Ahmet Altan foi preso em 2016, a seguir ao golpe de estado falhado na Turquia. Altan tinha um historial, enquanto jornalista, de escrever artigos proibidos, por serem alegadamente contra a Turquia, falando do direito à autodeterminação dos povos curdos e arménios que vivem sob a opressão da Turquia. Por isso foi listado na longa lista de intelectuais, académicos, militares e magistrados que foram presos como forma de purga do sistema turco. Várias associações internacionais, como o PEN Internacional e a Amnistia Internacional, iniciaram em 2017 um pedido de
apoios e manifestos pela sua libertação juntando nomes como Neil Gaiman, Ali Smith, Salman Rushdie, Margaret Atwood e Joanne Harris que de nada valeu, já que um ano depois seria sentenciado a prisão perpétua. Dias depois dessa sentença, surgiu uma carta aberta no
The Guardian assinada por 38 prémios Nobel, contando do domínio da literatura com Svetlana Alexievich, JM Coetzee, Kazuo Ishiguro, Herta Müller, VS Naipaul, Wole Soyinka e Mario Vargas Llosa. Um ano meio depois, Ahmet Altan veria a pena reduzida para 10 anos. Por ter já cumprido 3 anos, seria libertado para
grande regozijo internacional, mas menos de uma semana depois, a pedido do procurador, voltaria a ser preso. Altan escreveu na semana passada um
artigo sobre os efeitos do COVID-19 na prisão em que ainda se encontra para o Washinton Post.
O livro de memórias "I Will Never See the World Again" foi escrito durante os primeiros tempos de prisão, relata o momento de prisão, a espera, os julgamentos e a estadia na prisão. É um livro muito curto, focado num breve momento de vida, mas é um livro pleno de fôlego. Não existem aqui dedos em riste, acusações, existe um escritor que analisa o que sente, o que vê e como isso altera o seu interior. É uma verdadeira viagem pelo interior de alguém a quem foi retirada a liberdade, a autonomia. Altan, sem acesso a internet nem biblioteca, cita autores e frases completas de memória, dos clássicos com que vai convivendo no seu mundo interior, interagindo com autores como Dante, Homero, Tolstói ou Saramago.
Altan cita de memória Saramago — "There is no consolation, my sad friend, humans are inconsolable creatures" — a partir do livro "Jangada de Pedra" (1986:60)
O livro está escrito como momentos que se dividem em capítulos, alguns dedicados ao sentimento da prisão, injustiça e esperança outros dedicados à arte e literatura. Num desses capítulos Altan disserta sobre diferença entre os escritores do século XIX — Tolstói, Balzac, Flaubert e Dostoiévski — que qualifica de centrados nos personagens e suas emoções e os escritores do século XX —Musil, Céline ou Joyce — focados apenas nas ideias. Diz algo com que concordo, os personagens dos primeiros são mais importantes do que os seus autores, enquanto para os segundos apenas lhes interessa falar de si mesmos, servindo os seus personagens apenas de veículos.
A escrita, bagagem e visão do mundo apresentada nestas poucas linhas atraíram-me a ponto de ter começado a procurar o próximo livro do autor para ler.