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fevereiro 22, 2020

"The Magus" de John Fowles

"The Magus" (1965) é um romance de género, encaixando perfeitamente no domínio dos thrillers psicológicos, ainda que escrito nos anos 1960 e por isso claramente rodeado de tiques culturais da época, o que por vezes faz com que se movimente por ambientes mais próprios ao drama psicológico. O livro é por vezes catalogado como dirigido a um público adolescente, contudo tal não é sustentado, apesar de apresentar um universo de aventuras e muitas vezes pouco refletido, isso terá mais que ver com o facto de ser a primeira obra escrita pelo autor do que com a sua intenção de comunicar diretamente para esse público. Dito isto, é um livro que se lê muito bem, desde logo porque John Fowles é um mestre na arte de contar histórias, conseguindo levar-nos a virar páginas sem darmos por isso. Quanto ao conteúdo, àquilo que Fowles teria para dizer, é algo mais complicado, mas que procurarei elucidar nos parágrafos seguintes.
Capa da primeira edição que dá conta dos cenários esotéricos criados por Fowles

Cheguei a este livro por meio de pesquisas por livros que fazem uso de condições de jogo no desenho da narrativa. A partir daí, os resultados das resenhas que li davam conta de um livro de grande interesse, capaz de surpreender e apresentar grandes respostas, um livro que torce a mente do leitor e o deixa a refletir. Por outro lado, conhecia o autor pela sua obra mais famosa “O Colecionador”, que ainda não li. Confesso, que logo nas primeiras páginas fiquei completamente agarrado pelo estilo de escrita. Muito direta, clara e simultaneamente misteriosa. Fowles escreve de uma forma aparentemente simples, parecendo que está a relatar a maior banalidade, contudo ao fazê-lo vai omitindo imenso sobre o que se está a passar, e são essas omissões que agarram a nossa imaginação, que nos prendem ali, para tentar a partir das linhas e páginas subsequentes descortinar totalmente o que está a acontecer. Contudo, ao fim de 1/3 comecei a sentir algum cansaço, apesar da escrita me manter ali, o motivo daquele universo parecia não mexer para lado nenhum, mas mantive-me porque das resenhas que tinha lido, era relatado isto mesmo, e fortemente aconselhado a continuar a leitura até ao final, o que acabei fazendo, apesar da extensão do livro.

Depois de terminar, dei por mim a questionar-me sobre o que tinha acabado de ler. Tudo o que foi sendo apresentado, foi sucessivamente questionado pelo texto e reapresentado sob outras perspetivas e possibilidades. Confesso que é difícil, e mesmo chato continuar a escrever sem tornar o enredo um pouco mais claro, além de que tal acaba por apenas contribuir para o modo misterioso como escreve o autor, e assim incitar a que se vá ler. Por isso ter acontecido comigo, vou tentar ser um pouco mais claro, sem contudo revelar essências da história.

Assim, contextualizando, os acontecimentos centrais dão-se numa ilha grega, quando o nosso protagonista, britânico solteiro e formado em Oxford, vai trabalhar para um colégio tipo inglês nessa ilha. Nicholas Urfe, o nosso jovem professor, encontra alguns concidadãos a viver na ilha, trava amizade com eles, a partir do que vão surgir um conjunto de eventos esotéricos que envolvem pessoas que aparecem e desaparecem, hipnotismos, seduções imersas no luxo, mas tudo isso vai sendo simultaneamente envolvido em grandes doses de racionalização e argumentação e até alguma ciência. Ou seja, Fowles cria um universo perfeitamente paradoxal, no qual pode exercer o seu total controlo para manipular o leitor, e levá-lo a acreditar em coisas diferentes, no virar de cada novo capítulo. Daí que o autor tenha tido como nome inicial para o livro, "Godgame". Ao longo do livro, somos continuamente postos a prova, desconfiamos de tudo, não sabemos a razão de nada, e chegado ao final do livro continuamos sem nada saber.

Posso dizer que ainda investi algum tempo a tentar dar conta da grande ideia ou mensagem que Fowles tinha para passar, mas rapidamente desisti, pois percebi que era uma miragem. Fowles escreveu este livro como experimento de escrita, tanto que não o publicou imediatamente, só depois de publicar um primeiro livro de contos. O livro decalca muito de perto a vida de Fowles, dando conta da dificuldade do autor em se desprender do seu mundo, tendo usado a escrita como modeladora de experiências, o que acaba a confundir-se com o próprio livro, e provavelmente sem se aperceber, acaba por tornar o livro algo distinto. Ou seja, no livro temos um grupo de pessoas que geram experiências e colocam as pessoas à prova, neste caso, Fowles cria o livro para colocar o leitor à prova. Desta forma, o livro torna-se relevante no meio literário não pelo que tem para dizer, mas antes pelo modo como simula no processo de leitura, exatamente a experiência que vai descrevendo. Por isso não admira que o livro surja por vezes citado como meta-ficção, apesar dessa poder apenas ser realizada na imaginação do leitor.

Em suma, é uma leitura prazeirosa, mas não posso dizer que surpreenda, ou seja capaz de elevar a experiência a níveis de espanto. Sim, mantem-nos às escuras e cria em nós uma vontade de chegar “à verdade”, mas ao mesmo tempo denota em excesso as manias dos anos 1960, dos esoterismos e psicanálise aos transcendentalismos. Por isso mesmo acaba denotando um certo pendor adolescente, pouco interessado em produzir um cenário mais sólido e ligado à realidade. Contudo, esta seria sempre a abordagem de Fowles nos seus romances, como ele diria nas entrevistas, já que ele não acreditava na ficção como algo indicado ao relato de ideias sérias. Aliás, ele diria mesmo sobre este livro em concreto: "It must remain a novel of adolescence, written by a retarded adolescent" (1977). Apesar disso, disse também algo que me deixou a refletir, nomeadamente sobre o seu percurso enquanto escritor:
“No one in my family had any literary interests or skills at all. I seemed to come from nowhere. I didn't really have a happy childhood. What bored me about my mother was her lack of taste. My father's great fault was that he hated France from his experiences in the war, at Ypres. And he liked Germany. We had a geographical falling out. I deviated at the wrong branch of European culture. When I was a young boy my parents were always laughing at "the fellow who couldn't draw" - Picasso. Their crassness horrified me.” (1977)

dezembro 31, 2019

Design de Narrativa 2010 - 2019

Mais uma década passada, mais um conjunto de artefactos narrativos que contribuíram para o avanço da nossa percepção sobre os modos como contamos e registamos histórias. Muitos destes parecem recuperar ideias com trinta, quarenta e até centenas de anos, mas acabam sempre por trazer algo de novo e impulsionar a reflexão sobre os modos de fazer. Nos primeiros lugares coloquei artefactos que abrem para media completamente distintos — filme-jogo, novela gráfica, novela objeto, filme interativo, jogo-livro, simulação-jogo —, que como se percebe pela categorização não são claros, ou melhor, não se encaixam num único medium, pela simples razão de que quebram as convenções dos supostos media de origem.

1. Her Story [Filme-jogo] (análise)
2. Here [Novela gráfica] (análise)
3. S. [Novela objeto] (análise)
4. Possibilia [Filme Interativo] (análise)
5. Return of the Obra Dinn [Jogo-livro] (análise)
6. Bury Me, My Love [Simulação-jogo] (análise)
7. The Stanley Parable [RV] (análise)
8. Alma, A Tale of Violence [Webdoc] (análise)
9. Pearl [Animação 360º] (análise)
10. Florence [Novela Gráfica-jogo] (análise)
11. The Art of Pho [Motion comic] (análise)
12. Bandersnatch [Filme interativo] (análise)
13. Way to Go [RV] (análise)
14. The Random Adventures of Brandon Generator [Motion comic] (análise)
15. This War of Mine [Simulação-jogo] (Análise)
16. Pry [Livro multimédia] (Análise)
17. Thirty Flights of Loving [Videojogo experimental] (análise)
18. Lifeline [Simulação] (Análise)
19. CIA : Operation Ajax [Motion comic] (análise)
20. Thomas was Alone [Videojogo] (análise)

Nesta lista coloco apenas artefactos que surpreenderam no design da narrativa — estrutura e medium. Muitos dos objetos que o têm feito pertencem ao domínio dos videojogos, contudo aqui destaco apenas as inovações. Em termos de qualidade narrativa, tendo em conta história e jogabilidade, dedicarei uma lista própria aos videojogos narrativos brevemente.

Além destes, deixo ainda um conjunto de objetos ou abordagens a que vale pena ficar atento no futuro próximo, tais como os audiobooks de Choose-Your-Own-Adventure e os audiobooks da Marvel que poderão vir a garantir lugares privilegiados em sistemas como a Siri ou Alexa, ou ainda as séries para plataformas móveis de novelas gráficas interativas — Episode ou Choices — que apesar de estarem numa fase embrionária conseguiram já um público bastante alargado.

dezembro 21, 2019

Comportamento: sobre o nosso melhor e o pior

As razões que fazem de “Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst” (2017) um livro obrigatório para todos os que estudam o Humano são as mesmas que Robert M. Sapolsky utiliza para descrever o comportamento humano enquanto “arco multifactorial”. Ou seja, o comportamento humano é apresentado enquanto resultado de um conjunto alargado de fatores biológicos e experienciais, produzindo a necessidade em Sapolsky de escrever um livro evocando um conjunto imensamente alargado de ciências — da biologia à psicologia, passando pela neuroendocrinologia, genética, psicologia evolucionária, primatologia, economia comportamental, teoria dos jogos, educação e ainda a antropologia, a política e a filosofia — não dando primazia a qualquer uma destas, antes buscando em cada uma as partes que contribuem para o resultado final do comportamento humano. Sapolsky não diferencia os genes da experiência, antes coloca ambos como pólos de um eixo dimensional entre os quais atuam múltiplos e variáveis fatores, e em que cada um destes afeta o funcionamento do anterior e posterior, tornando impossível determinar com certeza o que produz o quê. Este problema é o cerne das ciências que estudam o humano e acaba por explicar porque as humanidades nunca se vergaram às ciências. A leitura do comportamento, seja ele expressivo ou meramente funcional, requer além da descrição processual, que a ciência fornece, uma interpretação desse processo que só as humanidades podem fornecer. Por outro lado, é neste problema ou impossibilidade de fechar o ciclo causal que reside o núcleo do nosso livre-arbítrio.
Para entrar na abordagem proposta por Sapolsky apresento um excerto da Introdução que sintetiza a essência:
A behavior has just occurred. Why did it happen? Your first category of explanation is going to be a neurobiological one. What went on in that person’s brain a second before the behavior happened? Now pull out to a slightly larger field of vision, your next category of explanation, a little earlier in time. What sight, sound, or smell in the previous seconds to minutes triggered the nervous system to produce that behavior? On to the next explanatory category. What hormones acted hours to days earlier to change how responsive that individual was to the sensory stimuli that trigger the nervous system to produce the behavior? And by now you’ve increased your field of vision to be thinking about neurobiology and the sensory world of our environment and short-term endocrinology in trying to explain what happened.
And you just keep expanding. What features of the environment in the prior weeks to years changed the structure and function of that person’s brain and thus changed how it responded to those hormones and environmental stimuli? Then you go further back to the childhood of the individual, their fetal environment, then their genetic makeup. And then you increase the view to encompass factors larger than that one individual—how has culture shaped the behavior of people living in that individual’s group?—what ecological factors helped shape that culture—expanding and expanding until considering events umpteen millennia ago and the evolution of that behavior.
(…)
There are not different disciplinary buckets. Instead, each one is the end product of all the biological influences that came before it and will influence all the factors that follow it. Thus, it is impossible to conclude that a behavior is caused by a gene, a hormone, a childhood trauma, because the second you invoke one type of explanation, you are de facto invoking them all. No buckets. A “neurobiological” or “genetic” or “developmental” explanation for a behavior is just shorthand, an expository convenience for temporarily approaching the whole multifactorial arc from a particular perspective.”
Do meu lado pessoal, e além do que introduzi acima, o que me fez apaixonar pelo livro foi o facto do caminho científico-teórico reproduzido por Sapolsky ao longo do livro estar tão de acordo com o percurso que eu próprio tenho feito no estudo da Emoção e Cognição, e no modo como estas impactam a interação, comunicação e expressão humanas. Desde logo a evocação de Robert McLean e o cérebro triúnico, assumindo que é mais metáfora do que ciência, mas assumindo que é fundamental para compreendermos o funcionamento do processo cognitivo e emotivo do nosso cérebro. Passando depois pela discussão sobre a Amígdala, o Córtex Frontal, os Marcadores Somáticos, a Testosterona, a Oxitocina, a Serotonina e a Dopamina que impactam a Motivação, a Curiosidade e o Brincar, o Vínculo Parental, a Seleção Natural, a Seleção Sexual que por sua vez impactam os Genes e os transformam, desenvolvendo variações dimensionais do Competitivo ao Colaborativo, produzindo a Empatia que regula os níveis do "Nós vs. Eles". Muito disto foi amplamente discutido por tantos outros autores aqui evocados por Sapolsky desde o grande mentor Darwin até Dawkins, Damásio ou Kahneman, passando por Harlow, Zimbardo, Milgram e Pinker ou ainda Voltaire, Hobbes e Rousseau. Este percurso requer obrigatoriamente a multidisciplinaridade como poderão ver na minha prateleira Human Engagement no GoodReads.

Existem tantas partes do livro relevantes que gostaria de aqui transcrever, muitas delas apenas como re-afirmação de ideias e conceitos, outras como crítica social assente naquilo que a ciência nos vai deixando entrever, outras como portas para novas investigações e interesses. Mas é um livro impossível de sintetizar em duas ou três páginas, é um livro que precisa de ser lido e relido, apesar das suas 800 páginas, para que possamos interiorizar a compreensão da ciência existente e ganhar assim um maior entendimento sobre o que somos:
“Neuroimaging studies show the dramatic sensitivity of adolescents to peers. Ask adults to think about what they imagine others think of them, then about what they think of themselves. Two different, partially overlapping networks of frontal and limbic structures activate for the two tasks. But with adolescents the two profiles are the same. “What do “you think about yourself?” is neurally answered with “Whatever everyone else thinks about me.” (Cap. 6)
“Are we a pair-bonded or tournament species? Western civilization doesn’t give a clear answer. We praise stable, devoted relationships yet are titillated, tempted, and succumb to alternatives at a high rate. Once divorces are legalized, a large percentage of marriages end in them, yet a smaller percentage of married people get divorced—i.e., the high divorce rate arises from serial divorcers (...) Measure after measure, it’s the same. We aren’t classically monogamous or polygamous. As everyone from poets to divorce attorneys can attest, we are by nature profoundly confused—mildly polygynous, floating somewhere in between.” (Cap. 10)
“Worldwide, monotheism is relatively rare; to the extent that it does occur, it is disproportionately likely among desert pastoralists (while rain forest dwellers are atypically likely to be polytheistic). This makes sense. Deserts teach tough, singular things, a world reduced to simple, desiccated, furnace-blasted basics that are approached with a deep fatalism. “I am the Lord your God” and “There is but one god and his name is Allah” and “There will be no gods before me”— dictates like these proliferate (...) In contrast, think of tropical rain forest, teeming with life, where you can find more species of ants on a single tree than in all of Britain. Letting a hundred deities bloom in equilibrium must seem the most natural thing in the world." (Cap. 9)
“That when it comes to empathy and compassion, rich people tend to suck (..) Across the socioeconomic spectrum, on the average, the wealthier people are, the less empathy they report for people in distress and the less compassionately they act (..) (a) wealthier people (as assessed by the cost of the car they were driving) are less likely than poor people to stop for pedestrians at crosswalks; (b) suppose there’s a bowl of candy in the lab; invite test subjects, after they finish doing some task, to grab some candy on the way out, telling them that whatever’s left over will be given to some kids—the wealthier take more candy. (..) Make people feel wealthy, and they take more candy from children. What explains this pattern? (..) wealthier people are more likely to endorse greed as being good, to view the class system as fair and meritocratic, and to view their success as an act of independence — all great ways to decide that someone else’s distress is beneath your notice or concern.” (Cap. 12)
“But Pinker failed to take things one logical step further—also correcting for differing durations of events. Thus he compares the half dozen years of World War II with, for example, twelve centuries of the Mideast slave trade and four centuries of Native American genocide. When corrected for duration as well as total world population, the top ten [of world ever conflicts] now include World War II (number one), World War I (number three), the Russian Civil War (number eight), Mao (number ten), and an event that didn’t even make Pinker’s original list, the Rwandan genocide (number seven), where 700,000 people were killed in a hundred days." (Cap. 17)
Contudo, e apesar de tantos e tantos estudos, a verdade é que determinar o comportamento humano, as suas razões ou efeitos continua a ser imensamente complexo, e por isso termino com a grande conclusão do livro, que para mim é inspiradora:
If you had to boil this book down to a single phrase, it would be “It’s complicated.” Nothing seems to cause anything; instead everything just modulates something else. Scientists keep saying, “We used to think X, but now we realize that...” Fixing one thing often messes up ten more, as the law of unintended consequences reigns. On any big, important issue it seems like 51 percent of the scientific studies conclude one thing, and 49 percent conclude the opposite. And so on. Eventually it can seem hopeless that you can actually fix something, can make things better. But we have no choice but to try. And if you are reading this, you are probably ideally suited to do so. You’ve amply proven you have intellectual tenacity. You probably also have running water, a home, adequate calories, and low odds of festering with a bad parasitic disease. You probably don’t have to worry about Ebola virus, warlords, or being invisible in your world. And you’ve been educated. In other words, you’re one of the lucky humans. So try.
Finally, you don’t have to choose between being scientific and being compassionate.
No final do livro, no Epílogo, Sapolsky lista um conjunto de grandes conclusões, cerca de 30, das quais opto por destacar 5:

  • “Repeatedly, biological factors (e.g., hormones) don’t so much cause a behavior as modulate and sensitize, lowering thresholds for environmental stimuli to cause it.”
  • “Cognition and affect always interact. What’s interesting is when one dominates.”
  • “Adolescence shows us that the most interesting part of the brain evolved to be shaped minimally by genes and maximally by experience; that’s how we learn—context, context, context.”
  • “Often we’re more about the anticipation and pursuit of pleasure than about the experience of it.”
  • “We implicitly divide the world into Us and Them, and prefer the former. We are easily manipulated, even subliminally and within seconds, as to who counts as each.”

O livro já foi editado em Portugal pela Temas & Debates, sob o título "Comportamento: A Biologia Humana No Nosso Melhor e Pior".

abril 15, 2019

Viajar, uma volição de posse

Comecei a escrever este texto hoje duas vezes, primeiro por causa do excesso de turistas numa reserva natural de macacos no Japão, mas decidi parar. Depois, por causa de um estudo da eDreams desta semana que conclui que mais de 50% das pessoas na Europa e EUA já escolhem os locais de viagem em função do seu potencial "instagramável". Recomecei, mas parei. De ambas as vezes, refleti sobre o facto de ser semana de Páscoa e de estarem muitos de vós em viagem a gozar descanso e férias, não quis ferir suscetibilidades. Contudo, ao terceiro choque, o facto de terem construído um aeroporto numa ilha das Maldivas que as tartarugas utilizavam para pôr ovos, e agora se veem obrigadas a pôr os ovos no alcatrão, deixou-me estarrecido, e decidido a fechar e publicar o texto.

Maldivas. Tartaruga põe ovos no alcatrão de uma pista de aeroporto recém construída num pequeno atol. As duas imagens por baixo da tartaruga, mostram o atol antes e depois. [Notícia]

Cada vez sinto menos vontade de viajar fisicamente. Já viajei bastante, inúmeros países e lugares, para muitos será pouco, para mim é já demais. As viagens, romantizadas pela literatura, não representam qualquer procura de conhecimento, porque não se apreendem nem assimilam culturas numa semana, isto para não falar em fins-de-semana. Os visionários do turismo souberam aproveitar muito bem a ganância do ser humano, a sua ânsia por ter, a volição de possuir, para nos enfiar pela goela abaixo a necessidade de viajar. Vendem, em letras de slogan: “Ter coisas já não importa, viva experiências”. Mas as experiências culturais não se compadecem com viagens de fim-de-semana, esta são meras coisas que se compram e se colam ao peito do Instagram.

Refúgio de macacos japoneses, piscina natural de água quente, que se transformou em meca turística [blog post]

Sim, porque ver uns edifícios de pedra ou metal, uns quadros ou esculturas, umas árvores ou quedas de água, correndo para riscar os objetivos no mapa, conhecendo apenas o senhor da receção do hotel, ou o do café ao lado do apartamento AirBnB, que nos recebe com um sorriso artificial porque é o seu trabalho diário, e nos agradece a gorjeta no final, pouco antes de voltarmos, a correr de novo, para o aeroporto, não tem nada que ver com o enriquecimento do ser, corremos apenas atrás do status, do “eu estive lá”. Viajar, neste modelo, não é em nada diferente de comprar um carro para mostrar, uma casa maior do que as necessidades, ou vestidos/fatos, sapatos ou joias de estilista. Viajar assim, não tem nada que ver com ter experiências que nos mudam, que nos fazem crescer interiormente, tem apenas que ver com o crescer daquilo que temos. Viajar acaba sendo uma forma material de quantificar o nosso impacto, o quanto conseguimos crescer na escala comparativa. Visitámos já 5, 10 países, 20, 40, visitámos o monumento A ou B, na cidade Y ou Z, tudo isso são apenas coisas, garante de status.

Metade dos portugueses tem em conta o potencial “instagramável” do destino [Público New]. Na imagem uma das polémicas de há algumas semanas com o tirar de selfies nos campos de Auschwitz.

Mas e porquê falar disto se cada um é livre? Bem, sim, somos livres de viajar, temos os mesmos direitos de tantos outros antes de nós. Mas talvez tenha chegado o momento de questionarmos se ter o mesmo direito dos que vieram antes de nós, nos dá também o direito de destruir aquilo que irão receber os que vierem depois de nós. Porque é isso que estamos a fazer com a indústria do turismo, estamos a destruir património dos nossos antepassados, a destruir habitats de espécies, a destruir o planeta colocando aviões no ar que consomem toneladas de combustível fóssil de modo totalmente irresponsável, e estamos ainda a destruir as vidas de quem habita esses locais, provocando perturbações brutais no imobiliário, entre tantas e tantas outras questões. Valerá a pena?


Atualização 16.4.2019
As agências de viagens já nem sequer disfarçam. Foto de um catálogo recente de uma agência nacional.


dezembro 27, 2018

Experienciar como Humano

Tenho passado os últimos anos em busca de variáveis e modelos capazes de dar conta da essência e espectro que definem a Experiência Humana. Motiva-me a identificação daquilo que suporta a nossa experiência, da sua construção e variabilidade, para assim poder conceber modelos de interação humano-computador no campo do design de narrativa interativa (com propriedades de agência, jogo ou procedimentais) mais efetivos, ou seja, mais consentâneos com as propriedades ótimas do ser-humano. Nesse sentido, as leituras têm sido diversas: da psicologia à filosofia, passando pela cibernética, neurociência, computação, fenomenologia, emoção, desenvolvimento, biologia, etc., no fundo tudo aquilo que, de um modo ou de outro, tem servido as ciências cognitivas nas últimas décadas. Como sempre, em qualquer campo do conhecimento mas mais acentuado ainda no mundo multidisciplinar, quanto mais fundo escavamos mais problemas encontramos, mais dúvidas desenvolvemos, menos certezas conseguimos, mas não deixa de ser interessante o modo como vamos encontrando pontes entre as diferentes disciplinas, e as vamos anotando como espécie de nós relevantes. Estes elementos dão conta de conclusões provenientes de fundamentos díspares, mas que pela sua semelhança carregam consigo elementos fundamentais do conhecimento, que nos podem ajudar a tornar mais evidente o design do conhecimento que buscamos.


Vem isto a propósito da minha mais recente leitura, “The Embodied Mind, Revised Edition Cognitive Science and Human Experience” de Francisco J. Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch (VTR). A primeira edição saiu em 1991, o Francisco Varela morreu em 2001, e em 2016 Thompson e Rosch resolveram voltar ao livro e escrever longas introduções sobre o que se alterou, no conhecimento, ao longo das últimas décadas. A primeira edição foi recebida com grande entusiasmo na comunidade académica, com direito a resenhas de Daniel C. Dennett para o American Journal of Psychology (106, No. 1, 1993) e Hubert Dreyfus para o Mind (102:542-6, 1993). O livro apresenta várias nuances que lhe conferem um estatuto especial, desde logo a multidisciplinaridade dos autores: Varela, biólogo, Thompson, filósofo, e Rosch, psicóloga. Como se não bastasse, na ausência de conhecimento capaz de dar resposta à grande questão do livro, foram ainda buscar a filosofia do budismo.

O livro “Embodied Mind” fala, como o subtítulo diz, sobre as ciências cognitivas, procurando estabelecer um quadro de análise sobre a Experiência Humana. Era então, em face do que disse acima, mesmo isto que eu precisava, e só pecava por chegar tarde a ele, embora tenha de dizer que se lia constantes referências ao mesmo, nem sempre era pelas suas qualidades. Queiramos ou não, a multidisciplinaridade continua a gerar apreensão na maior parte dos académicos, e se lhe juntarmos conhecimento não validado experimentalmente (como o budismo) ainda pior. Podemos dizer que o livro está dividido em duas partes, uma primeira explicativa das Ciência Cognitivas, da sua génese, aceitação e transformação, até à identificação do seu problema — a incapacidade de definir a experiência humana —, e a segunda parte em que se apresenta uma resposta, a partir de diferentes ciências e filosofias, que é definida pelos autores como Enativismo.

Os autores começam por apontar um problema de partida nas ciências cognitivas, originadas na sua base das ciências da computação e da informação, que procuravam compreender a experiência como mera entrada e processamento de dados. Ou seja, a experiência humana seria construída numa base linear orientada a estímulos, assente numa espécie de processo sequencial computacional. Este cognitivismo clássico foi sendo depois re-trabalhado, com as neurociências a alargarem o seu entendimento com abordagens que ainda hoje são aceites, e que nos dizem que o nosso cérebro funciona de um modo não-linear, processando em paralelo e de modos distribuídos. Diga-se que nada que os artistas já não soubessem, basta olhar para o experimentalismo literário do modernismo (1910-1930), ou recordar o seminal artigo de Vannevar Bush, “As We May Think” (1945) responsável pelas bases daquilo que a internet veio a ser. Claro que esse classicismo foi originado, em grande medida, pela recusa do estudo do interior, da consciência, algo que a fenomenologia e a psicanálise abraçaram, mas foram sempre olhadas de lado pelas ditas ciências. E ainda hoje, as neurociências continuam investindo tudo na senda biológica e externa, na esperança de identificar objetivamente marcas do funcionamento interior. Neste sentido, se as neurociências conseguiram contribuir para a compreensão do funcionamento do cérebro, contribuíram até hoje pouco para a compreensão da Experiência em si.

Repare-se na contradição em que vivemos que subsiste até aos dias de hoje. As neurociências dizem-nos que o Eu é uma ilusão criada pelo cérebro, que aquilo a que chamamos consciência não passa de uma simulação neuronal, recentemente Anil Seth  chamou-lhe mesmo “alucinação partilhada”. Contudo, pessoalmente, "sentimo-nos como pessoas individuais, capazes de contactar diretamente com o mundo exterior". Isto agrava-se quando reequacionamos a ciência neste quadro. Se por um lado, acreditarmos no que esta nos diz — que a nossa experiência não passa de uma simulação —, então teremos de aceitar que a própria ciência não passa de uma ilusão, já que ela não se pode colocar “do lado de fora”. Por outro lado, se decidirmos seguir o nosso instinto experiencial, negar a evidência científica, então estaremos a colocar em jogo a própria experiência que precisa da ciência para avançar na compreensão de si. Isto embate ainda naquilo que os autores definem como potencial niilismo, de qualquer uma das opções. É a estes problemas que VTR tentam dar resposta, questionando-se: “será inevitável esta discrepância entre o conhecimento científico e a experiência?” e “seria possível reconciliar as ciências cognitivas e a experiência humana de algum modo?”

A abordagem proposta por VTR assenta em vários domínios, da fenomenologia à biologia, passando pela filosofia budista do mindfulness. Do lado da fenomenologia, temos a análise da experiência objetiva, a partir de processos reflexivos subjetivos, recusando a possibilidade do estudo empírico, o que não ajudava completamente ao que se pretendia, por isso VTR acabaram procurando no budismo. Aí foram buscar teorizações em redor da meditação, que segundo as mesmas, permitiriam levar-nos a um ponto de análise concreta da Experiência Humana. Num processo de meditação, somos levados a esvaziar a mente de tudo o que é exterior, os budistas referem que o treino intensivo e o seu objetivo final é chegar ao tibetano "rigpa" (o verdadeiro eu, ou “existência original”) (ver Rinpoche, 1992 e Ricard, 2007). O problema desta abordagem budista, apontado logo à primeira edição por Dreyfus, e agora reconhecida por Thompson na nova edição, é que a observação interior da experiência altera a própria experiência. No fundo, a meditação budista não se diferencia da abordagem fenomenológica.

O verdadeiro contributo do livro adviria por meio de todas estas teorias, mas acima de tudo da biologia e das ciências da informação. Varela foi estudante de Humberto Maturana, um dos grandes mentores da evolução da cibernética, ciência dos sistemas, com semelhanças no pensamento a Gregory Bateson. Maturana, tinha trabalhado numa teorização sobre os sistemas vivos que serviria depois para definir a cognição, propondo o conceito de “autopoiesis” que definia os organismos vivos como sistemas capazes de se manter e reproduzir, tendo como exemplo a célula. Daqui Maturana e Varela vão propor em 1980, no livro “Autopoiesis and Cognition. The Realization of the Living”, aquilo que ficaria como conhecida como a sua teoria de cognição:
“Living systems are cognitive systems, and living as a process is a process of cognition. This statement is valid for all organisms, with or without a nervous system.” (p.13)
Nesta proposição, Maturana e Varela estão a dizer-nos que a cognição não é mais do que a nossa habilidade de nos adaptarmos a cada ambiente. Que a cognição é fruto da evolução interativa entre o sistema e o ambiente, a capacidade que este tem de reagir aos desafios que o ambiente vai apresentando, do que vão emergindo esquemas e experiências que acabam constituindo aquilo que definimos como cognição. Estamos a falar de teoria da evolução, mas estamos a falar da cognição enquanto processo emergente dessa evolução, capaz de gerar a consciência a partir do individuo e da sua relação com o ambiente. Sobre este processo de cognição, constrói-se depois o da comunicação, como vimos aqui recentemente por Tomasello, responsável pela partilha de experiências entre sistemas, conduzindo à criação de experiência geral partilhada, comum aos sistemas. Ou seja, ampliando a complexidade cognitiva do plano individual por via do plano coletivo.

Assim, a proposta final de VTR, apresentada como “embodied cognition”, diz-nos que a “cognition depends upon the kinds of experience that come from having a body with various sensorimotor capacities, and second, that these individual sensorimotor capacities are themselves embedded in a more encompassing biological, psychological and cultural context." (p.172-173), a partir do que vão apresentar o seu conceito de Enativismo:
"emphasize the growing conviction that cognition is not the representation of a pre-given world by a pre-given mind but is rather the enactment of a world and a mind on the basis of a history of the variety of actions that a being in the world performs" (p.9)
O mais interessante desta proposta é: por um lado, a sua relação com uma proposta de Jerome Bruner, sobre os três modos de representação do conhecimento — "enactive", "iconic", "symbolic" (1966); e por outro, a oposição entre as definições de representação. VTR batalham muito para eliminar a ideia de “representação”, já que essa pressupõe a tal mímica de um mundo exterior que querem evitar. Pois se existe um mundo exterior, voltamos ao problema anterior, da experiência como ilusão ou não desse mundo. Seguindo o enativismo, não existe o mundo exterior e a mente que o copia, mas ambas fazem parte de um mesmo todo. No caso da definição de Bruner, a representação em modo enativa, refere-se ao modo como o conhecimento se constrói pelo indivíduo, se este é construído por via do “aprender fazendo”, ou pela via da cópia por metáforas, ou ainda de alto-nível, simbólica. Podendo dizer que existe uma contradição, não a vejo enquanto tal, já que a recusa da palavra representação no caso VTR tem mais que ver com valor semântico atribuído à palavra. Aliás, por isso mesmo as teorias do enativismo de VTR têm sido ligadas à "cognição situada", e ainda discutidas com preceitos já muitas vezes utilizados nas discussões do conhecimento tácito de Polanyi (1966).

Para finalizar, não quero deixar de ligar esta abordagem do enativismo, como cognição assente na autopoieses, a uma outra ideia, a do Tempo que aqui trouxe a partir de Carlo Rovelli. O tempo, segundo Rovelli, não é entidade ou propriedade, mas é movimento. Deste modo, argumenta que a realidade tal como a concebemos, feita de objetos, não existe, já que tudo não passa de movimento contínuo e perpétuo para a desintegração. Neste sentido, poderíamos dizer: a cognição não parte de um Eu para copiar um Mundo exterior, já que nem o mundo existe, nem o Eu existe, tudo não passa de um processo continuado, em que pela enação construímos e reconstruímos, um Eu e um Mundo, até ao seu desaparecimento completo, ou regresso ao caos.

dezembro 24, 2018

“Gris”, experiência sensorial

Desconfiei da beleza visual de “Gris” (2018) porque foram inúmeras as vezes, no passado, em que tal se revelou mera superfície sem qualquer substrato. Algumas das resenhas que li inclinaram-me mesmo a deixá-lo para jogar apenas em 2019. No entanto, algo fez com que o comprasse na Steam junto com mais alguns jogos nas promoções deste Natal. Por isso, se sabia que a ilustração me ia deslumbrar, esperava pouco do resto, nomeadamente acreditava que a jogabilidade seria fraca, e que por isso o fluxo seria um tanto arrastado, tudo muito suportado no campo visual apenas. Nada poderia estar mais errado, “Gris” é um exercício de completo domínio de todas as artes envolvidas na criação de um artefacto interativo: da ilustração à interação, passando pela câmara, animação, som e música.



Sendo um jogo de plataformas, não se espere nada que o relacione com outros plataformas deste ano, seja “Celeste” (2018) ou menos ainda “Iconoclasts” (2018) ou “Dead Cells” (2018). “Gris” é uma experiência singular, não existe nada que se lhe assemelhe, é uma obra marcada por uma intensa direção artística. Posso talvez invocar, no plano visual, “Child of Light” (2014), e no campo experiencial, do fluxo interativo, o trabalho de Jenova Chen, “Journey” (2012). Mas se Chen é um visionário do fluxo de interação, Conrad Roset é apenas um artista de aguarela, o que quer dizer que “Gris” não é uma obra de uma pessoa apenas.

A equipa por detrás de “Gris” é composta por três pessoas, todas baseadas em Barcelona. O artista Conrad Roset (1984), que já expôs um pouco por todo o mundo, desde o MoMA em Virginia, ao Show Studio em Londres, passando pela Steven Kasher Gallery em Nova Iorque ou TiposInfames em Madrid, imensamente comissionado para trabalhos de ilustração, possui um significativo número de seguidores. Desenvolveu um estilo próprio, facilmente reconhecível, assente na aguarela colorida em contraste com fortes formas a tinta preta, socorrendo-se bastante da silhueta e sensibilidade femininas como motivação. Em segundo, temos Roger Mendoza que trabalhou na última década na indústria AAA, fazendo programação de IA e gameplay, essencialmente para a série Assassin’s Creed, tendo trabalho no "Assassin’s Creed III" (2012), "Assassin’s Creed IV" (2013) e "Assassin’s Creed: Syndicate" (2015). E por fim, Adrian Cuevas, outro especialista em tecnologia e programação, que também veio dos AAA, onde esteve envolvido em “Far Cry 3” (2012), “Tom Clancy's Rainbow Six: Siege” (2015), e “Hitman: The Complete First Season” (2017). Mendonza e Cuevas resolveram deixar os AAA, e em 2016 juntaram-se a Roset para criar o Nomada Studio em Barcelona. Com dois especialistas em tecnologia, treinados ao mais alto nível para garantir a fluidez do gameplay, e um especialista em arte visual, algo de qualidade teria de ser possível criar.




As competências que suportam a criação de “Gris” explicam porque a ideia que tinha, do indie belo mas gorado, não aconteceu. Roset tinha uma visão criativa, mas Mendoza e Cuevas sabiam como lhe dar forma, como a sustentar ao longo de 5 horas, e contribuir para o densificar dessa visão. Quando se entra em "Gris" e começamos a jogar, mesmo não sabendo nada sobre as pessoas por detrás da obra, sentimos de imediato um trabalho altamente apurado, refinado e polido por alguém que sabe muito bem o que está a fazer. Além disso, estes tiveram ainda a humildade de procurar quem sabia mais do que eles, em áreas como a animação, o irmão de Roset foi buscar Adrian Miguel, que já tinha trabalhado em "Invizimals", e para o sound design, Mendoza trouxe Ruben Rincon, que já tinha trabalhado para “Assassin’s Creed III” e para o português “Between Me and the Night” (2016). Para coroar todo este trabalho, e encorpar completamente as aguarelas de Roset, posso dizer que a entrada de Berlinist, banda composta por Gemma Gamarra, Luigi Gervasi e Marco Albano e responsável pela banda sonora, eleva o jogo em vários patamares experienciais. Os Berlinist trabalham bastante no campo ambiental e atmosférico, em certos momentos pareceu-me existir um traço futurista, a fazer lembrar a banda sonora de "Blade Runner 2049" (2017) de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer.

Pegando neste último ponto, o da experiência, é nele que “Gris” mais investe. Na minha modelação do Design de Experiência tenho dividido o mesmo em três camadas — funcional, sensorial e significado. “Gris” não está propriamente focado no significado, em contar uma história, “Gris” desenvolve-se completamente no plano sensorial. Ou seja, “Gris” trabalha a interação pela forma, busca impactar e transportar emocionalmente o jogador, mais do que fazê-lo pensar nesta ou naquela ideia. Assim como a narrativa não é o fundamento, o jogo também não o é, ele está lá como está a história, mas são ambos suporte. O foco são mesmo as imagens e a música que juntos garantem uma experiência audiovisual interativa única, suficientemente abstrata para que possamos preenchê-la com as nossas experiências, deixando-nos guiar pelo pautamento emocional que nos vai sendo imposto.

setembro 30, 2017

O Sentido do Fim (2011)

Começar por enquadrar o facto deste livro ter recebido o Man Booker Prize em 2011, e o seu autor, Julian Barnes, ser tido como um escritor de peso no Reino Unido, conhecido pelas suas narrativas sobre o tempo e a memória, tema que acaba estando no centro deste “O Sentido do Fim”.


O protagonista, Tony, começa as primeiras páginas a recordar os tempos do final de liceu, da descoberta sexual na companhia dos amigos mais próximos, depois dá conta que está na reta final dos seus dias e entra pelo repensar do que viveu adentro. Uma das namoradas que teve, Verónica, acaba por estar no centro de toda a trama juntamente com o seu amigo mais dotado intelectualmente, Adrian. O fundo da narrativa são as memórias, mas em essência Barnes está focado no modo como ao reviver experiências das nossas vidas acabamos por as transformar, o que em certa medida é inevitável.

Somos feitos de memórias, nada mais existe do que isso, tudo o resto, material ou físico, apesar de real é externo, distante de nós mesmos, por isso somos aquilo que as nossas memórias nos oferecem, nada mais. Vivemos para criar memórias, é nelas que nos revemos, o nosso Eu autobiográfico é o modo como nos compreendemos a nós mesmos, mas é também o modo como compreendemos a realidade. O problema é que as memórias estão seguras por ligações sinápticas que tendem a adulterar-se no tempo. As memórias que não recordamos tendem a definhar, acabando por simplesmente se extinguir, por outro lado a cada nova experiência vivida criam-se novas ligações neuronais que se ligam às que já detemos. Deste modo, se o recordar reforça os momentos mais marcantes da nossa vida, o facto de o recordar não poder acontecer isolado, acaba por contaminar, e no fundo atualizar as memórias passadas, transformando-as.

No caso de “O Sentido do Fim” essa transformação é ainda mais intensa, pelo facto de as memórias retidas durante décadas serem chamadas a ser verdadeiramente atualizadas com informação desconhecida à data em que tinham sido criadas. Isto mexe connosco, sendo as memórias o sustentáculo do edifício narrativo do Eu, se por alguma razão somos chamados a alterar uma dessas basilares, o questionamento de nós mesmos pode levar a colocar toda uma vida em questão.

Quanto à minha experiência de leitura, tenho de dizer que senti muito intensamente toda a primeira e segunda parte. O questionamento intenso exercido pela belíssima escrita de Barnes. Tenho mesmo de confessar que o modo como as viagens nostálgicas são trabalhadas em termos narrativos, me levaram a encetar as minhas próprias viagens ao passado memorizado, tornando toda a leitura ainda mais intensa, porque estas viagens nunca são fáceis, nomeadamente quando somos levados a ponto de questionar, “e se tivesse sido assim, em vez de assim”? E o mais interessante é que nem me apercebi que estava a realizar aquelas viagens nostálgicas por conta do livro, mas quando percebi que a razão assentava em Barnes, resolvi parar a leitura, desacelerar, para a poder sorver mais e melhor. Mas depois comecei a sentir a nostalgia tomar conta em demasia de mim, e resolvi voltar ao livro para o terminar e tentar fechar esse meu próprio passado.
“Mas o tempo… o tempo primeiro fixa-nos e depois confunde-nos. Pensávamos que estávamos a ser adultos quando estávamos só a ser prudentes. Imaginávamos que estávamos a ser responsáveis, mas estávamos só a ser cobardes. Aquilo a que chamávamos realismo acabava por ser uma maneira de evitar as coisas e não de as enfrentar. Tempo… deem-nos tempo suficiente e as nossas decisões mais fundamentadas parecerão instáveis e as nossas certezas, bizarras.” 
Dito isto, percebe-se que a leitura foi sentida, fez tremer o meu mundo interior, e por isso seria natural esperar que o livro conseguisse manter pelo menos essa capacidade até ao final, mas não funcionou comigo. No final Barnes tem um belíssimo “plot twist” à nossa espera, como digo, bem escrito, mas que não conseguiu tocar o meu interior. Li-o e reli-o, e gostei mas não senti. Julgo que a magia do que conseguiu produzir em mim com as incursões e deambulações pelas memórias nas primeiras duas partes se perdem depois, quando tenta recuperar dessas viagens e dar um sentido ao todo, criar uma coesão e fechar o que tinha aberto.

Findo esta breve análise sem conseguir propriamente compreender o Man Booker, que talvez tenha sido, em certa medida, responsável por fazer-me esperar que o final fosse levar-me ainda mais longe na intensidade exploratória do Eu. O tom detetivesco que assume para mim apenas menoriza o alcance e tom de toda a obra. Talvez também não ajude o facto de o livro ter apenas 150 páginas, com bom espaçamento, não tendo tempo para criar um verdadeiro fulgor nas vidas dos personagens, que parecem passar por nós demasiadamente fugazes. Entretanto fico a refletir sobre o facto de estar ainda longe da idade do protagonista, e talvez por isso mesmo não tenha conseguido sentir o que seria expectável. Por isso fica a promessa a mim mesmo de cá voltar quando lá chegar.


Nota: Acabei de ver o trailer do filme homónimo, estreado no início deste ano, e recomendo que não vejam nem o filme nem o trailer antes de ler. Reconheço demasiado bem o universo utilizado para o filme no trailer, faz parte de uma corrente cinematográfica britânica, mas nada tem que ver com o universo por mim imaginado. Mais, provavelmente se tivesse visto o filme, não teria conseguido viajar pelas minhas próprias nostalgias.

abril 17, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume I

Êxtase e deleite, são os adjetivos que me ocorrem ao terminar de ler “Do Lado de Swann”, o primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust, publicado em 1913. Contudo estas sensações não se deram facilmente. Este primeiro volume acompanha-me há mais de dez anos, comprei-o no ano de lançamento da tradução portuguesa de Pedro Tamen, em 2003, influenciado por todo o burburinho de imprensa. Desde então tentei lê-lo várias vezes mas nunca passava da página 50. Em 2013 pela comemoração do centenário do lançamento do primeiro volume voltei a pegar-lhe como atesta o meu Goodreads mas nada. As impressões de cada uma dessas tentativas falhadas, invariavelmente reportavam enfado e sonolência. Proust descrevia tudo tão minuciosamente, aborrecia porque ausente de conflito e desse modo de enredo, tornando um suplício a sua leitura. E no entanto desta vez, ao chegar à página 150 um clique ocorreu dentro de mim, sim em mim porque na escrita nada se alterava até esse momento. A partir desse momento a minha leitura e a escrita de Proust entravam em sintonia, o ritmo que até aqui era lento e sonolento passava a sentir-se como sereno e tranquilo. A minuciosidade era agora assimilada com ritmo compreendendo musicalidade, impressionava a cada novo parágrafo, criando ânsia pelo parágrafo seguinte, pela página seguinte, por continuar a ler deleitando-me a cada novo instante.


Não quero entrar em muito detalhe sobre o texto já que este é apenas o primeiro volume de sete, 450 páginas de 3200, mas farei o possível por ir escrevendo impressões, ainda que breves, sobre cada um dos volumes que for lendo. Se conseguir, no final procurarei então escrever sobre os temas e a obra como um todo.

Deste modo, e falando apenas deste primeiro volume, devo dizer que após o primeiro dia de reflexão sobre o que li, discerni três abordagens, ou três dimensões, distintas de acesso à obra, cada uma origem de diferentes formas de prazer, o que dá conta do potencial estético do texto. Antes de as descrever, dizer que apesar de ser uma obra seriada, este primeiro volume apresenta um claro arco, com um fechamento que sabendo nós que não o é, se sente, porque o livro como que realiza um círculo, voltando ao ponto de partida, embora mais tarde no tempo. Proust liga as pontas, conecta os personagens, e provavelmente prepara o terreno para os próximos volumes. Indo agora às dimensões de que falava, temos:


1 - As histórias de amor
Este é, para mim, o nível menos relevante mas é o nível no qual o texto assume um carácter mais standard, seguindo a lógica realista de crítica de costumes, encaixando nas tradições do romance do século XIX, início de XX. Ele está mais presente no miolo do livro, ou seja na segunda parte do primeiro capítulo (“Combray”) e em todo o segundo capítulo (“Um amor de Swann”). É uma componente do texto em que o enredo assume domínio sobre a forma escrita, em que somos levados pelos relatos de acontecimentos, em que o conflito surge, seguimos atrás de um homem que se esvai em ciúme. O melhor desta parte acaba sendo a minuciosidade como Proust descreve esse ciúme, o detalhe que nos faz recordar momentos das nossas vidas, questões que nos colocámos a nós próprios em situações semelhantes.
“Talvez não soubesse o quanto ele fora sincero durante a briga, ao dizer-lhe que não lhe mandaria dinheiro e procuraria fazer-lhe todo o mal possível. Talvez tampouco soubesse da sua sinceridade, se não com ela, pelo menos consigo mesmo, em outros casos em que, em prol do futuro da sua ligação, para mostrar a Odette que era capaz de passar sem ela, havendo sempre possibilidade de um rompimento, resolvia Swann passar algum tempo sem visitá-la.” (tradução de Mario Quintana)

2 - A análise estética do real e social
Este é um ponto muito rico, embora de mais difícil acesso para a generalidade dos leitores, já que diz respeito ao modo como Proust usando toda a sua sensibilidade estética, construída durante os anos em que dedicou textos à análise de várias obras de arte, se dedica a desconstruir a realidade, usando metáforas a partir de uma tríade de artes – literatura, pintura e música. Esta desconstrução acontece com maior força na primeira e última partes do livro. Em que Proust assume a primeira-pessoa, e nos fala diretamente, ainda que pela voz de um personagem por si criado. É neste registo que surge, logo no início do livro, o famoso episódio da Madalena, que não irei citar agora, e toda a discussão sobre o poder das "memórias involuntárias", sobre o que espero falar no final.

Quando Proust entra neste registo é como se o texto assumisse o lugar de pincel ou batuta, e sentimos o mundo escrito como borrões de tinta, ou rasgos de notas. As suas descrições dos campos de Combray são tão esteticamente detalhadas que não apenas nos sentimos transportados para o espaço, mas para um espaço especial criado pela sua capacidade oratória que plastifica e embeleza toda aquela realidade.
“O meu maior desejo era ver uma tempestade no mar, não tanto como um belo espetáculo, mas como a revelação de um instante da verdadeira vida da natureza; ou antes, para mim só eram belos os espetáculos que eu sabia não terem sido artificialmente arranjados para me agradar, mas que eram necessários e imutáveis — a beleza das paisagens ou das grandes obras de arte. Apenas tinha curiosidade e avidez daquilo que julgava mais verdadeiro que o meu próprio ser, aquilo que tinha para mim o valor de me mostrar um pouco do pensamento de um grande gênio, ou da força ou graça da natureza, tal qual se manifesta quando entregue a si mesma sem intervenção humana. Assim como o lindo som de uma voz, isoladamente reproduzido pelo fonógrafo, não nos consolaria da perda de nossa mãe, uma tempestade mecanicamente imitada me deixaria tão indiferente como as fontes luminosas da Exposição.” (tradução de Mario Quintana)
“Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com essa justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorraçado. ” (tradução de Mario Quintana)

3 - A forma da escrita
Por fim a forma da escrita, cerne da estética da obra Proustiana, está presente em todo a extensão do livro, por vezes de forma mais leve, outras assumindo um pendor pesado, como que a dizer: “olha para mim, olha para cada palavra escolhida, olha para as frases que se entrelaçam sem fim, os torvelinhos de ideias tecidas em mim e sobre mim através do que prendo os teus olhos, cerco a tua mente, e carrego sobre o teu coração”. Não admira que Proust tenha demorado anos a concretizar a obra, e tenha deixado dezenas e dezenas de cadernos de notas sobre a construção da mesma, já que o que aqui vemos, apesar de poder brotar da sua competência literária, é também fruto de um trabalho de grande minúcia artesanal, uma atenção obsessiva com o detalhe.
“Mesmo quando não pensava na pequena frase [da sonata de Vinteul], ela existia latente em seu espírito, da mesma forma que algumas outras noções sem equivalente, como as noções de luz, de som, de relevo, de volúpia física, que são as ricas posses com que se diversifica e realça o nosso domínio interior. Talvez as percamos, talvez se extingam, se voltarmos ao nada. Mas, enquanto vivermos, e tal como acontece no tocante a qualquer objeto real, não podemos fazer como se as não tivéssemos conhecido, como não podemos, por exemplo, duvidar da luz da lâmpada que se acende diante dos objetos metamorfoseados de nosso quarto, de onde se escapou até a lembrança das trevas.” (tradução de Mario Quintana) 

Não quero terminar sem deixar de citar as palavras de Woolf enquanto lia este primeiro volume da obra de Proust, que agora depois de o ter lido, e sentido, percebo completamente:
“Proust so titillates my own desire for expression that I can hardly set out the sentence. Oh if I could write like that! I cry. And at the moment such is the astonishing vibration and saturation and intensification that he procures — there’s something sexual in it — that I feel I can write like that, and seize my pen and then I can’t write like that. Scarcely anyone so stimulates the nerves of language in me: it becomes an obsession. But I must return to Swann.”

“My great adventure is really Proust. Well what remains to be written after that? I’m only in the first volume, and there are, I suppose, faults to be found, but I am in a state of amazement; as if a miracle were being done before my eyes. How, at last, has someone solidified what has always escaped and made it too into this beautiful and perfectly enduring substance? One has to put the book down and gasp. The pleasure becomes physical like sun and wine and grapes and perfect serenity and intense vitality combined.”
Virginia Woolf

Edição lida: Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido - Volume I - Do Lado de Swann”, Relógio D'Água, ISBN 9789727087303, trad. Pedro Tamen, 2003, p. 450

Nota sobre os excertos: uso a tradução de Mario Quintana para os excertos porque não tenho acesso ao texto em digital da tradução lida. Espero falar sobre as traduções no final, mas das várias que tive oportunidade de folhear, e comparar com o original, as duas melhores são sem dúvida a de Quintana e Tamen.


Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

março 15, 2015

Toca Boca e o design de interação

Toca Boca (Suécia) é um estúdio de jogos para tablets que conseguiu alcançar um enorme reconhecimento nos últimos anos, nomeadamente na área dos jogos para crianças. Os seus jogos, ou se preferirem brinquedos digitais, são adorados pelas crianças, os pais sentem-se satisfeitos e seguros, e a crítica baba-se com a sua inventividade. Em três anos, com 30 pessoas, criaram 24 Apps que foram descarregadas mais de 80 milhões de vezes. Como é que isto é possível? Deixo algumas respostas:





1 - Design Centrado no Utilizador (User-Centered Design - UCD)

O estúdio Toca Boca, como não podia deixar de ser num estúdio com origem num dos países que mais tem defendido o UCD, segue as regras básicas, mas fundamentais, do design de interação centrado na pessoa do utilizador. Deste modo, quem desenha está longe de o fazer a partir de um pedestal teórico, ou baseado na experiência de anos de acumulada sapiência. O primeiro ponto, e que é a regra de ouro, é saber para quem estamos a desenhar o nosso jogo. O Toca Boca preocupa-se em analisar as crianças, em saber o que fazem, podem fazer, e quando podem fazer, usando métodos como “Pratical Play”, “Paper Play” ou “Play Observing”, muito próximo dos métodos que vamos usando no engageLab.
children everyday lives are mostly made by adults, directed by them, they are told when to get up, how to learn at school, what to eat, they take on a very observatory role most of the time, the one area where they can take control and experiment with things, play, is schedule into their everyday (..) lots of the times kids take something that exist at the adult world and role play through it, and test and try different things, and it gives them an opportunity to try things out, do things in their own way and not worry about failure (..) we’re inspired by this [kids roleplaying] at Toca Boca and how the digital experience could enhance these forms of roleplaying.Willow Mellbratt, na talk que podem ver no vídeo abaixo
2 - O Hardware faz parte da experiência

A abordagem que é feita à plataforma tablet não é, de todo, desprezível, desde logo porque o estúdio não se limita à ideia de Jogo, abrindo para a ideia do Brincar, tentando assim explorar o tablet como parte da fantasia, como brinquedo que potencia a experiência do brincar.

3 - Creative Play

O creative play está no centro da criação de Empatia. Ao permitir que as crianças criem algo, que sentem como verdadeiramente seu, dá-se a realização pessoal, uma necessidade intelectual fundamental no ser humano. A percepção da realização por meio da actividade, gera uma ligação forte com o jogo, a um nível que normalmente só se consegue gerar na relação com outros seres humanos.

4 - Função Social

A razão pela qual os pais ficam satisfeitos e se sentem seguros com os jogos da Toca Boca é porque eles são criados a pensar no bem estar dos cidadãos, neste caso, das crianças. Vindo de um país em que é proibida a publicidade na televisão dirigida a crianças menores de 12 anos, não seria de esperar outra coisa. Mas é algo que coloca as Apps desta empresa de imediato à parte da grande maioria de empresas, meramente predatórias da consciência dos pais.

Podem descobrir muito disto na interessantíssima talk dada por Willow Mellbratt, uma designer do brincar, na Slush 2014, em Novembro 2014. Vale a pena dizer que tem um mestrado em Design de Experiência, e trabalhou antes na Penguin Books e na IDEO. Aproveito ainda para agradecer ao Nuno Folhadela, do estúdio Bica Studios, o envio desta talk.

Willow Mellbratt  com “Toca Boca: Developing Games For Kids” na Slush 2014

fevereiro 21, 2015

“Legend of Zelda: Skyward Sword” (2011)

Para quem quer desenhar videojogos, “Legend of Zelda: Skyward Sword” (2011) é uma masterclass completa na arte do design de videojogos. Nunca encontrei jogo mais completo neste domínio, não ficou praticamente nada de fora, em termos de códigos expressivos da linguagem dos videojogos, está lá tudo, algumas coisas trabalhadas de modo extremamente inspirado, outras menos, mas é sem dúvida uma obra que põe em evidência toda a experiência acumulada por esta equipa, ao longo de 25 anos. O maior problema acaba sendo a estrutura narrativa que claramente perde em detrimento do videojogo, e será sobre isso que me irei debruçar.





Pela primeira vez cheguei ao final de um jogo da série, apesar de apenas ter jogado outros dois jogos antes: o primeiro, "Legend of Zelda" (1986) num emulador PC, e depois “Legend of Zelda: Ocarina Of Time” (1998) na N64. Interessante que estes três jogos representem o melhor que já se fez na série para o produtor Aonuma. Nunca terminei Ocarina of Time porque a consola em que jogava não era minha, por isso o contacto que tive com o jogo foi de algum modo limitado. De qualquer modo, reconheço em Skyward Sword imenso do que joguei em Ocarina of Time, assim como um amadurecimento e alargamento das possibilidades.

O elemento crucial de “Legend of Zelda: Skyward Sword” está na fantasia escapista. Assim que carregamos o nosso jogo e se abre o ecrã já dentro do mundo, a fantasia começa, sentimos as amarras da realidade desprenderem-se, somos totalmente transportados para o universo, e por ali nos podemos quedar bastante tempo, sem grande necessidade de voltar à realidade. Na verdade, passei ali mais de 70 horas, nunca antes dediquei tantas horas, de jogo efectivo, a qualquer outro videojogo. Sim, por várias vezes tive de recorrer à persistência, paciência, e vontade determinada para chegar ao final, mas fora esses momentos, voltar a Skyloft foi sempre um desejo carregado de agrado.

Para esta fantasia contribuem fortemente o design, a arte visual e musical, assim como uma programação completamente limpa de erros. A arte encarrega-se de criar as fronteiras do nosso imaginário material, enquanto o design se encarrega de nos motivar a agir e participar, funcionando arte e design em total sintonia, gerando a crença no universo e a vontade de aí investir o nosso tempo.

Os puzzles espaciais, gráficos e sonoros assim como de ação socorrem-se imenso das convenções da linguagem do meio, conseguindo ainda assim surpreender, por vezes pelo experimentalismo, outras vezes pela tecnicidade, outras ainda pelo detalhe e requinte do desenho. E é tudo isto que torna “Legend of Zelda: Skyward Sword” tão magnífico, não precisando de inventar, de inovar a todo o passo para nos tocar, nos deslumbrar. Sente-se que todo o design foi concebido com enorme atenção, optando por grande elevação nos parâmetros qualitativos, mas sente-se mais do que isso, que é tudo feito com enorme paixão pela arte, já que não se trata apenas de fazer muito bem, mas fazer bem seguindo as lógicas partilhadas pelo meio, mantendo vivo o que é bom, e procurando melhorar o que ainda pode ser melhorado.

Com tudo isto que disse até aqui, que se poderia pedir mais? Na verdade, em termos de design de jogo, nada mais gostaria de pedir, os problemas surgem quando se pensa a experiência como um todo, nomeadamente quando percebemos que existia uma história muito interessante por detrás de "Legend of Zelda: Skyward Sword", mas que acaba por ser totalmente sufocada pelas necessidades do design de jogo. O design tem tanta qualidade que quase poderia passar sem a narrativa, contudo se o fizesse, estaríamos a falar de um género de jogo completamente diferente, algo mais como "Super Mario" ou "Rayman", mas na verdade não é a esse género que "Legend of Zelda: Skyward Sword" aspira. Vejamos porquê.

As mecânicas de "Legend of Zelda: Skyward Sword", por fugirem à relação com a história, vão-se enfatizando, tomando conta de toda a experiência, e dessa forma acabam emergindo os seus aspectos menos relevantes, nomeadamente quando falamos de experiências estéticas. Ou seja, começamos a sentir o lado lógico e matemático do design, a afastar-nos da componente orgânica e analógica própria dos universos habitados por vida. Um destes elementos mais problemáticos está no uso dos múltiplos de 3: existem 3 grandes áreas no jogo; 3 pedras preciosas; 3 trials; 3 chamas; 3 músicas, e mais uma que está dividida em 3 partes; 3 forças; cada boss surge 3 vezes ao longo de todo o jogo, com ligeiras modificações, e de cada vez temos de os derrotar em 3 vagas.

Para estigmatizar ainda mais esta dissociação, entre o lógico do design e o orgânico narrativo, a estrutura do jogo foi estendida muito para além do que a narrativa em questão poderia suportar, criando-se aquela sensação frustrante, de que nos estão a enganar, a manter presos, sem razão aparente. De cada vez que solucionamos um conjunto de 3 componentes percebemos que não era o fim, mas apenas um meio para a iniciar nova busca de mais 3 componentes: pedras -> chamas -> trials -> músicas -> forças -> bosses. Em termos de design de jogo, isto não apresenta qualquer problema, antes pelo contrário, todas estas lógicas são delineadas de um modo, que diria perfeito.

Mas quanto à experiência de videojogo, quando se desenha um pico de tensão muito intenso espera-se que ele tenha consequências, que ele não seja apenas um aspecto manipulativo de emoções. O jogador até pode aceitar que se faça isso uma vez, em jeito de teste às expectativas, mas quando percebe que uma e outra vez se lhe tira o tapete, se lhe diz que existe sempre e sempre, algo mais a conquistar antes de chegar ao destino prometido, entra-se por um caminho perigoso no desenho da experiência. O jogador começa a sentir-se desrespeitado em termos emocionais, passa a encarar o artefacto como a vontade de um autor, colocando-o no lugar do artefacto, sentindo-se totalmente à mercê das suas vontades, de repente percebe-se a si mesmo como mero rato de labirinto, correndo desalmadamente, ansiando por abrir a porta escapatória, sem fazer a menor ideia do como e quando isso poderá acontecer.

Entrando num plano mais técnico, Zelda apresenta alguns problemas, nomeadamente por fazer uso de algumas convenções totalmente ultrapassadas, no próprio ano de lançamento em 2011. Falo concretamente de dois aspectos: os diálogos - em texto, demasiado lentos, quase sempre redundantes; e a câmara - semi-estática, obrigando a constante ação da nossa parte para posicionar Link e câmara num ângulo de visão jogável. Entristeceu-me particularmente a questão da câmara, porque nos últimos anos realizaram-se grandes avanços na gestão e design de câmaras para terceira-pessoa.

Por outro lado, um ponto técnico extremamente positivo foi o aproveitamento das propriedades da interface Wiimote, que fazem “Legend of Zelda: Skyward Sword” o melhor exemplo do potencial desta interface. Contudo, assim como demonstra o potencial, demonstra muito claramente porque não vingou nos videojogos, porque uma coisa é jogar 20 minutos de Wii Sports, outra completamente diferente é estar 4 horas seguidas a manobrar o Wiimote.


No fim, interessa pouco se salvamos Zelda porque apenas interessa vencer o jogo. O design de jogo de “Legend of Zelda: Skyward Sword” é assim o seu melhor, assim como o seu pior. Provavelmente é a obra com melhor design de jogo que alguma vez joguei. Completo, total, essencial, brilhante. Mas por ser tão bom, enquanto jogo, ofusca totalmente o resto, diminuindo uma experiência que tinha tudo para se tornar uma referência. Interessante como “Legend of Zelda: Skyward Sword” acaba por frisar e enfatizar ainda mais a relevância de “The Last of Us” no meio.

novembro 12, 2014

Experiência do livro vs. videojogo

Publico hoje um novo texto no IGN, "O Inferno de Assassin's Creed" a propósito da comparação de experiências de histórias entre formatos distintos, o livro e o videojogo. Para a comparação criei um caso comparativo com "Inferno" (2013) de Dan Brown e "Assassin's Creed II" (2009) da Ubisoft, ambos trabalhos que apenas experienciei este ano, pela primeira vez.


Passem pelo IGN, e digam coisas.

outubro 29, 2014

Experiência e Pausa

Esta semana escrevi um artigo para o IGN Portugal a propósito da sociedade de abundância e velocidade, e seus efeitos na fruição de experiências, nomeadamente no que se perde em não repetir boas experiências, daí o título “Porquê Repetir Experiências?”. É um artigo que dá conta de uma visão das experiências estéticas, sustentado depois num estudo que fala sobre o que leva as pessoas a repetirem experiências, tais como: reler um livro, rever um filme ou rejogar um jogo.


Aproveito este apontamento para dar conta de algo que já começou há algum tempo neste blog, e que para quem me segue até já se terá dado conta, que é uma certa desaceleração na publicação. Esta desaceleração irá acelerar mais ainda nos próximos meses, mantendo-se ao longo do próximo ano. A razão para esta pausa prende-se com o novo livro que estou a desenvolver para uma editora nacional, e que em breve darei aqui conta.

Assim, entrarei agora em pausa, e publicarei aqui e no facebook apenas excepcionalmente. Continuarei a escrever a coluna quinzenal para o IGN Portugal, e deixarei um ou outro apontamento no Goodreads.

abril 29, 2013

Séries TV e RPGs, a dura duração da ilusão das experiências

Esta semana escrevi na Eurogamer a propósito das memórias que guardamos das experiências que vivemos, A Memória da Experiência. Não é algo que eu tenha investigado, antes me baseio no excelente trabalho da dupla Daniel Kahneman e Amos Tversky. Mas se tinha sido interessante a descoberta destes estudos, foi ainda mais interessante este fim-de-semana a coincidência que se deu com o relato de experiências distintas por parte de dois amigos no Facebook, um sobre as Séries de TV e outro sobre os RPGs. A eles digo apenas, leiam o artigo que escrevi, e se puderem deixem nos comentários as vossas memórias.

Tiago Sousa 27.04.2013: "Finally finished watching Lost series - was great but that's it, not watching more series without a begin/end on same freakin episode - too much addictive/time waste ^_^"
Luis Melo 29.04.2013: "How can you gamers play so many games a year? I just got back to Dark Souls (finally got it for PS3) and a whole week just flashed before my eyes. I'm not going to touch any games for several months after this. Not kidding."
Achei muito interessante ler os comentários ao artigo que fiz para a Eurogamer, ver como os jogadores desesperadamente tentam demonstrar que estou errado. Totalmente ao contrário daquilo que é aqui dito pelo Tiago e pelo Luís, que tiveram um momento de lucidez racional no final das suas experiências. Muito do discurso presente nas caixas de comentários, encaixa numa inversão daquilo que Kahneman define como a "ilusão cognitiva". Ou seja, a nossa mente lembra apenas o pico mais intenso, e o final das experiências, mas nós queremos acreditar que não. Queremos acreditar que vale a pena investir todo aquele tempo, passar por todas aquelas experiências menores mas durante mais tempo, porque elas racionalizadas como um cálculo somatório representariam mais prazer do que aquele que verdadeiramente a nossa memória preserva de cada experiência.