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fevereiro 27, 2021

"Oresteia" (458 a.C.)

A “Oresteia” é uma peça relevante enquanto extensão do universo de Tróia, já que dá conta dos eventos que se sucedem à chegada a casa do vitorioso Agamémnon, o rei grego que partiu para vingar a honra do irmão Menelau. Tendo a guerra durado 10 anos, no regresso tinha à sua espera a esposa e o seu povo, mas tinha também uma provação. Agamémnon regressa na posse de Cassandra, uma das filhas do rei de Tróia, Príamo. Mas aquando da sua partida, seguindo as profecias, aceitou sacrificar a sua filha Ifigénia, algo que a sua esposa, Clitemnestra, nunca lhe perdoou. 

abril 20, 2019

A importância de “Antígona”

“Antígona” (-442) é a parte final de uma trilogia que se inicia com “Rei Édipo” (-427) a que se segue “Édipo em Colono” (-406), ou seja, a última parte, mas a primeira a ser escrita por Sófocles (-497 — -405). Assim, se a primeira parte ganhou repercussão no nosso imaginário contemporâneo deve-o não só à hábil estrutura narrativa, capaz de prender o leitor e agitar as suas emoções do início ao final, mas principalmente a Freud por ter inventado um complexo incestuoso, que nunca existiu, já que Édipo só descobre que tem uma relação com a própria mãe depois de com ela ter casado. “Édipo em Colono” funciona como episódio intermédio, contribuindo para aumentar o universo dramático, nomeadamente do seu espaço, como das personagens fundamentais, pondo em cena o fim de Édipo, estando Sófocles perto da sua própria morte, e dando corpo às duas percentagens centrais de “Antígona”, Antígona e Polinices.

Recorte de "Antigone donnant la sépulture à Polynice"(1825) de Sébastien Norblin [ver Galeria]

Se o “Rei Édipo” nos choca pelo conflito com a natureza, pelo incesto, Antígona agarra-nos pelo conflito entre o indivíduo e o coletivo. Não admira que Antígona tenha sido a primeira peça, e uma das primeiras peças de Sófocles, é muito mais liberal, centrada nos valores sonhadores da autodeterminação, enquanto Rei Édipo é quase uma aceitação tácita do determinismo que sepulta o livre-arbítrio.

Temos uma Antígona que questiona a lei, desafia o governador, o rei Creonte, aceitando a morte em troca da defesa dos seus princípios, o direito de enterrar o irmão. Podemos ler na vontade de Antígona apenas o cumprimento dos desejos dos deuses, e do seu irmão expresso em “Édipo em Colono”, de que se sepultem os mortos sob terra, mas isso é apenas um pretexto dramático. O que temos é, Antígona, uma mulher respeitada por toda a sociedade a questionar uma ordem do governador, da autoridade, provocando um conflito na sociedade, que por ter em tanta consideração Antígona, e por aquilo que pede não lhes parecer indigno, a coloca face a um dilema, aceitar ou não aceitar a vontade de Antígona. Este conflito é ainda mais ampliado com a entrada em cena de Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígona. Habilmente, Sófocles não dá espaço à emocionalidade básica da historieta do amor cego, antes aproveita para captar do confronto pai-filho, a mesma problemática da auto-determinação do indivíduo, entrando aqui no território sagrado do “Honrarás Pai e Mãe”.

A peça questiona assim, sem rodeios, a autoridade daqueles que se dispõem a dispor das vidas dos outros, seu povo ou seus filhos. Deve um cidadão deixar de se afirmar, de se edificar, enquanto ser humano individual e livre, apenas para cumprir os desígnios de um líder, que o é temporariamente. E um filho? Deve ele submeter-se a todas as vontades de um pai, apenas porque dele nasceu? Com que direito podemos pôr e dispor das vidas dos nossos filhos (cf. “Uma Educação”, 2018)?

Refletindo agora, esta questão vai ao coração do Rei Édipo, dando a parecer que Sófocles quis aprofundar o dilema daquilo que somos e do poder que detemos para determinar o que somos. Poderemos, mesmo pelas supostas leis da natureza, anti-incesto, condenar Édipo? Quanto daquilo que somos depende de nós? dos outros? da natureza? Temos mesmo acesso a um livre-arbítrio?

Tendo-o ou não, devemos, não, acredito que temos a obrigação de nos edificar, de trabalhar para o que é justo, que não podendo ser escrito como lei, por nenhum rei ou governante, por nenhuma sociedade, nem por nenhum pai ou mãe, já que o que é justo é emanado da moral que se escreve momento a momento pela própria evolução da civilização, podendo apenas basear-se no princípio basilar que suporta todos os ditames filosóficos e religiosos desde sempre, sendo hoje reconhecida como Regra Dourada: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.”

dezembro 31, 2018

Medeia (431 a.c.)

Uma viagem de 2500 anos para encontrar um problema humano que continua igual a si mesmo, capaz ainda hoje das mesmas consequências trágicas. Antes de se iniciar o relato de Eurípides, Medeia terá traído o pai e morto o irmão para ajudar Jasão e os Argonautas, abandonando depois o seu país com Jasão, de quem viria a ter dois filhos. O relato começa com Medeia já na Grécia, um país estranho para ela, descobrindo que Jason decidiu abandoná-la para casar com a filha de Creonte, rei de Corinto. O que sucede depois só pode ser tragédia, mas porquê?

"Medeia e a Urna" (1873) de Anselm Feuerbach

De tanto que se poderia destacar nesta pequena peça de Eurípedes opto por me focar nesta questão porque ao longo dos anos me tenho debruçado invariavelmente sobre ela, dada a intensa emocionalidade que tende a gerar, sendo grandemente responsável por muito daquilo que conhecemos hoje como violência doméstica. Aliás, não é por acaso que nos meus 30 livros preferidos tenho “Os Dias do Abandono” (2002) de Elena Ferrante, o livro que me veio de imediato à mente assim que comecei a “ouvir a voz” de Medeia.

A meio da peça Jasão apresenta as suas razões para casar com a filha do rei, que como diz o Coro e Medeia, não passam de bem falar, sem substrato. Repare-se como é este o cerne: a razão para o abandono. Porque o casamento não é uma cerimónia, é um contrato, um contrato que requer uma razão para ser quebrado. O problema é que a razão precisa de satisfazer ambas as partes no mesmo momento, e isso só muito raramente acontece. Assim, quando não existe o encontro e a sincronia entre as partes para aceitar o fim, abandonamos o reino da razão e da lógica, e entramos pelo reino exclusivo da emoção adentro. Aí começam a surgir os grandes substantivos — traição, deslealdade, engano, impostura — que levam ao pior do humano: a vingança, a punição, a destruição.

setembro 02, 2018

"Édipo Rei" de Sófocles

Não vou fazer nenhuma análise em profundidade desta obra — "Édipo Rei" (-429) — pois para o tamanho do texto, nomeadamente o conflito principal em causa, já foi tudo tão amplamente dissecado que será impossível dizer algo de novo. Por isso expressarei apenas breves notas sobre a minha experiência de leitura.

Há muito tempo que tinha intenção de iniciar a leitura dos textos dramáticos da antiga Grécia, mas tal como aconteceu com Shakespeare, fui sempre protelando, porque as peças teatrais escritas não são propriamente o meu forte. Tenho dificuldade em aceitar aceder a uma obra que no estado escrito é apenas parte de um todo. Contudo, tanto quando li Shakespeare como agora com Sófocles, fui surpreendido pelos textos, pela sua capacidade de me demover. Sei bem que falo de peças não apenas de grande qualidade mas capazes de ultrapassar o teste de séculos e milénios.

Assim e se Édipo era para mim um personagem amplamente conhecido, pelo modo como invadiu o imaginário ocidental, não sei se por graça de Sófocles ou das tontices de Freud, a peça acabou por me surpreender exatamente no modo como se destaca da descoberta do conflito principal. Quando iniciei a leitura senti-me algo desmotivado por ver tanta discussão — sobre o filho que mata o pai e casa com a mãe — tentasse eu aceder à obra onde quer que fosse, em que edição fosse. No entanto Sófocles vai muito para além da trama, ela está lá, ela tudo faz mover, e de certo modo confere a Aristoteles razão quando este afirma que é a trama mais importante que os personagens, mas é Sófocles que acaba a demonstrar o contrário. Ou seja, se o conflito está lá, se o enredo empurra os personagens para uma espécie de precipício dramático, continuam a ser os personagens quem decide saltar ou não. Sófocles centra-se nesse ponto, em buscar o modo como reagir a algo que conhecíamos de antemão, e executa de forma trágica, como não podia deixar de ser numa tragédia.

Assim, digo que se me incomodou toda a dependência dos deuses e dos adivinhos, não deixou de me impactar a decisão final de Édipo pensada para ter efeito tanto nesta vida como no além. É um clímax digno da catarse de Aristoteles, e que explica bem o receio que Platão tinha de ver a República manipulada pelas artes.

 
"The blind Oedipus commending his children to the Gods", 1784, de Bénigne Gagneraux

Uma nota final para a questão do incesto. Vivemos uma época de grande liberação sexual, o que tem vindo a abrir espaço para a defesa do incesto entre adultos (cf. "Impunidade" HG Cancela). Em defesa destas visões muitas vezes enunciam-se os nossos antepassados gregos e romanos pela sua liberdade que teria sido, mais tarde, castrada pela igreja. Contudo, do que se pode ler nestes textos, é que se existia maior liberdade sexual ela estava muito longe de uma anarquia moral.