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setembro 07, 2019

O mundo-história de "Aniquilação"

É a imaginação, é da imaginação que brota toda a criatividade, lugar do brincar cognitivo. Foi por acaso, enquanto olhava para o perfil de Vandermeer, que descobri que além de autor de ficção-científica era também o autor de “Wonderbook” (2013), um dos meus livros preferidos sobre ficção criativa, inspirador da primeira à última página. E só assim comecei a compreender porque me tinha apaixonado pelo livro, e filme homónimo, “Aniquilação” (2014) (2018). O cerne está no mundo-história criado.

É a primeira vez que compro um livro que vem com 3 capas, a original (à direita) e duas sobre-capas, uma do filme, e outra dos 20 anos da Fnac.

Assim, e se o filme foi criado pelo brilhante Alex Garland, com um guião seu adaptado do livro de Vandermeer e com imensas variações sobre a história, é o universo imaginado e populado por Vandermeer que nos apaixona. Do ponto de vista estético, o filme é muito superior ao livro, Garland é muito mais dotado no manejo técnico das ferramentas de expressão cinematográfica. Vandermeer não é mau, mas não vai além do suficiente em termos de escrita. Mas nada disto importa muito porque aquilo que é relevante é o mundo imaginado por Vandermeer.



Imagens do filme homónimo (2018) de Alex Garland

À primeira vista, esse mundo pode parecer apenas uma variação dos universos de Stephen King, tais como “A Cupula”, um recorte da realidade com condições particulares criadas por uma força ou identidade desconhecida. Mas é mais, bastante mais. Vandermeer cria um mundo alternativo através de uma fusão entre arte e ciência. Socorre-se fundamentalmente da Biologia, mas recorre à Linguística, Antropologia e Topografia (estas são as quatro áreas de especialidade das mulheres que acompanhamos na expedição à Área X) para conceber e desenhar um conjunto de variações no espaço e natureza.

Páginas do “Wonderbook” (2013)

É dada supremacia à biologia, pela sua vertente orgânica, o que em termos de criação de mundo pode ser vista como base plástica — visual e sonora. Tendo em conta que a realidade na Terra é já de si natural, orgânica, o que Vandermeer faz é ampliar o poder e efeito do orgânico. Uma espécie de reclamação do mundo por parte da natureza. Podemos dizer que o mundo de Vandermeer apresenta uma evolução sobre os mundos pós-apocalípticos mais recentes do tipo “The Last of Us” (2013) ou daquilo em que Chernobyl se transformou, em que o verde toma conta das estruturas criadas pelo humano. Por outro lado, podemos ver também um regresso a alguma ideologia dos anos 50 e 60, da transformação da natureza por via nuclear, dando origem aos mundos estranhos dotados de particulares bizarras, que alguns exploraram com os super-heróis, outros com o terror, e que Chernobyl acabou demonstrando fazer pouco sentido.

Talvez por isto mesmo, as alterações biológicas em Aniquilação não sejam nunca vistas como algo fruto de intervenção humana, mas antes alienígena. Como se os extraterrestres finalmente tomassem as formas propostas por Carl Sagan, não dotados de formas reconhecíveis, menos ainda hominídeas. Uma entidade que toma conta do espaço que dialoga com ele, amplia as suas capacidades, intervém, altera e transforma, mesclando e fusionando. E quando o humano intervém é introduzido em todas essas transformações como apenas mais um elemento da natureza do planeta. Em certos momentos, fez-me recordar “Solaris” de Tarkovsky (1972) e Lem (1961), a entidade-planeta que pensa e cria mundos-ilusão com o que os humanos se vão deparando, uma entidade que interage connosco não pela ação física ou forma, mas pela relação mental, cognitiva e emocional.

Não posso dizer que o trabalho de Vandermeer seja eminentemente cerebral, existe alguma ação à lá Hollywood, mas claramente quis mais do que isso e conseguiu-o por via do mundo que criou, o modo como o ambientou e ainda a escolha dos intervenientes alienígenas e humanos. Só tenho pena que a Linguística não tenha tido mais espaço, ela é importante mas acaba sendo de certo modo secundarizada, poderia ter aberto outros caminhos como fez Villeneuve em "Arrival" (2016) com a hipótese de Sapir-Whorf.

abril 15, 2019

Viajar, uma volição de posse

Comecei a escrever este texto hoje duas vezes, primeiro por causa do excesso de turistas numa reserva natural de macacos no Japão, mas decidi parar. Depois, por causa de um estudo da eDreams desta semana que conclui que mais de 50% das pessoas na Europa e EUA já escolhem os locais de viagem em função do seu potencial "instagramável". Recomecei, mas parei. De ambas as vezes, refleti sobre o facto de ser semana de Páscoa e de estarem muitos de vós em viagem a gozar descanso e férias, não quis ferir suscetibilidades. Contudo, ao terceiro choque, o facto de terem construído um aeroporto numa ilha das Maldivas que as tartarugas utilizavam para pôr ovos, e agora se veem obrigadas a pôr os ovos no alcatrão, deixou-me estarrecido, e decidido a fechar e publicar o texto.

Maldivas. Tartaruga põe ovos no alcatrão de uma pista de aeroporto recém construída num pequeno atol. As duas imagens por baixo da tartaruga, mostram o atol antes e depois. [Notícia]

Cada vez sinto menos vontade de viajar fisicamente. Já viajei bastante, inúmeros países e lugares, para muitos será pouco, para mim é já demais. As viagens, romantizadas pela literatura, não representam qualquer procura de conhecimento, porque não se apreendem nem assimilam culturas numa semana, isto para não falar em fins-de-semana. Os visionários do turismo souberam aproveitar muito bem a ganância do ser humano, a sua ânsia por ter, a volição de possuir, para nos enfiar pela goela abaixo a necessidade de viajar. Vendem, em letras de slogan: “Ter coisas já não importa, viva experiências”. Mas as experiências culturais não se compadecem com viagens de fim-de-semana, esta são meras coisas que se compram e se colam ao peito do Instagram.

Refúgio de macacos japoneses, piscina natural de água quente, que se transformou em meca turística [blog post]

Sim, porque ver uns edifícios de pedra ou metal, uns quadros ou esculturas, umas árvores ou quedas de água, correndo para riscar os objetivos no mapa, conhecendo apenas o senhor da receção do hotel, ou o do café ao lado do apartamento AirBnB, que nos recebe com um sorriso artificial porque é o seu trabalho diário, e nos agradece a gorjeta no final, pouco antes de voltarmos, a correr de novo, para o aeroporto, não tem nada que ver com o enriquecimento do ser, corremos apenas atrás do status, do “eu estive lá”. Viajar, neste modelo, não é em nada diferente de comprar um carro para mostrar, uma casa maior do que as necessidades, ou vestidos/fatos, sapatos ou joias de estilista. Viajar assim, não tem nada que ver com ter experiências que nos mudam, que nos fazem crescer interiormente, tem apenas que ver com o crescer daquilo que temos. Viajar acaba sendo uma forma material de quantificar o nosso impacto, o quanto conseguimos crescer na escala comparativa. Visitámos já 5, 10 países, 20, 40, visitámos o monumento A ou B, na cidade Y ou Z, tudo isso são apenas coisas, garante de status.

Metade dos portugueses tem em conta o potencial “instagramável” do destino [Público New]. Na imagem uma das polémicas de há algumas semanas com o tirar de selfies nos campos de Auschwitz.

Mas e porquê falar disto se cada um é livre? Bem, sim, somos livres de viajar, temos os mesmos direitos de tantos outros antes de nós. Mas talvez tenha chegado o momento de questionarmos se ter o mesmo direito dos que vieram antes de nós, nos dá também o direito de destruir aquilo que irão receber os que vierem depois de nós. Porque é isso que estamos a fazer com a indústria do turismo, estamos a destruir património dos nossos antepassados, a destruir habitats de espécies, a destruir o planeta colocando aviões no ar que consomem toneladas de combustível fóssil de modo totalmente irresponsável, e estamos ainda a destruir as vidas de quem habita esses locais, provocando perturbações brutais no imobiliário, entre tantas e tantas outras questões. Valerá a pena?


Atualização 16.4.2019
As agências de viagens já nem sequer disfarçam. Foto de um catálogo recente de uma agência nacional.


junho 21, 2018

A brecha na democracia dos EUA

A Fox News tornou-se no maior braço armado da Propaganda Trump, muito mais relevante que Fake News russas nas redes sociais, mais relevante até do que o apoio do próprio Partido Republicano. Tudo graças à imensamente hábil abordagem criada por Rupert Murdoch, senhor do tabloidismo, que vindo de trás se consolidou enormemente neste último ano.


O que temos então é um canal de televisão que se dá à estampa como Noticioso, Fox News, mas que na verdade não notícia, apenas cria entretenimento noticioso. Ao fazê-lo liberta-se das obrigações de factualidade para poder ficcionar de modo criativo. O principal efeito desta abordagem é a criação de um mundo alternativo, no qual os seus espetadores são completamente enredados, atirados para um limbo factual.

Ao longo dos últimos dois anos a Fox News dispensou os menos imaginativos e contratou as estrelas das redes sociais que apoiaram Trump à presidência, deste modo intensificou o seu poder ficcional, aumentando simultaneamente a credibilidade da realidade alternativa por via da união de vozes num mesmo coro, criando coerência e sentimento de grupo. A etiqueta de Notícias que deveria garantir factualidade e contraditório de perspectivas, não o garante, mantendo assim uma identidade apenas aparentemente noticiosa. O problema é que este modo quando usado para fins políticos é tenebroso pois arrisca-se a confinar totalmente os cidadãos. Não é por acaso que se criou todo um código de ética e deontologia no jornalismo.

Acresce a tudo isto o sobrenome Fox. Estamos a falar de um império secular de imaginário americano. Quem nos EUA duvida de algo com que cresceu e aprendeu a amar de todas as vezes que entrou no cinema e ouviu o ribombar e as luzes incidirem sobre as letras 20th Century Fox? Por mais alertas que criemos, é difícil acreditar que quem tanto nos fez sonhar, queira o nosso mal, impossível. E aqui podemos apontar o dedo a Hollywood que hipocritamente tem continuado a viver por conta do império da Fox, sem nunca ousar mexer-se para exigir mais. É fácil falar mal contra Trump, mas colocar a dignidade acima do dinheiro é bastante mais exigente.

Tudo isto se exponenciou com o facto da Fox News ter no poder alguém igual a si. Ou seja, alguém que aceita o modelo e o defende. Ou seja, se tivéssemos apenas a Fox News sozinha, seria mau mas sustentável, mas ter a Fox News apoiada por quem governa, abriu uma brecha estrondosa na democracia americana. A ficção criada por uns é suportada pelos outros num ciclo contínuo de apoio mútuo que impede os cidadãos de ver a realidade por si mesmos. Não é possível ao cidadão médio americano aceitar que Trump mente quando um canal noticioso visto por milhões de pessoas que se unem por interesses comuns, defende e sustenta a mentira com argumentos, ainda que ficcionais, e ainda por cima aponta baterias contra os restantes meios noticiosos, apelidando esses sim de mentirosos. Não é um canal de televisão que aponta o dedo, nem é um governo que aponta o dedo, é a união entre dois elementos que deveriam avaliar-se e escrutinar-se continuamente que gera uma espécie de buraco negro no qual a realidade é regulada por regras próprias.


A Fox News não é o Breitbart, é muito mais perigoso, porque menos extremista, com muito maior cobertura nacional, acesso direto a toda elite económica, financeira e política. Isto deixou de ser um debate direita/esquerda, agora é apenas o "nós" contra "eles" que serviu para criar uma arena no qual se defenderão até às últimas consequências os territórios conquistados. Os EUA estão metidos numa camisa de forças e sair dela não vai ser nada fácil, pelo menos sem que algo de muito grave aconteça pelo meio.

janeiro 16, 2013

Pac-Man e os Gangsters

A vantagem de um jogo minimal em termos de representação como é Pac-Mac é que permite todas as leituras que queiramos fazer do mesmo. Eu já perdi a conta ao número de curtas realizadas nos últimos anos sobre este jogo, cada uma mais inventiva que a anterior (uma ainda recente Pac-Man The Movie, 2012).



Goodnight, Sweet PakMan (2013) de Chris Weller não é apenas mais uma, está sem dúvida no topo do melhor que foi feito neste âmbito. Com uma técnica de excelência, é brilhante na forma como funde o imaginário de Pac-Man com o do cinema Noir e de Gangsters. Vejam.

Goodnight, Sweet PakMan (2013) de Chris Weller