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agosto 27, 2023

"Sobrevivente do Gulag Chinês", por Gulbahar Haitiwaji

Em 2019 choquei de frente com imagens provenientes de Xinjiang que mostravam centenas de prisioneiros a serem encaminhados para comboios para seguirem para campos de concentração chineses que relembram as imagens reconstruídas pelo cinema do que se passou em Dachau, Treblinka e outros lugares. O livro "Sobrevivente do Gulag Chinês" foi publicado em França em 2021, e apresenta o primeiro testemunho de uma sobrevivente desses campos chineses, em pleno século XXI.

Os uigures vivem na região autónoma do Xinjiang, uma região enorme do noroeste da China, que além de funcionar como corredor central da antiga "Rota da Seda" e da atual "Belt and Road Initiative" (que procura impor a agenda chinesa no mundo), é ainda uma região rica em petróleo.

Li o livro na versão audiolivro (Scribd)

março 04, 2023

O Mago do Kremlin (2022)

“O Mago do Kremlin”, de Giuliano da Empoli, é um romance histórico-político centrado num dos mais relevantes focos da cena política global atual que domina não só as atenções políticas mas as de toda a sociedade, e que é o esforço de manutenção do Imperialismo Russo. Empoli é professor de Ciência Política na Sciences-Po em Paris, é presença assídua nos média italianos e franceses como comentador de política, tendo escrito mais de uma dezena de livros de ensaio, sendo este o seu primeiro romance. O livro ganhou Grande Prémio de Ficção da Academia Francesa 2022 e foi finalista do prémio Goncourt 2022. Esta breve apresentação será suficiente para dar conta da relevância do livro, mas não quero deixar de dizer que está muito bem escrito; e que a ficção apresenta um enorme nível de verossimilhança.

setembro 18, 2022

Uma Breve História da Igualdade

Se como eu já quiseram ler Piketty mas tiveram receio de se abalançar aos seus anteriores livros pela densidade de dados económicos ou pela enormidade de alguns com as suas mais de mil páginas, então são o público-alvo deste seu novo livro, "Uma Breve História da Igualdade" (2021/2022). Piketty resume em 300 páginas mais de 20 anos da sua investigação e as principais ideias que tem vindo a defender para uma nova era de igualdade, numa escrita imensamente acessível, sempre suportada por dados e gráficos. Confesso que me surpreendeu no discurso, pela enorme amplitude de ciências sociais que convoca desde a Sociologia à História, passando pela ciência política, o direito e a filosofia. Piketty usa dados económicos, mas acima de tudo trabalha, investiga e interpreta esses dados usando o conhecimento mais atual de cada uma das ciências envolvidas. Por isso, não se estranhe que a discussão vá das guerras e revoluções ao reformismo e alterações climáticas, mas assuma também como fundamentais a discussão do pós-colonialismo, racismo e feminismo. Contudo, para quem espera encontrar aqui um crítico das grandes desigualdades do mundo em que vivemos, Piketty é muito claro ao afirmar que nos últimos 200 anos a desigualdade diminuiu fortemente, sendo a partir desse ponto que projeta as suas ideias, apresentando-as como estímulos à manutenção e intensificação dessa tendência.

agosto 26, 2022

A moral depende dos incentivos

O "Arquipélago Gulag" (1973) é um livro-monumento de homenagem aos cerca de 20 milhões que por lá passaram e aos 2 milhões que ali pereceram. GULAG é acrónimo da agência governamental soviética "Administração Geral dos Campos de Concentração", campos mandados criar por Vladimir Lenine, com o início da revolução em 1918, e que atingiriam o seu expoente com Estaline, entre 1930 e 1950. O livro é baseado em mais de 200 testemunhos diretos, tendo surgido como resposta às tentativas de desacreditação de que Aleksandr Solzhenitsyn foi alvo após a revelação da sua experiência do GULAG no livro “Um dia na vida de Ivan Deníssovitch” (1962). Solzhenitsyn foi enviado para o campos de concentração em 1944, tinha apenas 26 anos e era um crente na revolução comunista, mas teve o azar da censura interceptar uma carta que escreveu a um amigo de escola, na qual se referia a Estaline como o Cabecilha da traição da revolução. Por esse "crime" teve direito a passar 8 anos no GULAG.

A imagem é da primeira edição da Harper Collins de 1974. Eu li o livro na versão audiobook, narrado por Ignat Solzhenitsyn, filho de Aleksandr Solzhenitsyn

novembro 07, 2021

As histórias podem ser tão ou mais importantes

"Uma Ofuscante Ausência de Luz" (2001) é um livro do escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, baseado no testemunho de um sobrevivente da prisão de Tazmamart, uma prisão secreta marroquina construída no meio do deserto, exclusiva para presos políticos, dotada de condições particularmente extremas. Os presos eram mantidos em celas subterrâneas, com menos de um metro e meio de altura, 24/24, podendo passar anos completos sem nunca ver qualquer luz. O testemunho usado por Jelloun é de um prisioneiro que ali sobreviveu por 18 anos, de 1973 a 1991. A expectativa que uma história destas gera no leitor é enorme, mas o livro coloca-nos no devido lugar, não nos oferece emoção fácil, faz-nos caminhar os degraus devagar, até ao topo, deixando para o final a compreensão do sentir completo. O livro recebeu o Prémio Literário Internacional de Dublin em 2004. 

novembro 06, 2021

Um Estado Policial Perfeito: Uma Odisseia pela Sinistra Distopia Vigilante da China

"The Perfect Police State: An Undercover Odyssey into China's Terrifying Surveillance Dystopia of the Future" (2021) foi um dos livros mais angustiantes que li nos últimos anos e não foi pelo relato de genocídio, que se pode ler noutras obras sobre povos perseguidos, desde os judeus aos curdos passando por regiões inteiras como os balcãs — Sérvia, Croácia, Eslovénia, Macedónia, Montenegro, Bósnia, — ou o Cáucaso — Arménia, Geórgia, Abecássia, Ossétia do Sul, Chéchenia. O que incomoda particularmente no relato sobre os Uigurs, povo do noroeste da China que faz fronteira com a Turquia, é o facto de ser algo que está a acontecer no momento presente. Mas não só, é algo que está a ser perpetrado por um governo do qual não podemos, como aconteceu com outros, arvorar ideias de distância ou desconhecimento, pois somos seus grandes parceiros comerciais. Desde a eletricidade que nos entra em casa, até ao fabrico de uma larga maioria de produtos que utilizamos no dia-a-dia, dos gadgets eletrónicos aos brinquedos que oferecemos às nossas crianças pelo Natal, a relação da Europa com a China é íntima. No entanto, quando se fala do genocídio que a China e as suas empresas tecnológicas, tais como a Huawei, estão a realizar naquela região, a tendência política, mas também dos nossos povos, tem-se manifestado por uma estrondosa indiferença. Mas tal não acontece por falta de evidências, vários órgãos internacionais, da ONU ao Papa, têm feito menção do problema, existem mesmo demonstrações de que temos obrigação legal de intervir! Contudo, nós, todos os que vivemos boas vidas neste velho continente, à custa da mão-de-obra barata da China, viramos a cara para o lado. Diga-se que não muito diferentemente do que fizemos durante a total aniquilação da cultura nativa das Américas, a que juntámos depois a exploração de escravos, de África, para garantir os níveis de produção de riqueza necessários ao sustento dos nossos luxos. Mas os Uigurs não são um povo do passado, o genocídio brutal que afeta uma população com 11 milhões, dos quais mais de 1 milhão se encontram presos nos mais de 200 campos de concentração, não aconteceu há 500 anos, está a acontecer agora, com relatos que remontam pelo menos a 2017, e a ser feito por alguém com quem nos sentamos à mesa todos os dias. Para não olhar apenas ao lado negativo, fazendo aqui mero auto-flagelo, deixo a nota imensamente positiva da primeira viagem de uma delegação da União Europeia a Taiwan ocorrida esta semana e na qual foi dito, de forma bastante sonora, “Vocês não estão Sozinhos”. Sabendo que Taiwan está na lista como próximo alvo a abater pela China, depois do périplo iniciado em Hong-Kong, esperemos que este seja o início de uma mudança profunda da relação da Europa com a China

agosto 23, 2021

China: a real face do Comunismo

Costuma-se atacar o comunismo por via dos seus maiores terrores, Estaline e Mao, mas como "heróis" de um passado reconhecidamente desastroso rapidamente se descartam como exemplos distorcidos da ideologia. Já quando se fala de Castro ou Chaves, a sua visão não se cumpriu por culpa dos embargos. Quando se questionam os líderes comunistas nacionais sobre a Coreia do Norte, a resposta surge em jeito de questionamento do conceito de democracia, e quando se fala do Holodomor, na Ucrânia, esse não passou de uma invenção nazi, nunca existiu. No entanto, e apesar de todos estas falhas na matriz, o grande elefante branco continua aí, bem no meio da sala, com direito às maiores honras economicistas das últimas décadas, a China. 

julho 25, 2021

O Fim da Grande Ilusão

“O Fim do Homem Soviético: Um Tempo de Desencanto” (2013) é uma tentativa de Svetlana Alexievich de nos ajudar a compreender o que aconteceu com o fim da União Soviética. Escrito a partir da captação de centenas de relatos orais, técnica de escrita em que se especializou, a autora procura a partir do interior de pessoas reais construir um mapa de recordações que possam iluminar os efeitos humanos da decadência soviética. Não é um trabalho propriamente académico, já que o enfoque se dá na emoção, no sentir de cada entrevistado, e Alexievich nunca tenta abstrair, generalizar ou sintetizar as leituras. O foco é o particular, o individual, o subjetivo, o humanamente concreto. Naturalmente que isso nos obriga a uma leitura mais atenta, não podemos ler aqui tudo como verdade, ainda que tudo seja baseado no que dizem pessoas reais — a realidade é constituída pela multiplicidade de dimensões construídas pelo olhar de cada ser humano. Mas também percebemos que muito do que é dito não nos é totalmente estranho, e empaticamente conseguimos aferir parte da sua veracidade. 

maio 22, 2021

"Walden Two" de B. F. Skinner

B. F. Skinner foi professor de psicologia, recipiente de múltiplos prémios e distinções pelo seu trabalho, tendo ficado na história como um dos maiores defensores da abordagem behaviorista da psicologia na qual proporia o chamado "behaviorismo radical", uma proposta que vê os indivíduos como sistemas de comportamentos — respostas do humano a estímulos do ambiente —, em que tudo aquilo que sentimos é apenas reflexo da forma como nos comportamos. Deste modo Skinner acreditava que moldando o ambiente poderíamos moldar os indivíduos, acreditava na possibilidade da "engenharia do comportamento" por via da "engenharia cultural". O livro "Walden II" (1948) é um romance que segue o método socrático (investigação filosófica por meio do diálogo) e serve a apresentação destas engenharias com base numa comunidade utópica. Não é um grande romance, mas é uma excelente apresentação das ideias do autor, o que faz deste uma excelente leitura para quem se interesse pelo tema. 

maio 16, 2021

A doce canção que embala as crenças sociais

Quem quer que pegue em “Canção doce”, de Leïla Slimani, fica logo na primeira página a saber que está perante uma história de crime, um dos mais hediondos — o assassínio de crianças —, e, no entanto, não parece ser esse crime que Slimani quer aqui tratar, apesar de passar todo o tempo ao seu redor. É verdade que ficamos ainda a saber que o perpetrador é uma ama, podíamos dizer “a ama”, tal a convenção se afirmou e foi explorada ad nauseum pela literatura e cinema. Mas sabemos também que “Canção Doce” foi premiado com o Prémio Goncourt em 2016, o mais importante da literatura francesa, chocando de frente com a ideia de cliché e implicando a necessidade de uma intenção autoral. Assim, se no final da primeira página estamos presos pela artimanha do enredo — saber porque a ama fez o que fez e como —, não deixamos de nos inquietar com o subtexto — o que há aqui de novo?

maio 09, 2021

A Tirania de Ter de Ser o "Melhor"

Apesar de repetitivo, "The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good?" (2020) de Michael Sandel foi o livro mais transformador que li nos últimos anos, por tocar em aspetos fundamentais da atualidade que explicam as intrincadas relações humanas da nossa sociedade neste início de século. 

Deixo múltiplos pontos que o livro suscitou, com argumentação de Sandel, algumas conclusões e  discussões desses. Começo com o ponto principal:

1. A dignidade do nosso trabalho não é medida pelo ordenado que recebemos. 

abril 30, 2021

Le Guin e o Conservadorismo dos sistemas Anarco-comunistas

“Os Despojados” (1974), de Ursula K. Le Guin, é uma obra de excelência e obrigatória por ser capaz de gerar uma simulação narrativa de um universo no qual funcionam em simultâneo três modelos de organização social — capitalista, comunista e anarquista — não defendendo nenhum dos modelos, apresentando as suas componentes boas, mas evidenciando também os problemas de fundo de cada um. No final do livro sabemos algo, nenhum sistema é perfeito, nenhum sistema responde às ânsias de cada ser individual. Em todos, é necessário fazer cedências a propósito do que acreditamos Ser para podermos Sobreviver.

Imagem da edição de luxo ilustrada da Folio, de 2019, criada por David Lupton

abril 03, 2021

As cantatas do Comunismo e Fascismo portugueses

Dizer que o Comunismo nunca existiu porque nunca foi implementado segundo a visão de Marx é uma ilusão em tudo semelhante àquela que diz que a Ditadura portuguesa nunca existiu porque Salazar não foi  ditador mas "provedor de justiça", que salvou Portugal da ruína financeira e "viveu exemplarmente". Duas cantatas revisionistas que servem apenas para vender ideias que a prática demonstrou, preto no branco, como totalmente disfuncionais. Para o efeito, deixo excertos de várias obras, para que tirem as vossas conclusões.

janeiro 15, 2021

A literatura como Redenção

Chego a “La Familia Grande” (2021), de Camille Kouchner, depois de ter lido “Le Consentement” (2020) e de ter percebido que o fenómeno #metoo demorou, mas chegou a França, não na sua forma convencional, usando as redes sociais, mas por via da literatura. O relato é aqui tão, ou mais, cru que no livro de Vanessa Springora. Começa-se a ler e não se consegue parar, o voyeurismo e a expectativa tomam conta de nós. Aqui a família de suporte é bastante menos estereotipada, existem recursos, e acima de tudo educação certificada com os mais altos pergaminhos. Mas, nada disso serve para evitar o pior. No final, inevitavelmente, e mais uma vez, somos obrigados a questionar-nos sobre o valor da Educação que tanto prezamos, sobre o  Humanismo que tanto apregoamos. No final, mais uma vez, somos esbofeteados pela luta entre o racional e o emocional, ou, entre a consciência e o instinto. Este livro, pelos personagens que dele fazem parte, torna estas questões brutalmente presentes, obrigando-nos a mergulhar no mundo de valores em que nos habituámos a acreditar para tudo questionar.

janeiro 09, 2021

Como Morrem as Democracias

"How Democracies Die" (2018) é um livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, dois professores de ciência política dos EUA, especializados no estudo das políticas da América do Sul e em Política Comparada. Escreveram este livro como reação à subida de Trump ao poder, e para explicarem que apesar das pessoas acalentarem a ideia de que os EUA são um país diferente e capaz de suster todo o tipo de ataques contra a sua democracia, na realidade são uma democracia com as mesmas fragilidades de qualquer outra no globo.
 

dezembro 23, 2020

Lu Xun, "O comunismo comia crianças"

"O Diário de Um Louco" (A Madman's Diary) (1918) de Lu Xun é um dos livros escolhidos pelo Instituto Norueguês do Nobel para figurar na lista das 100 Obras Literárias do Mundo, e não é um livro fácil, apesar de pequeno, por causa da distância temporal e cultural. Não sou especialista em cultura chinesa, menos ainda na do início do século passado, por isso senti dificuldade em compreender o seu verdadeiro alcance numa primeira leitura. Isto agrava-se, porque o texto está escrito como metáfora o que obriga a pesquisa de contexto, sem o que faz parecer tudo muito indiferente. 

Uma cópia de "O Diário de um Louco" no Museu de Lu Xun, Pequim

Lu Xun conta a história de um homem semi-esquizofrénico que sofre de problemas da perseguição e que acredita que os seus amigos, vizinhos e familiares querem não só matá-lo, mas principalmente comê-lo. A meio do conto, percebemos que o personagem está completamente ensandecido, ou parece estar, porque em todo o lado só vê canibais.

Vamos ao contexto. Lu Xun parece pretender com esta história dar conta daquilo que a sociedade chinesa estava a fazer ao indivíduo chinês. A não permissão do livre pensar, o ter de ser igual a todos os demais, é visto por Xun como um processo de canibalização do ser humano. O ato de comer humanos representa o modo como a sociedade chinesa operava na eliminação das diferenças, aniquilando o individual para alimentar o colectivo, criando uma massa homogénea que não se questiona.

Enquanto lia o texto questionei-me sobre uma ideia que é costume ouvir quando se defende o comunismo no nosso país, e noutros lugares: "afinal os comunistas não comem crianças ao pequeno-almoço". No Expresso existe um artigo que só liga a frase aos regimes de Estaline e Mao e a períodos de fome que terão conduzido a surtos de canibalismo. Contudo, parece-me que a origem desse mito é anterior, e reside nesta obra de Lu Xun, não só pelo reconhecimento que o texto teve e continua a ter, mas acima de tudo pela frase com que o conto termina:
"Talvez ainda haja crianças que não tenham comido homens? 
Salvem as crianças...
Esta frase surge no final completamente desligada do resto do texto, já que nunca antes se fala das crianças, mas a interpretação mais comum é simples: Lu Xun já não acreditaria ser possível salvar aqueles que tinham sido endoutrinados, era preciso esperar pelas próximas gerações e para isso era preciso salvar as crianças.


O conto pode ser lido completo no portal Marxists.org.

novembro 01, 2020

Cinema: Genocídio da Ucrânia 1932-33

Acabei de ver "Mr. Jones" (2019), no TV Cine, e nem acredito que o filme saiu com este título, mas pior ainda que passou quase despercebido. O filme relata a descoberta internacional do Genocídio da Ucrânia nos anos 1932-33 provocada por Estaline, por um jornalista inglês, Gareth Jones. Depois de publicar, em Inglaterra, o que tinha visto na sua passagem clandestina pela Ucrânia, Gareth Jones viu-se alvo de uma campanha de difamação, chegando a ser desdito em plena primeira página do New York Times por um jornalista ganhador do Pulitzer e correspondente em Moscovo. Jones não recuou, conseguiu fazer-se ouvir e dar voz a milhões de mortos na Ucrânia, mas acabaria por pagar com a vida alguns anos mais tarde, às mãos da polícia secreta da URSS. O filme de Agnieszka Holland é duro, mas consegue colocar-nos dentro do mundo relatado, levando-nos a sentir a dor da revolta.
O filme impactou-me bastante porque desconhecia esta passagem da história da Ucrânia e o jornalista Gareth Jones. Os criadores aproveitaram para juntar Gareth Jones num almoço, alegadamente ficcional, com George Orwell, mas ainda assim sustentado pelas palavras do próprio Orwell que diz ter baseado a escrita de "A Quinta dos Animais" (1945) em Estaline e na URSS. Ao longo do filme, vamos ouvindo Orwell recitando a escrita do livro, podendo ligar a alegoria por ele criada à descoberta de Jones.

Recomendo totalmente o visionamento.

maio 30, 2020

"I Will Never See the World Again" (2019)

Ahmet Altan foi preso em 2016, a seguir ao golpe de estado falhado na Turquia. Altan tinha um historial, enquanto jornalista, de escrever artigos proibidos, por serem alegadamente contra a Turquia, falando do direito à autodeterminação dos povos curdos e arménios que vivem sob a opressão da Turquia. Por isso foi listado na longa lista de intelectuais, académicos, militares e magistrados que foram presos como forma de purga do sistema turco. Várias associações internacionais, como o PEN Internacional e a Amnistia Internacional, iniciaram em 2017 um pedido de apoios e manifestos pela sua libertação juntando nomes como Neil Gaiman, Ali Smith, Salman Rushdie, Margaret Atwood e Joanne Harris que de nada valeu, já que um ano depois seria sentenciado a prisão perpétua. Dias depois dessa sentença, surgiu uma carta aberta no The Guardian assinada por 38 prémios Nobel, contando do domínio da literatura com Svetlana Alexievich, JM Coetzee, Kazuo Ishiguro, Herta Müller, VS Naipaul, Wole Soyinka e Mario Vargas Llosa. Um ano meio depois, Ahmet Altan veria a pena reduzida para 10 anos. Por ter já cumprido 3 anos, seria libertado para grande regozijo internacional, mas menos de uma semana depois, a pedido do procurador, voltaria a ser preso. Altan escreveu na semana passada um artigo sobre os efeitos do COVID-19 na prisão em que ainda se encontra para o Washinton Post.
O livro de memórias "I Will Never See the World Again" foi escrito durante os primeiros tempos de prisão, relata o momento de prisão, a espera, os julgamentos e a estadia na prisão. É um livro muito curto, focado num breve momento de vida, mas é um livro pleno de fôlego. Não existem aqui dedos em riste, acusações, existe um escritor que analisa o que sente, o que vê e como isso altera o seu interior. É uma verdadeira viagem pelo interior de alguém a quem foi retirada a liberdade, a autonomia. Altan, sem acesso a internet nem biblioteca, cita autores e frases completas de memória, dos clássicos com que vai convivendo no seu mundo interior, interagindo com autores como Dante, Homero, Tolstói ou Saramago.
Altan cita de memória Saramago — "There is no consolation, my sad friend, humans are inconsolable creatures" — a partir do livro "Jangada de Pedra" (1986:60)

O livro está escrito como momentos que se dividem em capítulos, alguns dedicados ao sentimento da prisão, injustiça e esperança outros dedicados à arte e literatura. Num desses capítulos Altan disserta sobre diferença entre os escritores do século XIX — Tolstói, Balzac, Flaubert e Dostoiévski — que qualifica de centrados nos personagens e suas emoções e os escritores do século XX —Musil, Céline ou Joyce — focados apenas nas ideias. Diz algo com que concordo, os personagens dos primeiros são mais importantes do que os seus autores, enquanto para os segundos apenas lhes interessa falar de si mesmos, servindo os seus personagens apenas de veículos.

A escrita, bagagem e visão do mundo apresentada nestas poucas linhas atraíram-me a ponto de ter começado a procurar o próximo livro do autor para ler.


janeiro 17, 2020

O arrepio que vem do Brasil

Há uns meses estive para fazer aqui um post sobre o filme "Menino 23", um documentário brasileiro de 2016 que dá conta da existência de células nazis no Brasil nos anos 1930. Acabei não o fazendo, porque o nazismo é por demais vezes citado para tudo justificar e por acreditar que é algo que não devemos banalizar. Contudo, nesta data, em que o Secretário da Cultura do Brasil, o maior responsável pela Cultura daquele país, lança um comunicado em vídeo, na rede, no qual ele próprio não só plagia textos de Joseph Goebbels, mas imita parâmetros estéticos de forma e conteúdo da propaganda Nazi, não devemos calar.
Repare-se na encenação do local — bandeira com fitas de honra, cruz patriarcal, fotografia do presidente e o resto limpo e austero — e depois na assertividade da linguagem corporal, facial e verbal, como toda a performance emula um tom de certeza absoluta, de Autoridade e Verdade, e ao mesmo tempo de ameaça, pronto a usar da força. Este secretário está longe dos tiques afetados de Goebbels (deem-lhe tempo e eles surgirão) mas a abordagem é a mesma, uma postura de afirmação de verdade única e prontidão para a confrontação.

Falar aqui da evocação da religião ou de Deus é totalmente secundário, muito mais grave é o uso da cruz patriarcal (para se colocar no topo hierarquia) juntamente com o reclamar de "lealdade" e "autossacríficio" para subjugar o povo, evidenciando quem domina, quem deve ser seguido. A partir daqui dizer-se então:
"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada.Roberto Alvim, secretário da cultura do Brasil, 16 janeiro 2020
É arrepiante o que diz e quer dizer, mas é muito mais arrepiante saber quem o disse antes e em que condições e a que conduziram essas frases:
"A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada.Joseph Goebbels
Diz o secretário num tweet (porque não responde à imprensa), que "Foi apenas uma frase do meu discurso na qual havia uma coincidência retórica. Eu não citei ninguém". Bem, posso dizer que isto é o costumam responder os alunos quando são apanhados a plagiar. O problema é que não é só a forma do texto, são as ideias completas, como vemos no resto do texto:
"A cultura é a base da pátria. Quando a cultura adoece, o povo adoece junto. É por isso que queremos uma cultura dinâmica e, ao mesmo tempo, enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes. A pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus amparam nossas ações na criação de políticas públicas. As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de Arte.
(...)
São essas formas estéticas, geradas por uma arte nacional que agora começará a se desenhar, que terão o poder de nos conferir, a todos, energia e impulso para avançarmos na direção da construção de uma nova e pujante civilização brasileira."
Mas se restarem ainda dúvidas, peço-vos que atentem no facto do comunicado, apesar de provir de um membro do governo, vir com banda sonora musical, o que já por si configura a comunicação como propaganda política e não como comunicação de estado. Mas verificando que a música que corre por debaixo é uma ópera ("Lohengrin") de Richard Wagner, torna-se impossível não ver aqui a total orquestração estética da experiência propagandística nazi.

É claro que a direita brasileira pode evocar o facto dos anteriores governos, nomeadamente Lula, terem andado de mão-dada com ditadores de esquerda como Fidel Castro e Hugo Chavez. Mas um erro não se conserta com outro erro. Menos ainda, quando se usa o pior que a História da Humanidade já conheceu, os causadores da II Guerra Mundial, o acontecimento mais mortífero de sempre perpetrado pela nossa espécie (Sapolsky, 2017).
Imagem do documentário "Menino 23" que podem ver completo, ainda que sem grande qualidade, no Youtube.

Fontes da notícia: 
O Globo, 16 e 17 janeiro 2020 
BBC Brasil, 17 janeiro 2020

outubro 19, 2019

Another Day of Life (2018)

Soube que o filme estava a ser feito há um par de anos, através dele cheguei ao livro "Mais um Dia de Vida" (1975) de Ryszard Kapuściński que li no ano passado e muito me tocou, por isso ver o filme era obrigatório. Raul de la Fuente, seguindo uma estética próxima da criada por Ari Folman para o brilhante "Waltz With Bashir" (2008), entrega um filme que de certeza faria Kapuściński sentir-se orgulhoso, porque refletindo tudo o que está no livro, nos dá a ver um pouco além desse, por via do acrescento de imagens e entrevistas reais dos dias de hoje com alguns dos principais intervenientes na história por ele contada. É um filme para ver, rever e refletir, ainda que não seja tão duro como o livro, porque a animação de tão bela, e algum pudor por parte dos criadores, fazem sentir toda a tragédia como algo mais leve. Mas essa era a intenção de De La Fuente, fugir ao excesso dramático próprio de uma guerra, para poder contar e desvelar a História, tendo-o conseguido com brilhantismo.





Ryszard Kapuściński

Em termos técnicos, o filme consegue elevar-se e apresentar quase sempre níveis de excelência, muito graças à técnica de animação utilizada, motion capture, que permitiu acelerar todo o processo de criação, ainda que a produção tenha durado entre 3 a 4 anos. Contudo, não raras vezes surgem alguns planos e cenas menos inspiradas, comparando novamente com "Waltz With Bashir", faltaram alguns rasgos mais profundos de criatividade visual. Mas nada que pudesse impedir o filme de ser premiado em múltiplos festivais, porque acaba sendo um belíssimo filme e uma grande homenagem a todos os envolvidos.

Recurso ao 3D para importar os dados do motion-capture.

O 3D sendo pintado para se assemelhar a um 2D, e assim perder muito do efeito artificial que o motion-capture tende a introduzir.

"Confusão: it's a good word. A synthesis word. An everything word. Do you feel confusão too?"

Sobre o que nos conta a história, prefiro deixar apenas o link para a resenha que fiz antes do livro homónimo. No filme, parece-me que foi dado maior destaque à questão da Guerra Fria, da luta entre as forças socialistas suportadas pela URSS e Cuba, e as forças capitalistas, suportadas pela África do Sul e os EUA. No final, e mais impactante no filme do que quando saiu o livro, é perceber que depois da suposta vitória e da Declaração de Independência, a Angola continuaria em guerra, por mais 27 anos, até 2002.


O filme pode ser visto online no site português de cinema independente: FilmIn.