torrente de emoções, volições, paixões e intelecções a correr desde a infância à velhice no chão duro de uma realidade proteica, convulsionada por guerras, catástrofes, tiranias e abominações, e também rica de mil potencialidades, que ficará na História como paradigma do mais infausto e nefasto que a humanidade conheceu, a par do mais promissor.” In Prefácio "A Criação do Mundo"
Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era”. in "Diário I", Data de entrada: 3.12.1935
Ler esta obra é entrar por Portugal adentro, um Portugal rural, telúrico, pleno de sentimento, ligação à terra e à natureza, um Portugal pequeno mas ligado ao mundo, pela lusofonia, pela arte e filosofia, posicionado ideologicamente nos acontecimentos ocorridos ao longo da maior parte do século XX, sempre em total ligação com a História de uma nação mas com o povo e as gentes como principais atores. Claro que tudo isto se torna apenas tão interessante, e verdadeiramente absorvente, por graça da majestosa fluidez lírica de Torga, que por vezes parece querer puxar os nossos olhos a ler mais rápido do que a mente consegue absorver. Não que não tenha momentos menos conseguidos, sentindo-se pequenas faltas — excesso de embelezamento ou abstração excessiva — que uma edição feita a partir de um olhar de fora teria, com certeza, ajudado. Ajuda à leitura conhecer a história de Portugal, conhecer o país do século XX, nomeadamente Trás-os-Montes e a região centro — Coimbra —, assim como conhecer um pouco sobre as principais datas da vida de Torga, e claro sobre os acontecimentos políticos a acontecer em Portugal, no Brasil, mas também em Espanha e Itália, e claro Alemanha, assim como Angola, Cabo Verde, e Moçambique. Mas talvez ajude mais o gosto pela poética, o gosto pela literatura, mas acima de tudo o amor ao conhecimento de si e da espécie humana.
“— Não os prendam. Só quando de todo não puder deixar de ser... Façam-lhes a vida difícil... Façam-lhes a vida difícil... E faziam. Quem não acertava o passo pelo chouto do rebanho, ou apodrecia num calabouço ou morria de fome. A nação inteira era agora uma tumba de silêncio e abulia. Nos campos, nas fábricas, nas escolas e nas repartições, o perfil duro do ditador [Salazar] parecia escutar a voz das próprias consciências. E as consciências calavam-se no mais fundo das funduras, temerosas de qualquer expressão reveladora. Nenhum lugar, do mais alto ao mais rasteiro, era preenchido sem o aval da polícia política. Cada ministro, cada funcionário, cada varredor, tinha de ter a sua ficha em dia, limpa de qualquer mácula discordante. Se um caso ou outro passava pelas malhas apertadas dessa vigilância aturada, que não deixava recanto de cada vida por vasculhar, no dia seguinte, como acontecera agora comigo, o lapso era corrigido.", in “A Criação do Mundo (O Sexto Dia)", 1981
A obra está dividida em seis grandes capítulos que representam os volumes que foram sendo publicados no tempo. O livro a que hoje temos acesso é uma coletânea de todos esses volumes. Ou seja, esta não é uma obra escrita com sentido retrospectivo, mas antes escrita em quase-tempo-real, entre 1937 e 1981 (1ª edição conjunta de 1991). Os sentires são-no dos momentos em que foram acontecendo, e por isso talvez, se sintam com tanta mais força, realidade e autenticidade.

Capítulo 1º Dia - Publicado em 1937
Escola primária até aos 13 anos. Natureza e inocência.

Capítulo 2º Dia - Publicado em 1937
Dos 13 aos 17 anos. Ida para o Brasil e o choque com a realidade.

Capítulo 3º Dia - Publicado em 1938
Dos 17 aos 30 anos. Vinda para Coimbra, onde completa os três ciclos do liceu em três anos, estuda medicina para ser formar em 1933.

Capítulo 4º Dia - Publicado em 1939.
Dezembro de 1937 a Janeiro de 1938. Viagem pela Europa, sendo preso pela PIDE no regresso por causa do livro que sobre essa viagem escreve, e o livro apreendido.

Capítulo 5º Dia - Publicado em 1974
Só se publica em 1974, porque tal como o 4º, foi censurado. Fala-nos da prisão, em 1939, e do Portugal sob regime ditatorial.

Capítulo 6º Dia - Publicado em 1981
É o derradeiro capítulo, com vários momentos de reflexão sobre si, os seus e o mundo, e o que resta ou restará de si: “Nada há de permanente debaixo do sol..."


Miguel Torga morreu a 17 Janeiro 1995, com 87 anos, um ano antes tinha escrito:


REQUIEM POR MIM


Aproxima-se o fim. 
E tenho pena de acabar assim, 
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana. 
Inválido de corpo 
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos. 
Longo foi o caminho e desmedidos 
Os sonhos que nele tive. 
Mas ninguém vive 
Contra as leis do destino. 
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio. 
Rio feliz a ir de encontro ao mar 
Desaguar, 
E, em largo oceano, eternizar 
O seu esplendor torrencial de rio.
 
Coimbra, 10 de Dezembro de 1993


Sinto-me agradecido por ter lido esta Criação do Mundo.

abril 29, 2018

Anna Akhmatova, a poetisa da dor russa

Depois do luxo arquitectónico dos Romanov e dos clássicos literários russos acabei por desaguar numa camada de história da cidade completamente distinta, o tempo soviético. Não que tenha ido à sua procura, era algo que tinha pensado evitar (a quantidade de camadas de história que se podem aqui visitar são tantas que se torna inevitável fazer escolhas), mas a visita à Fortaleza de Pedro e Paulo, onde se encontram os túmulos de toda a dinastia Romanov, é o local onde se encontra a prisão onde estiveram presos centenas de políticos de vários quadrantes. Assim, tendo saído bastante impressionado da prisão, pela apresentação das fotos e historiais dos vários presos (Gorki, Trotski, Kropotkin, Bakunin, vários políticos sociais-democratas, assim como vários membros do governo e aristocracia após a revolução de 1917), ao visitar no dia seguinte a casa da poetisa Anna Akhmatova acabei sendo completamente atirado para dentro da questão soviética.
Anna Akhmatova em sua casa, na Fountain House, nos anos 1930, em São Petersburgo. Aqui viveu quase 30 anos, casa que agora serve de museu à sua memória.

Não conhecia a poetisa antes de começar a preparar esta viagem, procurei depois saber mais na rede, mas a informação pareceu-me escassa, ao que se acrescentou, estranhamente, a ausência de obras traduzidas em Portugal (correção: descobri entretanto que a RA editou dois livros dela). Por isso tinha até alguma dúvida se devia visitar o museu, contudo ainda bem que o fiz, foi uma visita maravilhosa, inicialmente menos pelo espaço e mais pelas pessoas que ali encontrei também a realizar a visita. Diga-se que as casas de escritores não são propriamente grandes atrativos das cidades, os autocarros param em barda nos grandes museus, praças e palácios. A este pequenos museus vão apenas fãs, ou no caso de alguns nomes mais sonantes as excursões escolares. E tendo eu já visitado várias casas destas aqui, fui completamente apanhado de surpresa pelo público que ali encontrei: em grande número e maioritariamente jovem (18-30) e feminino. O facto de ser mulher torna-a mais apelativa tendo em conta que praticamente todos os autores clássicos russos são homens. (Por outro lado, foi talvez também o facto de ser mulher que impediu Estaline e os seus dirigentes de a fazer desaparecer, optaram apenas por a ignorar na esperança de que esta se suicidasse tarde ou cedo).
A casa em que viveu é um apartamento num antigo palácio da cidade, chamado Fountain House.
Poemas escritos nas paredes em redor do jardim da sua casa
A sua mesa de trabalho

Visitei então toda a casa, na qual a autora viveu quase 30 anos, podendo nós encontrar ali imensa memorabilia da mesma, materiais do quotidiano, mas também muitas cartas, telas, brinquedos, livros, etc. tudo muito bem mantido, apresentando uma estética anos 1920, ao que se acrescenta efeitos de som de ruído de vinyl, de relógios e por vezes alguma música da época. Existe uma instalação multimédia apelativa, mas toda apenas em russo, aliás muito do que se pode ver neste museu está quase só em russo, o que é uma pena. Contudo no final lá encontrei um pequeno livrinho comemorativo do museu*, em inglês, comprei-o e sentei-me num banco do jardim em que Akhmatova costumava passear, e aí começou a minha verdadeira experiência. Através do texto pude viajar até ao início do século XX e acompanhar Akhmatova e as tragédias sofridas à mão de Lenine e depois Estaline, desde logo a execução do marido, a impossibilidade de publicar os seus poemas, o rechaço do seu filho pela sociedade, e mais tarde os vários amigos artistas que foram emigrando, atirados para gulags ou que simplesmente optaram pelo suicídio.

Antes da revolução, em 1911, Akhmatova teve um caso com Modigliani que criou vários desenhos dela, este foi o único que sobreviveu. Existem várias teorias sobre o efeito deste romance no estilo e desígnios posteriores do pintor.

Quadro inacabado de Natalia Tretyakova em que se vê Akhmatova e Modigliani

É essencialmente a partir das suas várias trágicas experiências e debaixo de um controlo político cerrado, que incluiu escutas permanentes na casa, já que ela se relacionava com muita da chamada intelligentsia — Boris Anrep, Osip Mandelstam, Sergey Gorodetsky, Boris Pasternak, Alexander Blok, Natan Altman, Isaiah Berlin; foi mentora do Nobel Joseph Brodsky,  — que ela cria os seus dois mais importante poemas — “Requiem” e “Poem Without a Hero” —, escritos ao longo de anos, e apenas tornados públicos fora da Rússia nos anos 1960, e na Rússia no final dos anos 1980. A pressão sobre a mesma foi tanta, nomeadamente pela prisão e deportação para a Sibéria do filho, que ela chega mesmo a escrever poemas em defesa do governo de Estaline para o tentar salvar. Contudo, é na clandestinidade que o seu nome se vai construindo, com a passagem de mão em mão dos seus poemas que refletem o sentir de tantas outras mães, e tantos e tantos outros cidadãos russos.

“Madness with its wings
Has covered half my soul
It feeds me fiery wine
And lures me into the abyss.

That's when I understood 
While listening to my alien delirium
That I must hand the victory
To it.

However much I nag
However much I beg
It will not let me take
One single thing away:

Not my son's frightening eyes -
A suffering set in stone,
Or prison visiting hours
Or days that end in storms

Nor the sweet coolness of a hand
The anxious shade of lime trees
Nor the light distant sound
Of final comforting words.”

Excerto do poema Requiem, 1963 (poema completo em inglês escrito e declamado, partes em português)
"Anna Akhmatova" (1915) por Nathan Altman, no Museu Russo

Akhmatova fica como uma espécie de voz contra o horror causado pela Revolução Comunista, contra os espíritos ditatoriais de Lenine e Estaline, pela capacidade de colocar em palavras o sofrimento que assolou a alma russa, e por não se calar e lutar sempre, sem nunca abandonar o país.


Após chegar a casa converti o DVD que vinha com o pequeno livro, e coloquei-o online no YouTube.

setembro 09, 2017

Um cine-poema

Descobri Jenni Fagan por mero acaso no Goodreads a partir de uma pesquisa sobre o seu livro “The Panopticon”, que está a ser transposto para cinema. Enquanto passava os olhos pela sua página vi um post do seu blog que fazia referência a uma pequena curta dirigida por si, sobre um asilo, e que tinha rotulado de cine-poema. São 15 minutos, mas podem parar, desligar as luzes, colocar os auscultadores e desfrutar, ainda que a récita seja feita num inglês de acento escocês.





Os asilos são locais dotados de algum fascínio, nomeadamente por terem tido um auge quase desconhecido do grande público, e terem entretanto sido praticamente extintos graças ao progresso da ciência e da medicina. Ficaram as casas e paredes mas ficaram também muitas histórias. Ainda não há muito vi um documentário brasileiro sobre o asilo de Barbacena, intitulado “Holocausto Brasileiro” (2016) que veio pôr o dedo sobre feridas por sarar. Este nosso fascínio assemelha-se com o que nos provoca o Holocausto, daí o título do filme de Daniela Arbex, o que me conduz a pensar que de alguma forma tudo se liga ao sofrimento humano, pela nossa incapacidade de nos desligarmos daquilo que é ser-se humano.

Sobre o Edinburgh District Asylum pouco ficamos a saber no filme, para além de que foi um asilo tipo do início do século passado, encerrado na segunda metade desse mesmo século. O interesse da autora advém da peculiaridade de ter aí vivido, enquanto na barriga da mãe que era guarda no asilo. Fagan que tem sido imensamente bafejada pela crítica aos seus livros, e recebido vários prémios, de entre os quais, o Best Young British Novelists da Granta em 2013, resolveu não apenas escrever uma Ode aos Mortos sem nome desse asilo, mas declamá-la sobre belíssimas imagens em movimento do espaço.

O resultado é impressivo. A declamação calma mas muito sentida de Fagan, sobre uma música de ritmo melancólico, repetitivo e espacial, acompanhado de imagens aéreas e de detalhe do asilo, criam uma experiência verdadeiramente intimista. Regressamos no tempo, sentimos o que se sentia, percorremos os espaços com a ideia do que poderá ter ali acontecido, sentimos o ser humano mais de perto, e aprendemos um pouco mais sobre as ilusões do mundo em que vivemos. Um cine-poema.

 
"Edinburgh District Asylum" (2017) de Jenni Fagan