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maio 13, 2023

Alucinando com Michel Foucault

"Hallucinating Foucault" (1996) é um romance de homenagem à obra de Michel Foucault. Patricia Duncker inventa um escritor de romances francês chamado Paul Michel e defini-o como espelho do verdadeiro Foucault. Se Foucault queria escrever romances e não escreveu, Paul Michel escreve-os e dedica-os a Foucault. Se Foucault teorizou sobre os processos de loucura e encarceramento, Paul Michel passa ele mesmo por esses processos. Se Foucault começou a sua carreira em Clermont Ferrand, é aí que Paul Michel termina a sua, internado depois de ter enlouquecido com a morte de Foucault. Se Foucault teorizou sobre a função do autor, Paul Michel centra-se na relevância do leitor. O livro leva-nos pela mão de um jovem doutorando que estuda a obra de Paul Michel e tenta compreender a pessoa por detrás da obra, apesar de defender que não lhe interessa a pessoa, o autor, apenas a obra. 

abril 02, 2023

Os Europeus e a cultura cosmopolita do século XIX

A experiência de "The Europeans" (2019) de Orlando Figes funciona como uma grande viagem cultural através de toda a Europa — da Rússia a Portugal — ao longo de todo o século XIX. Figes escolheu para companheiros de viagem: o ícone literário Ivan Turgenev, a renomeada cantora de ópera Pauline Viardot, e o seu marido Louis Viardot, crítico e historiador de arte. Três inseparáveis companheiros que percorreram toda a Europa durante as suas vidas, pondo em contacto as mais diversas culturas, dando assim suporte ao subtítulo: "Three Lives and the Making of a Cosmopolitan Culture". O registo apresenta uma simbiose perfeita entre a exposição de factos e o contar de histórias que poderiam quase ser ficcionais, quase checkovianas, mantendo-nos enredados ao longo das mais de 500 páginas. Figes faz-nos sentir nostalgia daquilo que não vivemos, nomeadamente quando dá conta do nascimento de correntes, de movimentos e renovados interesses da sociedade pela cultura e arte florescentes num tão diverso continente suportadas pela evolução tecnológica desse século, em particular os caminhos de ferro, o telégrafo, a imprensa, a fotografia, assim como a criação do copyright e do canône literário.

março 11, 2023

"Tar" (2022) de Todd Field

"Tar" é mais objeto de design do que obra de arte, no sentido em que a direção sintetiza tudo de forma estrita para produzir determinadas emoções e determinadas conotações. Se Cate Blanchet faz um bom papel, nem por isso pode ser vista como o cerne da obra, já que toda a sua performance é controlada no detalhe pela direção e montagem. Repare-se na quantidade de elementos que vão sendo introduzidos em cena, ao longo das 2h30, para desviar ou obrigar a focar a nossa atenção, assim como na imensidão de espaços em que encontramos a protagonista, oferecendo-lhe apenas presenças fugazes. Lydia Tar é profundamente caracterizada pelo mundo que a envolve, em particular os sons, mas também tudo aquilo que os outros consideram sobre ela. Quase como se ela deambulasse ao longo do filme, e o diretor fosse colocando elementos à sua volta que nos obrigam a realizar conotações sobre quem ela é, como pensa e sente. 

fevereiro 20, 2023

Bowie, um hino à vida

"Moonage Daydream" (2022) oferece-nos apenas duas horas sobre a vida de Bowie, focadas num infinitamente pequeno número de coisas que disse e fez, ainda assim parece-me que o realizador Brett Morgen criou uma excelente síntese do todo ao focar-se sobre os aspetos criativos, suas motivações e processos. Ao longo dessas duas horas somos brindados com interrogações sobre o humano, a sua existência, propósito e lugar. Bowie não foi mero artista, foi um criador natural, possuia dentro de si uma fome por explorar o inexplorado, por compreender o incompreendido, por ir além do conhecido.

janeiro 01, 2023

“Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles” (1975)

Se de nada mais valesse, o cânone que a revista britânica Sight & Sound* vem criando e revendo desde 1952, já serviu para demonstrar o quão enviesada pode ser a nossa visão de um mundo quando nos é apresentada por um grupo de pessoas pouco, ou nada, diverso. Foram necessárias sete décadas para que um filme criado por uma mulher chegasse ao Top 10, e tal foi apenas conseguido porque se alargou tremendamente o leque de críticos ouvidos (de 63 em 1952 para 1639 em 2022), mas acima de tudo porque se diversificou o seu género. 

dezembro 25, 2022

Média Artificiais (artificial media)

2022 ficará na história como o ano em que a Inteligência Artificial foi reconhecida pelas suas capacidades criativas. 

No dia 30 de novembro a OpenAI colocou na rede, em acesso gratuito, um assistente de IA, o ChatGPT, que em apenas 5 dias conseguiu mais de um milhão de utilizadores, alimentados pela curiosidade de contactar com as suas capacidades extraordinárias de conversação. No meio dos muitos defeitos que lhe fomos encontrando —erros factuais, invenção de dados, excesso de confiança, ou falta de “voz” —, todos tivemos de reconhecer que nunca tínhamos visto nada igual. É possível entrar em diálogo com o assistente, conversar sobre a mais ampla gama de assuntos e gerar momentos de profunda partilha empática construída a partir da autoilusão com base na naturalidade, eloquência e compreensão discursiva do assistente.

Mas não foi apenas a conversação que foi tomada de assalto. Meses antes, a 12 de julho, tinha sido divulgado um outro assistente, o Midjourney, depois, a 22 de agosto, era também divulgado o Stable Diffusion da Ludwig Maximilian University de Munich, e ainda a 28 de setembro, a OpenAI disponibilizava a todos o Dall-E 2. Estes três assistentes de IA partilham as mesmas competências de desenho de imagens, com a particularidade de apresentarem resultados originais, simultaneamente muito humanos, como se tivessem sido criados por seres humanos. 

dezembro 06, 2022

O mundo de “Control”

Joguei “Control” (2019) pela primeira vez no final do verão, na sua versão Ultimate (2021), o que me permitiu aceder à melhor renderização de todo o seu esplendor visual. É um jogo que se enquadra no género bem conhecido de ação-aventura em terceira-pessoa, com uma jogabilidade próxima de séries de jogos como "Infamous" (2011-2014) ou "Dishonored" (2012-2016). No campo da história, a influência imediata que podemos observar é do universo “X-files” (1993-2018), e em parte do mundo de “Annihilation” (2014/2018), com alguma aproximação a “Death Stranding” (2019) e também em parte “Beyond: Two Souls” (2013). Muito diferente destas influências temos duas coisas: a dificuldade e o ambiente visual. 

novembro 28, 2022

O Passageiro (2022)

16 anos depois de “A Estrada” (2006), e agora com 89 anos, Cormac McCarthy regressa com uma "portentosa" força narrativa. No campo da história pode haver alguma desilusão porque o enredo avoluma-se, mas nunca se chega a desenrolar. Contudo para um autor que chega a esta idade no ativo, mais importante do que ter algo para dizer, será a forma de o dizer, e nesse campo Cormac impressiona. Temos uma estrutura modular que se vai afirmando por meio de pedaços soltos de exposição que aos poucos vão desdobrando o espaço e o tempo, permitindo-nos reconstruir o mundo-história. Nada disto é novo, o que é novo é a particularidade do método de exposição que é maioritariamente feito por via da conversação. Praticamente tudo o que sabemos, sabemo-lo através das infinitas conversas de Bobby Western com todos aqueles com quem se cruza. Para alguns leitores, são um excesso divagante, contudo são estas conversas o cerne do livro, sem elas não seria possível todo este fluxo narrativo a acontecer sem enredo a desvelar-se. Vamos passando de conversa para conversa, seguindo o protagonista e as suas predileções, e é nelas que a nossa atenção se foca, são elas que nos fazem virar página atrás de página, que nos fazem não só descobrir quem é Western, mas especialmente quem era a o seu pai e a sua irmã. 

novembro 01, 2022

"Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio" (2021)

A história do livro é relevante, não só por tratar dos efeitos de famílias disfuncionais sobre menores, mas em particular porque a autora é especialista na jurisdição de família e menores. Contudo a estrutura criada para dar conta dessa mensagem perde-se no meio de um excesso de camadas simbólicas que acabam por ocultar aquilo que se pretende dizer.

A autora não se limitou a criar uma estrutura em que os 21 dias se movem ao revés, do final para o princípio. Acrescentou-lhe ainda todo um museu, o Rijksmuseum de Amsterdão, a partir do qual utiliza um conjunto de telas, desde "A Ronda da Noite" de Reembrandt a "Retrato de uma Jovem Mulher, com 'Puck' o Cão" de Thérèse Schwartze, a partir das quais vai realizando leituras e colocando em ação alguns dos seus elementos. E por fim, comete o pecado original português, do embelezamento do discurso com constantes figuras de estilo que contribuem para ofuscar ainda mais todo o significado do texto.

"A Ronda da Noite" (1642) de Reembrandt no Rijksmuseum

Faltou aconselhamento ou reflexão sobre os impactos desta estrutura. Os autores são livres, mas os autores não podem deixar de se colocar no lugar dos leitores, e tentar compreender como é que eles vão reconstruir a mensagem das suas obras. A liberdade artística não é total, o trabalho de um artista é um trabalho de comunicação, por mais que alguns artistas teimem em dizer que não criam para um público. Naturalmente espera-se que os artistas quebrem as regras, inventem, surpreendam, mas espera-se que o façam juntamente com todo um trabalho de ir ao encontro do seu público.

"Retrato de uma Jovem Mulher, com 'Puck' o Cão" (1879-1885) de Thérèse Schwartze

setembro 04, 2022

O lago existencial

"Lake" (2021) é um videojogo despretensioso sobre questões existenciais, em particular a relação entre a ambição material e a felicidade pessoal. Jogamos na pele de Kate, uma programadora de topo, 44 anos, nos anos 1980, que decide voltar por duas semanas à vila em que cresceu, o que a vai obrigar a questionar-se sobre tudo o que conseguiu, assim como tudo o que perdeu. Tudo é feito usando a linguagem dos videojogos, sem recurso a grandes monólogos interiores ou filmes explicativos. Durante 15 dias, somos a carteira da vila, em substituição do pai, e temos de distribuir o correio todos os dias, reencontrando assim as pessoas que deixámos para trás. Tudo isto acontece num lugar sereno, junto da natureza e um belíssimo grande lago que contribui para a criação da atmosfera propícia à reflexão na meia-idade.


"Lake" foi desenvolvido, em Unity, pela empresa holandesa Gamious

agosto 30, 2022

Em Memória da Memória

Maria Stepanova é uma poeta russa, recipiente do prémio russo literário mais antigo, o Andrei Bely, e da bolsa Joseph Brodsky, com poemas traduzidos em múltiplas línguas. Este seu livro, "In Memory of Memory" (2017/2021), foi nomeado para a pequena lista do International Booker Prize de 2021. Não é poesia, mas é lírico; não é ensaio, mas argumenta sobre arte e o humano; não é romance, mas conta histórias de gerações; não é uma autobiografia, mas centra-se sobre os membros da sua família; sendo tudo isto. Sai em Portugal em setembro pela Relógio d'Água.

agosto 27, 2022

A Idade Brilhante, entre 476 e 1320

Nos últimos anos temos assistido ao redescobrir da Europa Medieval por meio de muitos académicos historiadores que nos têm vindo a alertar para o facto das ideias do senso comum sobre a idade média não estarem corretas. É corrente encontrar na literatura, cinema ou jogos a idade média representada como um tempo de escuridão, sujidade e podridão assim como falta de educação, superstição e ignorância. Ora isto parece não encontrar paralelo na história real, aquela que tem vindo a ser estudada e aprofundada. "The Bright Ages: A New History of Medieval Europe" (2022) é apenas o mais recente exemplo deste trabalho de elucidação histórica a ser publicado. Ajudou-me a compreender melhor as motivações e a necessidade desta revisão da História, e ainda que tenha ficado com dúvidas sobre os avanços cultural e científico desta época, fiquei com poucas dúvidas sobre a hipérbole de trevas como temos representado este período em termos populares.

julho 16, 2022

O Jogo da Linguagem (2022)

“The Language Game” (2022) é mais um importante contributo para a abordagem comportamental da linguagem em detrimento da abordagem inata. Já aqui tinha trazido o trabalho de Daniel L. Everett, “How Language Began: The Story of Humanity's Greatest Invention” (2017), assim como "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) de Benjamim Bergen, ou ainda “Origins of Human Communication” (2008) de Michael Tomasello. A abordagem de Morten H. Christiansen, da U. Cornell e Nick Charter, da U. Warwick, é inovadora, apresentando uma teorização, com base em estudos empíricos, que defende a interação humana como base da linguagem humana, propondo que a produção de linguagem ocorre a partir de jogos de charadas. Cada um de nós procura compreender o outro e pela improvisação fazer-se compreender da melhor forma possível. Quando em face de alguém com quem não partilhamos a mesma língua, partimos para o uso de sons, expressões, gestos, poses, desenhos, construindo charadas que o outro possa chegar a compreender. 

julho 02, 2022

“Ethos” (2020), a jóia turca do Netflix

“Ethos” (2020) é uma série dramática turca e uma das jóias escondidas do Netflix. Partindo da telenovela turca faz o caminho inverso da nossa “Pôr do Sol” (2021), optando por usar os tropos não para gozo, mas para os maximizar em qualidade técnica e estética. No final, temos cinema sublime, com a câmara a contar a história e não as bocas dos atores, algo pouco visto em séries, mas não só, toda a composição visual dos cenários e guarda-roupa junto com atores de excelência deslumbrando-nos cena atrás de cena. A estrutura narrativa é também um prazer tremendo, seguindo uma lógica em rede (tipo “Magnólia” (1999)) muito bem desenhada capaz de nos surpreender e recompensar ao longo dos 8 episódios. Mas o que mais me marcou foi sem dúvida o tema do choque de classes e de valores, os cidadãos turcos seculares versus os cidadãos agarrados aos costumes da religião, e o modo como as crenças e os preconceitos corroem a identidade das mulheres, mas não só elas, e tudo com muito Jung à mistura.

maio 22, 2022

Um Reino Maravilhoso

Chega-se ao final desta obra não só com uma enorme vontade de visitar o Reino Maravilhoso, mas também, estranhamente, com uma certa pena de não se ter nascido transmontano! Graça Morais foi por estes dias agraciada com o Doutoramento Honoris Causa pela UTAD, mas Miguel Torga deixou-nos há muito, ambos artistas transmontanos, aqui evocados conjuntamente, Torga com um conto dedicado a Trás-os-Montes e Morais com cerca de 50 pinturas e desenhos. O conto termina evocando outro vulto transmontano, Camilo Castelo Branco.

Um Reino Maravilhoso (2002)

maio 12, 2022

O Instinto Humano

Miller passou as últimas décadas a defender a ciência por detrás da teoria da evolução em tribunais, apresentando argumentação contra os movimentos de criacionistas e defensores do design inteligente. Para quem ainda possa ter dúvidas sobre a evolução, nomeadamente fique reticente quando ouve que “tudo não passa de uma teoria”, Miller faz aqui um bom trabalho de desmistificação, apresentando evidências, ao nível do DNA, do processo evolutivo da vida na Terra. Mas Miller não escreveu “The Human Instinct”(2018) para explicar o suporte existente à teoria de Darwin, o seu objetivo é bastante mais vasto. A questão central aqui é a de saber se o evolucionismo por ter morto Deus, como disse Nietzsche, nos deixou realmente órfãos e entregues ao niilismo, ou se podemos encontrar no próprio processo evolucionário algo mais.

março 26, 2022

Desenho de Personagens, segundo McKee

"Character: The Art of Role and Cast Design for Page, Stage, and Screen" (2021) é o mais recente livro de Robert McKee e o quarto livro que leio dele. Tinha demasiadas expectativas sobre o mesmo já que o tema da criação e desenho de personagens é bastante complexo. Ao contrário da discussão geral sobre o desenho de histórias ou criação de mundos, a criação de personagens assenta muito na particularização, na criação de personas completas que almejam à realidade do que somos. Nesse sentido, por mais fórmulas que se construam, a sua definição fica inteiramente dependente da capacidade de observação e expressão de quem cria. E essa é, talvez, a grande razão pela qual este livro fica bastante aquém daquilo que McKee nos habituou. McKee constrói um modelo de análise e trabalho com um conjunto alargado de categorias, que vão dos simples modelos — redondas/lisas — a grandes discussões filosóficas sobre o que significa estar vivo, numa ânsia por conseguir chegar ao âmago da definição da figura que denominamos personagem, mas fica a meio do caminho. Se por um lado nos oferece imenso sobre os fundamentos do que contribui para o desenho de uma personagem, por outro, sinto que chegados ao final não nos deu muito mais do que aquilo que já tínhamos no seu livro principal, "Story" de 1997

fevereiro 07, 2022

"Syllabus" de Lynda Barry

Lynda Barry recebeu a MacArthur Fellowship em 2019, com 63 anos, com a seguinte menção: "Inspiradora do envolvimento criativo através de trabalhos gráficos originais e de uma prática pedagógica centrada no papel da criação de imagem na comunicação". Acabei de ler o seu livro "Syllabus: Notes from an Accidental Professor" de 2014 e fiquei completamente convencido do enorme valor desta professora da Universidade de Wisconsin-Madison da área de Criatividade Interdisciplinar. A sua forma de estar e trabalhar com os seus alunos é uma inspiração para quem quer que acredite no poder da arte e criatividade humanas.

janeiro 21, 2022

Primeiras obras literárias

As Primeiras Coisas” (2013) do português Bruno Vieira Amaral (1978) e “Antes de Partires” (2000) da irlandesa Maggie O'Farrell (1972) são obras que parecem não ter nada em comum além do facto de serem ambas primeiras-obras. Para mim, que as li em simultâneo, posso dizer que encontrei vários outros pontos de contacto, ainda que quando aprofundados resultem mais em contraste do que em similitude. No entanto, tratando estes pontos da abordagem e das competências de escrita dos autores pareceu-me suficientemente relevante agregar os dois num mesmo texto. Saliento ainda que ambas as obras foram premiadas com prémios nacionais para primeira-obra abaixo dos 35 anos, Amaral com o Prémio José Saramago, no valor de 25 mil euros, e O’Farrell com o Betty Trask Award, no valor de 20 mil libras. 

outubro 23, 2021

Kentucky Route Zero (2020)

Escondido sob a capa do surrealismo, corrente estética em que a causalidade é desconsiderada conduzindo a consideráveis violações estruturais da história, "Kentucky Route Zero" (KRZ) constrói todo um universo de referências desconectas que obrigam o jogador a ir atrás. Nada disto é original no mundo dos jogos — basta pensar em "The Beginner's Guide", "Everybody's Gone to the Rapture", "Inside". O que é aqui claramente distinto é o uso, diria abuso, do suporte texto. KRZ é muito mais ficção interativa do que jogo de aventura gráfica. A experiência prolonga-se por cerca de 10 horas, tendo sido publicado em 5 episódios entre 2013 e 2020, o que foi permitindo análises distintas no tempo, nomeadamente porque se inicia de forma imensamente promissora, pela inovação na narrativa interativa, mas termina num limbo quase-ausente de interação.