"Berlin" (2018) trata o surgimento do nazismo na Alemanha dos anos 1920 e parece ter sido criado por forma a espelhar o momento que vivemos de pós-crise financeira 2008 com as consequentes polarizações políticas do tipo BREXIT a chegarem aos EUA, América do Sul e Ásia. Contudo, quando Jason Lutes começou a produzir esta novela gráfica, vivia em Seattle e corria o ano de 1996, vivia-se a primeira grande euforia financeira das Tecnologias de Informação, que viria a ditar o estouro das chamadas dot.com em 2001. Essa primeira onda tecnológica trouxe, desde logo, à tona enormes desigualdades sociais o que acabaria por interessar Lutes em tudo aquilo que tinha acontecido em Berlim:
"I was living in Seattle, where the World Trade Organisation protests had happened, and there was already strong friction between the internet millionaires and the less fortunate. I was relating my experience in the moment to [what was going on in] my imagined Berlin, so I didn’t only think of the subject in a bubble to be looked at from a distance. All the same, I could never have predicted what would eventually come out of all of that.” The Guardian, 30.9.2018
Tendo em conta os 20 anos investidos por um criador na produção de uma obra, só muito dificilmente ela poderia ser de todo irrelevante. Quando alguém investe uma parte significativa da sua vida na criação concreta de algo, na prossecução de um sonho com princípio, meio e fim, é importante que paremos e tentemos ouvir, neste caso ler e ver. Se mais nada aqui houvesse, que não é o caso, toda a experiência criativa de anos e anos acumulada e sintetizada numa obra acabada serviria o nosso deslumbre e admiração na tentativa de tentar compreender porquê. Tem de ser algo muito intenso, minimamente relevante, para garantir a atenção de alguém ao longo de tantos anos. Mas se depois essa obra é publicada por uma grande editora e é recebida com rasgados elogios pela crítica, então nada fica a faltar, apenas a nossa própria experiência da mesma.
Começo por dizer que "Berlin" é mais novela do que novela gráfica, no sentido em que usa uma estrutura narrativa muito mais comum na literatura do que na banda desenhada. Falo em concreto do entrelaçamento de vários enredos, com cerca de 40 personagens envolvidas, ligados pelo espaço de uma cidade, mas essencialmente pelos interesses familiares e sociais das personagens. Apesar das 560 páginas, são muitas personagens, e nem sempre é fácil distinguir quem é quem, o que obriga a uma atenção redobrada, também menos comum nas novelas gráficas. Uma das razões para este efeito é a escolha pelo preto-e-branco que torna mais difícil diversificar e estereotipar os personagens para facilitar a compreensão do leitor. Contudo, acredito que o desejo de Lutes era este mesmo, tal como acontece nos romances mais elaborados, de levar o leitor a sentir todos aqueles personagens como amalgama emocional e social que forma a cidade, e não como meras entidades discretas.
Posso dizer que conhecia minimamente o surgimento de Hitler, mas só agora me dei conta que conhecia muito mais sobre o pós-1933, ano em que foi eleito, sendo esse o ano em que termina esta narrativa. Ou seja, Lutes não se focou na explicação do modo como Hitler conduziu o seu império do mal, mas antes no modo como a cidade de Berlin, a Alemanha, permitiu a chegada de alguém como Hitler ao governo. Nesse sentido, aprende-se muito a ler "Berlin", nomeadamente sobre a interação com a Revolução Russa de 1917, e a tentativa de estabelecer na Alemanha um sistema idêntico. Ou seja, não foi apenas um problema do Crash das Bolsas e da grande Depressão de 1929, a política alemã estava ao rubro e a crise financeira veio apenas dar o empurrão final. Impressionou-me ainda descobrir que Goebbels, o maior arauto de Propaganda de sempre, esteve presente desde o início, e que sem ele Hitler muito dificilmente teria chegado ao poder.
Em termos de experiência, a leitura começa lenta, muito pela densidade mas também por algum desconhecimento nosso do contexto, mas vai ganhando tração e suga-nos para dentro no final. Depois de terminar o livro, ainda dou por mim a regressar àqueles espaços, a ouvir aqueles personagens. Acredito que Lutes poderia ter trabalhado melhor a expressão dramática de alguns personagens que apesar de densos ficam por vezes um pouco distantes. Mas a componente gráfica é excecional, contribuindo imenso para construção do imaginário da cidade e das vidas daquelas pessoas. Claro que ajuda o facto de estarmos a ler uma obra destas em 2020, em plena crise política internacional, e ver tantos paralelos com a realidade que vivemos, como diz Lutes “It’s a horrible kind of good fortune”.