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outubro 11, 2019

A Ilusão do Powerpoint e a Oralidade vs. Escrita

O Powerpoint tem servido de saco de boxe a todos e mais alguns, são inúmeros os comentários e discursos contra o seu uso, uns por causa da componente estética, outros porque serve apenas de cábula à apresentação, outros porque é uma distração, etc. Ao longo dos últimos 15 anos tenho ouvido todo o tipo de justificativos para boicotar a ferramenta. Em todos os casos levantei-me sempre contra tais boicotes, tenho defendido e continuo a defender o seu uso, no entanto a leitura dos justificativos dados por Jeff Bezos fizeram-me refletir, não propriamente no seu uso, mas antes no seu consumo. Ou seja, o problema não me parece estar nos slides, nem nos oradores que os usam (se os souberem utilizar) mas na audiência, nos seus consumidores.


Num e-mail enviado aos colegas da administração de topo, em 2004, Jeff Bezos pedia o fim do uso do Powerpoint nas reuniões com os seguintes argumentos:
“Subject: Re: No PowerPoint presentations from now on at S-team
A little more to help with the question “why.”
Well-structured, narrative text is what we’re after rather than just text. If someone builds a list of bullet points in Word, that would be just as bad as PowerPoint.
The reason writing a good six-page storied memo is harder than “writing” a 20 page PowerPoint is because narrative structure forces better thought and better understanding of what’s more important than what, and how things are related.”
Mais tarde em entrevista a Charlie Rose diria ainda:
“The traditional corporate meeting starts with a presentation. Somebody gets up with a PowerPoint display, some type of slide show. In our view you get very little information, you get bullet points. This is easy for the presenter, but difficult for the audience. And so instead, our meetings are structured around six-page narratives. When you have to write your ideas out in complete sentences, complete paragraphs, and tell a complete story, it forces a deeper clarity.”
Não podia estar mais de acordo no que toca as forças de um texto narrativo versus slides de pontos e palavras-chave. Contudo nesta equação Bezos esquece, ou melhor, elimina da cena totalmente, o orador. Não se pode comparar um texto narrativo e um powerpoint, a comparação, a fazer-se teria de ser feita entre um texto e um orador, podendo depois o orador ser subdividido em: com suporte e sem suporte de powerpoint. Mas foi ao tentar compreender Bezos, que compreendi o verdadeiro problema do Powerpoint, ou melhor, dos consumidores de Powerpoint. Para quem, como eu participa há décadas em reuniões com e sem powerpoint e também dá aulas há décadas com Powerpoints, fez-se luz. Analise-se o seguinte cenário:
9h00, reunião/aula, chegam todos, 12 pessoas (ou 60 alunos), o orador/professor já está com o Powerpoint ligado, os colegas/alunos sentam-se, puxam dos portáteis, colocam-nos à sua frente, ligados à rede, o telemóvel ao lado e um café ou copo de água. O orador/professor inicia, lança a discussão e atrás de si vai projetando palavras, frases, imagens e tabelas que ilustram o que vai dizendo. Passados 5 minutos, metade dos espetadores está a ler os e-mails que chegaram durante o fim do dia anterior e noite, um quarto a verificar as notícias do dia, e o restante quarto a verificar as redes sociais. De vez em quando levantam as cabeças e ouvem uma expressão, uma piada ou um exemplo mais estranho, fixam algumas palavras do Powerpoint, mas rapidamente voltam aos seus afazeres matinais. No final da reunião (aula), as tarefas e trabalhos são divididos ou pedidos. O Powerpoint é enviado para todos ou colocado no sistema de eLearning online, e cabe a cada um lançar mãos ao trabalho. Chegados aos gabinetes ou a casa, vão ler e reler o Powerpoint, e dizem que não serve para nada, que a reunião/aula foi uma perda de tempo.
Ora o que aconteceu não foi um problema de Powerpoint, mas antes um total desrespeito para com o colega/professor que preparou a palestra e aula, que desenvolveu os slides para acompanhar os 30 a 50 minutos de performance no contar de história oral. Por outro lado, os slides não foram desenhados para serem lidos como história. Os slides servem apenas de suporte, ilustração e reforço de uma performance oral. Quando se pega neles sem orador, é como se pegássemos numa lista de supermercado, são mero descritivo, sem narrativização, sem contexto, sem exemplos, nem metáforas.

Não é este o bom uso que refiro. Entre isto e ler um texto não há diferença. Preferível enviar o texto por e-mail e cancelar a reunião.

Claro que um texto narrativo é superior, mas quantos de vocês já assistiram a sessões de textos lidos? Lidos não por dramaturgos ou atores, mas por simples pessoas? Ninguém aguenta (eu já aguentei muitas) de leitura monocórdica de textos. Os textos escritos como narrativas não servem a oralidade porque enrijecem a linguagem não-verbal do orador, porque quando são escritas são-no para se valerem per se, sem orador — servem antes como dizia Stephen King “a telepatia entre escritor e leitor” —, e por isso mesmo convidam à castração da performance retórica, o objetivo de um texto narrativo é colocar o leitor dentro da ação, já um texto oral é uma partilha, o orador é um guia da ação, não se abstém da sua presença, é a sua função principal levar pela mão a audiência a sentir e a ver, tal Virgilio conduzindo Dante pelos estágios do Inferno.

Gravura de Gustave Dore, "Virgilio e Dante", in "Divina Comédia" de Dante

Claro que podemos comunicar sem Powerpoint. Os comediantes fazem-no todos os dias, e não precisam de Powerpoint. Mas um comunicador ou professor não tem de ser um comediante, não pode ser um comediante, cabem-lhe outras responsabilidades além da produção de um momento de partilha de ideias pela oralidade. O Professor tem matéria nova para digerir todos os dias, e tem de encontrar as melhores formas pedagógicas de as levar até à sua audiência, não apenas pela oralidade, mas essencialmente através da produção de exercícios e atividades. E ao aluno não cabe apenas realizar os exercícios, cabe também estar presente no momento da partilha, e aceitar a mão oferecida pelo professor que o guia. Por outro lado, o Powerpoint é útil na expansão de recursos de suporte à performance do orador, nomeadamente porque pode dar a ver aquilo que é apenas texto ou verbo, tornar palpável ao espectador o que é simbólico (palavras e texto) ou seja abstrato.

Veja-se a diferença entre uma interface de comandos de texto MS-Dos e uma interface gráfica Windows. A maior facilidade que o utilizador tem no uso conceptual dos conceitos. Não estamos a falar de diferença entre texto narrativo e imagens narrativas, isso é outra discussão.

Assim o verdadeiro problema do Powerpoint não é, de todo, a sua fragilidade comunicativa, mas é antes a ilusão que cria no espectador de que ele pode estar a ouvir e a ver a comunicação. Não só porque o multicanal da comunicação cria a sensação de que o multitasking (ver e-mail, responder, redes, etc.) é possível, mas mais gravoso ainda porque o facto de ser um objeto digital, pode ser facilmente registado e copiado, sem qualquer esforço. Ou seja, os alunos baseiam as suas memórias do momento na ideia de que depois vão ter acesso aos slides, e por isso nem sequer precisam de tirar notas, algo impensável quando os quadros eram escritos a giz, e apagados para todo o sempre no final da aula. Ora quando depois chegam a casa e vão ler os slides, verificam que neles está uma mera síntese de palavras-chave e pistas para ideias, mas que para quem não esteve concentrado na performance da história e não realizou a “visita guiada às ideias” pelo professor, nada dizem.

Diga-se que, e no caso das aulas em particular, muito disto podia ser colmatado ainda, se os alunos lessem os textos, a bibliografia recomendada, mas como isso é ainda mais trabalhoso do que estar atento nas aulas, acabam por limitar o seu estudo aos slides, e isso reflete-se de forma inevitável nas notas finais.