Mostrar mensagens com a etiqueta narrativa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta narrativa. Mostrar todas as mensagens

maio 10, 2023

O descarrilar de um romance filosófico

Vi o filme quando saiu, mas já não recordava nada além do Jeremy Irons passeando pelas ruas de Lisboa. Entretanto encontrei o livro numa lista de livros relacionados com romances filosóficos, e relendo a premissa fui a correr adquiri-lo. As primeiras 100 páginas foram ouro, com uma viagem por entre poesia, melancolia e existencialismo, do centro da Europa para a costa oeste portuguesa. Mas a partir do meio iniciou-se um declínio, atingindo o total estrambelhamento perto do final. Não se aproveita nada no fim da leitura. São demasiados erros narrativos a que se juntam ainda problemas morais que tornam os personagens insustentáveis. Ainda fui rever o filme, e nota-se que houve um esforço dos guionistas para resolver alguns problemas, mas não sendo o meio adequado ao tipo de premissa, fica também bastante aquém da experiência esperada.

abril 07, 2023

Guerra do Peloponeso, 431 a.C. a 404 a.C.

"História da Guerra do Peloponeso" foi escrito no século V a.C por Tucídides, sendo por isso mesmo um registo histórico de incomensurável valor, mas é também um marco da História enquanto disciplina académica. Neste último sentido, fez-me compreender que apesar de na última década me ter dedicado a ler mais e mais História, na verdade continuo longe da mesma, em termos académicos. Interessam-me as histórias sobre a História, não me interessam tanto os relatos descritivos, mesmo que mais fidedignos ou verdadeiros. Não me move chegar “à verdade”, move-me mais a ideia de que aquilo que se conta é baseado numa realidade. Desde logo, porque mesmo num livro tão descritivo, tão emocionalmente neutro e objetivo, é possível denotar viés a ponto de hoje alguns historiadores o classificarem mesmo como apenas literatura. Claro que falo de um ponto de vista externo, não leio estas obras para documentar a minha investigação, se assim fosse falaria de modo distinto. Como leio apenas pelo prazer de ler, esse é maior quando a História usa o melhor da arte narrativa para chegar a nós, mesmo colocando em causa parte da sua factualidade que aceito bem quando é feito por via da especulação, mas não tanto quando pela mera invenção.

dezembro 31, 2022

Cyberpunk 2077 (PS5, p1.6)

Há já algum tempo que não sentia tanta satisfação ao chegar ao final de uma história. Tudo perfeito, talvez perfeito demais, num sentido convencional em que se estimulam os sentimentos por via dos valores da família, dos amigos e claro do casal romântico. Ainda assim, no meio de uma distopia pós-apocalíptica tecnológica, o cyberpunk, soube muito bem reencontrar as dimensões do humano como prevalentes. Em "Cyberpunk 2077", a máxima de Pawel Sasko, diretor do Design de Missões, “story goes first with everything” é uma realidade. Podemos navegar o mundo, podemos explorar todas as funções da nossa personagem, das tecnologias, das armas, dos carros, podemos envolver-nos numa miríade de confusões e pequenas missões, mas a história está sempre lá, o nosso personagem está perfeitamente delineado e impacta e é impactado pelo que acontece ao longo da nossa experiência. Não é um RPG tradicional, mas também não é mero Ação-Aventura, é um verdadeiro Immersive Sim, capaz de morfosear RPG, FPS, Stealth, Racing, Cartas, Plataformas e muito Survival, tudo oferecido num mundo aberto deslumbrante. 



setembro 04, 2022

O lago existencial

"Lake" (2021) é um videojogo despretensioso sobre questões existenciais, em particular a relação entre a ambição material e a felicidade pessoal. Jogamos na pele de Kate, uma programadora de topo, 44 anos, nos anos 1980, que decide voltar por duas semanas à vila em que cresceu, o que a vai obrigar a questionar-se sobre tudo o que conseguiu, assim como tudo o que perdeu. Tudo é feito usando a linguagem dos videojogos, sem recurso a grandes monólogos interiores ou filmes explicativos. Durante 15 dias, somos a carteira da vila, em substituição do pai, e temos de distribuir o correio todos os dias, reencontrando assim as pessoas que deixámos para trás. Tudo isto acontece num lugar sereno, junto da natureza e um belíssimo grande lago que contribui para a criação da atmosfera propícia à reflexão na meia-idade.


"Lake" foi desenvolvido, em Unity, pela empresa holandesa Gamious

agosto 28, 2022

A necessidade de ficcionar a vida

"Monogamy" (2020) não é o tipo de livro que leria, mas algumas resenhas trouxeram-me até ele. Sue Miller tem mais de uma dezena de romances publicados, mas nunca tinha ouvido falar da mesma. É uma autora focada no romance de família, entre os romances de amor da seleção da Oprah e o romance mais psicológico. Assim que comecei a ouvir o audiobook fiquei colado, ainda mais assim que percebi que era a própria autora a narradora. Os seus 78 anos emprestam à voz um tom de experiência profundo, tornando a declamação imensamente emocional, particularmente tranquila, capaz de criar paisagens ficcionais totalmente credíveis para onde apenas desejamos evadir-nos. 

junho 17, 2022

"Dot's Home", videojogo sobre problemas sociais

"Dot's Home" (2021) é um belíssimo videojogo narrativo, criado por uma equipa de criativos multimédia em conjunto com uma ONG focada na resolução de problemas sociais, nomeadamente de habitação e discriminação racial nos EUA. O jogo foi criado no âmbito de uma campanha transmedia, a Rise-Home Stories, que produziu para além deste jogo, mais quatro artefactos digitais narrativos: "Alejandria Fights Back!",  um livro para crianças, "But Next Time" um podcast, "MINE", uma web série animada e "Steal-Estate", uma experiência online interativa. O jogo foi apresentado no final de 2021 e está agora disponível gratuitamente na App Store, Google Play e Steam.

maio 01, 2022

Como Compreendemos o que Lemos

Daniel T. Willingham é um professor e investigador da psicologia que se dedica ao estudo dos aspetos cognitivos da aprendizagem, de quem recomendo vivamente a leitura do anterior "Why Don't Students Like School?: A Cognitive Scientist Answers Questions About How the Mind Works and What It Means for the Classroom" (2009). Neste livro, "The Reading Mind: A Cognitive Approach to Understanding How the Mind Reads" (2017), aprofunda exclusivamente o processo de leitura enquanto processo cognitivo para nos dar a compreender como lemos, desde o momento em que interpretamos as letras até ao momento em que criamos sentido de um texto que lemos. 

"Stop for a moment and wonder: what's happening in your brain right now—as you read this paragraph? How much do you know about the innumerable and amazing connections that your mind is making as you, in a flash, make sense of this request? Why does it matter?"

março 26, 2022

Desenho de Personagens, segundo McKee

"Character: The Art of Role and Cast Design for Page, Stage, and Screen" (2021) é o mais recente livro de Robert McKee e o quarto livro que leio dele. Tinha demasiadas expectativas sobre o mesmo já que o tema da criação e desenho de personagens é bastante complexo. Ao contrário da discussão geral sobre o desenho de histórias ou criação de mundos, a criação de personagens assenta muito na particularização, na criação de personas completas que almejam à realidade do que somos. Nesse sentido, por mais fórmulas que se construam, a sua definição fica inteiramente dependente da capacidade de observação e expressão de quem cria. E essa é, talvez, a grande razão pela qual este livro fica bastante aquém daquilo que McKee nos habituou. McKee constrói um modelo de análise e trabalho com um conjunto alargado de categorias, que vão dos simples modelos — redondas/lisas — a grandes discussões filosóficas sobre o que significa estar vivo, numa ânsia por conseguir chegar ao âmago da definição da figura que denominamos personagem, mas fica a meio do caminho. Se por um lado nos oferece imenso sobre os fundamentos do que contribui para o desenho de uma personagem, por outro, sinto que chegados ao final não nos deu muito mais do que aquilo que já tínhamos no seu livro principal, "Story" de 1997

fevereiro 26, 2022

Composição em anel na arte narrativa

"Three Rings: A Tale of Exile, Narrative, and Fate" (2020) é um trabalho académico experimental que mistura memórias, crítica, clássicos e teoria narrativa. Conhecia Daniel Mendelsohn de um anterior trabalho de memórias criado a partir da estrutura de Homero, "Uma Odisseia. Um pai, um filho e uma epopeia" (2017) do qual gostei particularmente. Neste seu mais recente trabalho criou uma espécie de sucessor, realizando um trabalho maior de auto-crítica e análise do que foram as suas obras anteriores de memórias, e essa ideia de sucessão fica desde logo patente pelo trabalho de análise que dedica a "Les Aventures de Télémaque" (1699) em que François Fénelon tentou escrever uma continuação da "Odisseia".

janeiro 27, 2022

A Moral do Cão

A propósito de "O Poder do Cão", vi primeiro o filme de Jane Campion (2021) e li o livro de Thomas Savage (1967) depois, das duas vezes não funcionou, não consegui encontrar nem sentir aquilo que tem conduzido uma maioria de pessoas a nomear este o melhor filme do ano ou o livro como uma das melhores redescobertas literárias dos últimos anos. Assumo que o tema é extremamente relevante e que a sociedade está hoje muito mais preparada para compreender um livro que saiu em 1967, mas o tratamento realizado deixou-me com demasiadas dúvidas sobre a eficácia da comunicação narrativa por causa da sua indefinição moral. Para explicar o problema terei de dar conta da história, por isso se não leram ou viram o filme fiquem por aqui.

A capa da primeira edição do livro, de 1967, e o poster da versão cinematográfica de 2021.

dezembro 01, 2021

A manipulação de Gottschall

Não posso chamar livro a algo que não passa de um emaranhado de ideias e frases coladas juntas para manipular quem lê "The Story Paradox" (2021). Nem sequer posso dizer que Jonathan Gottschall conte uma história, porque contar uma história implica coesão e unidade discursiva, e aqui temos tudo menos isso. Gottschall agarra em tudo de todo o lado — diversas áreas científicas, tecnológicas e culturais — que possam de algum modo suportar as suas premissas, e monta um castelo de cartas para vender as sua ideias. Só esqueceu que a retórica para funcionar precisa de Ethos, não chega lógica e emoção. É quase doloroso ver Gottschall, alguém que ensina no ensino superior, usar trabalhos de múltiplos colegas, que estão relacionados com questões concretas, que ele cita distorcendo ou convocando os resultados para o que lhe interessa, apenas para oferecer prova de autoridade ao discurso que constrói. A isto chamamos discurso manipulativo, sem qualquer respeito pelos leitores. Se no seu livro anterior, "The Storytelling Animal" (análise VI), já se sentia muito disto, e que na altura considerei como "abordagem absolutista", neste novo livro além de não vir acrescentar nada, a abordagem resvala para a tentativa de inculcar o medo e o pânico esperando com isso atrair as luzes para a venda de mais livro.

novembro 07, 2021

As histórias podem ser tão ou mais importantes

"Uma Ofuscante Ausência de Luz" (2001) é um livro do escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, baseado no testemunho de um sobrevivente da prisão de Tazmamart, uma prisão secreta marroquina construída no meio do deserto, exclusiva para presos políticos, dotada de condições particularmente extremas. Os presos eram mantidos em celas subterrâneas, com menos de um metro e meio de altura, 24/24, podendo passar anos completos sem nunca ver qualquer luz. O testemunho usado por Jelloun é de um prisioneiro que ali sobreviveu por 18 anos, de 1973 a 1991. A expectativa que uma história destas gera no leitor é enorme, mas o livro coloca-nos no devido lugar, não nos oferece emoção fácil, faz-nos caminhar os degraus devagar, até ao topo, deixando para o final a compreensão do sentir completo. O livro recebeu o Prémio Literário Internacional de Dublin em 2004. 

outubro 23, 2021

Kentucky Route Zero (2020)

Escondido sob a capa do surrealismo, corrente estética em que a causalidade é desconsiderada conduzindo a consideráveis violações estruturais da história, "Kentucky Route Zero" (KRZ) constrói todo um universo de referências desconectas que obrigam o jogador a ir atrás. Nada disto é original no mundo dos jogos — basta pensar em "The Beginner's Guide", "Everybody's Gone to the Rapture", "Inside". O que é aqui claramente distinto é o uso, diria abuso, do suporte texto. KRZ é muito mais ficção interativa do que jogo de aventura gráfica. A experiência prolonga-se por cerca de 10 horas, tendo sido publicado em 5 episódios entre 2013 e 2020, o que foi permitindo análises distintas no tempo, nomeadamente porque se inicia de forma imensamente promissora, pela inovação na narrativa interativa, mas termina num limbo quase-ausente de interação.

outubro 02, 2021

A Emoção que justifica a Leitura

"The Emotional Craft of Fiction” (2016) de Donald Maas é um livro curto, mas que procura ser incisivo, conseguindo-o na medida do que é possível quando falamos de arte, no caso literatura. Ou seja, Maas olha para o trabalho do escritor, para as suas ferramentas, e para o modo como as obras chegam aos leitores, em termos emocionais, e procura traçar um conjunto de ideias, princípios, que ajudem quem se interessa pela criação de emoção estética. Diria que o central do livro é desvelado no primeiro terço, ficando o restante demasiado colado a exemplos que se vão tornando de algum modo repetitivos. Dito isto, é um livro pelo qual vale a pena passar os olhos.

setembro 19, 2021

Cortázar, o hipertexto e Joyce

Rayuela” (1963) (em Portugal “O Jogo do Mundo”) é reconhecido como uma das maiores obras da literatura da América latina. É reconhecido pelo pioneirismo do uso da não-linearidade hipertextual (ligações que permitem saltar páginas e capítulos). O seu autor, Julio Cortázar, foi imortalizado graças a este livro. Contudo, a minha experiência ficou bastante aquém, diga-se que muito provavelmente por defeito de profissão — trabalho, há mais de 20 anos, o design de narrativas hipertextuais. Esperava mais. Esperava ver uma obra que por ser criada por uma mente literária, rasgasse todos os preceitos da literatura e principalmente da linearidade narrativa. Acaba por não o fazer, em nenhuma das frentes. Com um registo demasiado colado a Joyce, oferece muito pouco à literatura. A forma sustenta o nosso interesse pela novidade estrutural, mas desvendado o padrão seguido tudo começa a cair.

agosto 20, 2021

Apreciar a arte narrativa como "nadar num lago à chuva"

A Swim in a Pond in the Rain: in which four Russians give a master class on writing, reading, and life (2021) de George Saunders é um livro sobre a arte de contar histórias, em particular sobre arte do conto, em particular do conto russo. Não é um livro sobre "como escrever histórias", é um livro que discute a arte e ofício de quem escreve e os resultados do que se escreve. Saunders não apresenta um guião, nem uma estrutura para a desconstrução dos contos, antes apresenta os mesmos completos sobre os quais realiza, depois connosco, uma leitura próxima (close reading) de certas partes que podem focar-se: na forma, no estilo, no conteúdo, na relação com a vida dos autores, ou ainda em aspetos da tradução do russo. Ler e ouvir Saunders (o audiobook é narrado pelo próprio) falar sobre escrita e contos russos é um pouco como olhar para os olhos de uma criança quando se lhe coloca um prato cheio de doces na frente. A paixão transborda, oferecendo particular deleite a todos os comentários que vai fazendo a cada um dos contos ao longo da viagem proposta que nos oferece 7 contos (3 de Chekhov (In the Cart; The Darling; Gooseberries), 2 de Tolstói (Master and Man; Alyosha the Pot), um de Gogol (The Nose), e um de Turgenev (The Singers)).

julho 31, 2021

Samuel Beckett e a neurodiversidade

Comecei a ler “Molloy” de Samuel Beckett pouco depois de ter lido “The Pattern Seekers: How Autism Drives Human Invention” (2020) de Baron-Cohen, especialista internacional em autismo, e enquanto por acaso apanhava um episódio da série “The Good Doctor” [1] no Netflix, que retratava os dias de internato de um jovem médico autista. Com este fundo, comecei a ver a personagem Molloy emergir das páginas com uma caracterização muito distinta daquela que tinha criado a partir da leitura de resenhas e análises críticas da obra. Procurei saber mais sobre Beckett e descobri que o mesmo — tal como o seu mentor James Joyce — padecia do transtorno do espetro do autismo [2].

"Molloy" foi publicado pela primeira vez em 1951, em francês, pelas Éditions de Minuit. Só em 1955 Beckett realizaria a tradução para inglês.

abril 28, 2021

A tinta invisível que suporta as histórias

Invisible Ink: A Practical Guide to Building Stories That Resonate” (2010) é um livro prático, como diz o próprio subtítulo, por isso não se espere aqui grande estrutura, nem aprofundamento de conceitos, menos ainda densidade ou explicações detalhadas. Apesar disso, este trabalho de Brian McDonald acaba sendo bastante recompensador para quem decidir dedicar-lhe um par de horas, já que em tão poucas páginas de texto condensa um conjunto de ideias fundamentais para escrita de histórias para qualquer suporte. O autor está centrado no cinema, e utiliza imensos casos práticos, com particular destaque para Steven Spielberg, mas o que nos conta e explana é aplicável a qualquer meio narrativo. Nas linhas que se seguem deixo uma síntese do que me parece ser o mais relevante do livro.

dezembro 31, 2020

Sobre os padrões do design de narrativa

O livro "Meander, Spiral, Explode: Design and Pattern in Narrative" (2019) de Jane Alison é um trabalho de análise literária incomum. Foge aos cânones estabelecidos, para abraçar um conjunto de ideias mais próximas da análise estética das artes visuais, e por isso realiza um avanço na área que hoje definimos como Narrative Design. A autora resolveu encetar um trabalho de análise de estruturas narrativas, procurando histórias que se demarcam do arco dramático — princípio, meio e fim —, no fundo da linearidade narrativa. A sua proposta pode ser ligada a uma anterior apresentada por Madison Smartt Bell, “Narrative Design” (1997), indo além, aliás oferecendo parte daquilo que tinha sido a minha crítica a Bell, com um conjunto de modelos para o desenvolvimento do design de narrativa. 


Tendo em conta a relevância académica, acabei fazendo um artigo de revisão mais longo e publiquei-o no Journal of Digital Media & Interaction. Podem ler a resenha completa online.

dezembro 26, 2020

Design de Narrativa em Gabriel García Márquez

"Crónica de uma Morte Anunciada" (1981) pode ler-se como crónica, relato de eventos ocorridos, como o próprio título sugere, mas se melhor analisado poderemos ver que é um trabalho de narrativa experimental, como muito bem identifica Jane Alison na sua análise em "Meander, Spiral, Explode" (2019). Alison diz-nos que Márquez não conta uma narrativa linear, cronicando os eventos na sua ocorrência cronológica, mas antes o faz por meio de uma narrativa radial, expondo múltiplos elementos ao redor do evento e em direção ao clímax (ver imagem abaixo). À medida que ia lendo, fui concordando com Alison, e se tentei em parte compreender porque Márquez o fez, centrei-me mais em tentar perceber porque funciona para nós enquanto leitores.

Estrutura narrativa radial, uma proposta de Jane Alison

Se o relato dá conta de um assassinato consumado, logo nas primeiras páginas ficamos a saber: quem morreu e quem assassinou, assim como quando e porquê; ficando pouco para atiçar a curiosidade de quem lê, e no entanto seguimos atrás de Márquez sem qualquer problema, lendo sofregamente tudo, tentando entrar na cabeça de cada personagem que nos propõe, tudo para descobrir mais e mais sobre o "como"; porque é apenas isso que nos falta para fechar a história que se conta.

Mapa dos eventos de "Crónica de uma Morte Anunciada", criado pelo internauta JJ Marquete. Aqui podemos ver como todos os personagens e todos os eventos se ligam de forma centrípeta em relação à personagem principal de Santiago Nasar, o morto.

Enquanto lia, e tendo em conta o design da narrativa, fui-me sentido como no meio de uma pequena aldeia, ouvindo tudo e todos, aprendendo mais e mais sobre o como aconteceu. O crime é algo que nunca para de nos atrair, por mais que a nossa consciência tente dizer-nos que não nos diz respeito, é difícil passar ao lado de um acidente sem tentar olhar. Mas não é pela morbidez, na verdade o mesmo acontece quando o acidente não envolve feridos ou mortes, como um simples assalto. Por isso, o que temos é no fundo uma perturbação do estado das coisas, do padrão de normalidade, e a nossa ânsia ativa-se para perceber o que produziu essa alteração no padrão: o quê, quem, quando, porquê e claro como.

Inevitavelmente, isto prende-se com a nossa insaciável vontade de aprender, porque, evolutivamente, sobrevivemos melhor quanto melhor estivermos preparados, não só para lidar com os problemas, mas também para os antecipar e prever, medindo o alcance das suas consequências e evitando os seus potenciais danos.

E é disto que Márquez se aproveita, como no fundo aproveitam as histórias que se contam sempre, mas neste caso Marquez torna essa nossa avidez muito mais evidente porque poderíamos dizer que já sabíamos tudo o que havia para saber, contudo verificamos que assim não é, que à medida que as pessoas vão falando, vamos apreendendo dados desconhecidos sobre o sucedido e isso mantém-nos engajados, tentando encaixar os novos dados no modelo que já construímos sobre o que aconteceu e tentando compreender se se altera ou não a nossa perspectiva. Como se estivéssemos a tentar chegar a uma espécie de certeza absoluta sobre o sucedido. Enquanto o criador conseguir apresentar novos dados sobre o evento que possam de algum modo transformar o modo como pensamos que tudo aconteceu, a nossa atenção mantém-se e o interesse não desaparece.