“Antígona” (-442) é a parte final de uma trilogia que se inicia com
“Rei Édipo” (-427) a que se segue
“Édipo em Colono” (-406), ou seja, a última parte, mas a primeira a ser escrita por Sófocles (-497 — -405). Assim, se a primeira parte ganhou repercussão no nosso imaginário contemporâneo deve-o não só à hábil estrutura narrativa, capaz de prender o leitor e agitar as suas emoções do início ao final, mas principalmente a Freud por ter inventado um complexo incestuoso, que nunca existiu, já que Édipo só descobre que tem uma relação com a própria mãe depois de com ela ter casado. “Édipo em Colono” funciona como episódio intermédio, contribuindo para aumentar o universo dramático, nomeadamente do seu espaço, como das personagens fundamentais, pondo em cena o fim de Édipo, estando Sófocles perto da sua própria morte, e dando corpo às duas percentagens centrais de “Antígona”, Antígona e Polinices.
Recorte de "Antigone donnant la sépulture à Polynice"(1825) de Sébastien Norblin [ver Galeria]
Se o “Rei Édipo” nos choca pelo conflito com a natureza, pelo incesto, Antígona agarra-nos pelo conflito entre o indivíduo e o coletivo. Não admira que Antígona tenha sido a primeira peça, e uma das primeiras peças de Sófocles, é muito mais liberal, centrada nos valores sonhadores da autodeterminação, enquanto Rei Édipo é quase uma aceitação tácita do determinismo que sepulta o livre-arbítrio.
Temos uma Antígona que questiona a lei, desafia o governador, o rei Creonte, aceitando a morte em troca da defesa dos seus princípios, o direito de enterrar o irmão. Podemos ler na vontade de Antígona apenas o cumprimento dos desejos dos deuses, e do seu irmão expresso em “Édipo em Colono”, de que se sepultem os mortos sob terra, mas isso é apenas um pretexto dramático. O que temos é, Antígona, uma mulher respeitada por toda a sociedade a questionar uma ordem do governador, da autoridade, provocando um conflito na sociedade, que por ter em tanta consideração Antígona, e por aquilo que pede não lhes parecer indigno, a coloca face a um dilema, aceitar ou não aceitar a vontade de Antígona. Este conflito é ainda mais ampliado com a entrada em cena de Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígona. Habilmente, Sófocles não dá espaço à emocionalidade básica da historieta do amor cego, antes aproveita para captar do confronto pai-filho, a mesma problemática da auto-determinação do indivíduo, entrando aqui no território sagrado do “Honrarás Pai e Mãe”.
A peça questiona assim, sem rodeios, a autoridade daqueles que se dispõem a dispor das vidas dos outros, seu povo ou seus filhos. Deve um cidadão deixar de se afirmar, de se edificar, enquanto ser humano individual e livre, apenas para cumprir os desígnios de um líder, que o é temporariamente. E um filho? Deve ele submeter-se a todas as vontades de um pai, apenas porque dele nasceu? Com que direito podemos pôr e dispor das vidas dos nossos filhos (cf.
“Uma Educação”, 2018)?
Refletindo agora, esta questão vai ao coração do Rei Édipo, dando a parecer que Sófocles quis aprofundar o dilema daquilo que somos e do poder que detemos para determinar o que somos. Poderemos, mesmo pelas supostas leis da natureza, anti-incesto, condenar Édipo? Quanto daquilo que somos depende de nós? dos outros? da natureza? Temos mesmo acesso a um livre-arbítrio?
Tendo-o ou não, devemos, não, acredito que temos a obrigação de nos edificar, de trabalhar para o que é justo, que não podendo ser escrito como lei, por nenhum rei ou governante, por nenhuma sociedade, nem por nenhum pai ou mãe, já que o que é justo é emanado da moral que se escreve momento a momento pela própria evolução da civilização, podendo apenas basear-se no princípio basilar que suporta todos os ditames filosóficos e religiosos desde sempre, sendo hoje reconhecida como Regra Dourada:
“Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.”