“The Language Game” (2022) é mais um importante contributo para a abordagem comportamental da linguagem em detrimento da abordagem inata. Já aqui tinha trazido o trabalho de Daniel L. Everett, “How Language Began: The Story of Humanity's Greatest Invention” (2017), assim como "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) de Benjamim Bergen, ou ainda “Origins of Human Communication” (2008) de Michael Tomasello. A abordagem de Morten H. Christiansen, da U. Cornell e Nick Charter, da U. Warwick, é inovadora, apresentando uma teorização, com base em estudos empíricos, que defende a interação humana como base da linguagem humana, propondo que a produção de linguagem ocorre a partir de jogos de charadas. Cada um de nós procura compreender o outro e pela improvisação fazer-se compreender da melhor forma possível. Quando em face de alguém com quem não partilhamos a mesma língua, partimos para o uso de sons, expressões, gestos, poses, desenhos, construindo charadas que o outro possa chegar a compreender.
“Faced with the immediate challenge of communication, [-- they] created signs and symbols in the moment. Humans with a message to convey, but without any linguistic resources at hand, will improvise an ad hoc communicative solution—whether through sounds, gesture, or facial expressions. But in doing so, they inadvertently create a resource for future exchanges, to be reused and modified as required.”
É a força social que nos impele a estabelecer contacto com o outro que acaba a impulsionar-nos para a produção de linguagem. Por sua vez, o processo de improviso, necessário à explanação de uma realidade maior do que nós e em continua transformação torna impossível o tal código universal estático, e simultaneamente a razão pela qual as linguagens se transformam a tão grande velocidade. Não fosse a escrita a tentar estabilizar as línguas elas acabariam a mudar a enorme velocidade, dependentes do fluxo de interação humana, provocando variações geográficas que distanciariam rapidamente os falantes de cada língua, servindo apenas os grupos em contínua interação. Na verdade, cada ser-humano fala uma variante própria de cada língua, já que nenhum de nós fala de modo exatamente igual.
É também este nosso motor impressionante de improvisação que nos permite o uso da linguagem, já que a limitação da nossa memória a curto-prazo impossibilita-nos ter acesso em tempo-real à enormidade de vocabulário assim como às construções frásicas presentes na nossa memória de longo-prazo. No fundo, falar é um ato profundamente criativo, e seremos mais criativos quanto mais treinarmos a fala em interação com o outro. Isto fica por demais evidente quando lidamos com uma segunda ou terceira língua na qual temos menos fluência que na nossa língua nativa e nos deparamos com os bloqueios, incapacidade de acesso a palavras ou modos de dizer, simplesmente porque os acessos à memória não estão suficientemente ativos (não foram treinados vezes suficiente) para serem recuperados por meras palavras-chave.
“No one planned language. The complexity and order of language emerge from the chaos of countless games of linguistic charades. In each game, speakers have no concern other than to make themselves understood to a particular person on a specific occasion. Yet, over generations of language use, patterns of amazing richness and subtlety have gradually emerged. Languages exhibit baffling intricacies in their syntactic categories, of tense, aspect, case, and word order. They have strange and varied repertoires of speech sounds from which words are composed. And each language contains vast inventories of words describing the entire gamut of the physical, biological, moral, and spiritual worlds. All this complexity, and much more, arises from the cumulative power of spontaneous, undesigned order. In a very real sense, the most important human invention is an accumulation of accidents.”
A proposta de Christiansen e Charter, de um modo simplificado, diz-nos que se não temos nenhum módulo para aprender a tocar violino ou a desenhar ou escrever, por que razão haveríamos de ter um módulo para falar. Qualquer criança passa por todo um treino de cópia e correção de anos até se tornar um falante completo, tal como acontece com a aprendizagem de qualquer outra linguagem de uso de média para comunicar. Mais, os estudos mais recentes apresentados vão contra a ideia de que uma criança se torna melhor falante quantas mais palavras ouve em casa, afirmando que estas se tornam melhores falantes quanto mais interagirem pela fala. É o treino do processo da fala que nos torna mais capazes no domínio da língua, e não o mero acesso ao ouvir de palavras. Diga-se que se assim não fosse, o simples visionamento de muitas horas de televisão tornaria as nossas crianças grandes mestres da língua.
Por tudo isto, não admira que ao fim de décadas de estudo dos linguistas continuemos a saber tão pouco sobre o processo da criação da língua. Tratando-se de um processo criativo de improviso, semelhante a qualquer processo de criação artística, não é possível forçar quadros objetivos de método científico sobre estes processos e esperar encontrar padrões de resposta. As metodologias criativas da arte e design, na qual devemos enquadrar os atos de fala e comunicação humana, diferem profundamente das metodologias científicas das ciências duras ou sociais que a linguística tem vindo a abraçar. E no entanto, não falta arautos do método experimental a querer forçar e mesmo a usar teorias sem sustentação para atacar outras teorias de falta de sustentação, como aconteceu recentemente com o ataque disparatado de Darshana Narayanan a Yuval Harari.
Visto assim, percebemos melhor ainda o poder da língua e o modo como esta tende a moldar aquilo que somos, uma vez que evoluímos e transformamo-nos junto com ela. Ou seja, aquela degeneração da língua de que os mais velhos tanto gostam de acusar os mais novos, não é mais do que um processo natural e criativo. Neste sentido, talvez tivesse sido interessante aprofundar mais a questão da interação e do modo como todo o nosso corpo contribui para a linguagem que está longe de ser um mero processo sonoro. Ainda assim, este trabalho vai num sentido muito claro, o da aproximação entre as diferentes linguagens que usamos — fala, texto, imagens, sons, interações — no modo como as criamos, nomeadamente no modo como somos impulsionados para a sua criação.
“The social legacies of language, writing, literature and of the various arts, pictorial and musical; of practical crafts, including medicine, agriculture, manufacture and the technique of communications;… all these are systems of dynamic order… In each field there is being handed on from generation to generation a public mental heritage accessible to all."
—Michael Polanyi, 1941, “The Growth of Thought in Society"
“The relation of thought to word is not a thing but a process, a continual movement back and forth from thought to word and from word to thought."
—Lev Vygotsky, 1934, "Thought and Language"
Para aprofundar um pouco mais sobre o livro, podem ler o texto dos autores para a The Conversation, "Why people hate or love the sound of certain words", 2022.
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