julho 29, 2019

Das lamentações criativas

Confesso que me soube a pouco — "Blood, Sweat, and Pixels: The Triumphant, Turbulent Stories Behind How Video Games Are Made" (2017) — de Jason Schreier, tanto na análise dos casos — "Pillars of Eternity", "Uncharted 4", "Stardew Valley", "Diablo III", "Halo Wars", "Dragon Age: Inquisition", "Shovel Knight", "Destiny", "The Witcher 3" — como nas conclusões gerais. O facto de serem tudo jogos bastante conhecidos ajuda, e torna interessante a leitura, mas no final fica-se como se tivéssemos acabado de ler 10 artigos do Kotaku, um bocado mais extensos. Falta capacidade para aprofundar e poder de dar a ver, para causar reflexão. Nada do que se diz é propriamente novidade, nem tão pouco segredo como os blurbs que vendem o livro querem fazer parecer. Lê-se o primeiro capítulo sobre "Pillars of Eternity" e sente-se o mesmo discurso do documentário “Indie Game -The Movie” (análise), o que não é mau, dá algum gozo, sabe bem. Depois "Uncharted 4" confirma algumas dúvidas sobre o que tinha acontecido na relação entre Last of Us e Uncharted, sem nada de muito espantoso. E chegamos a "Stardew Valley" e o seu criador, Eric barone, para entrar definitivamente adentro de “Indie Game -The Movie”. O problema é que depois disso é sempre a descer, porque o resto dos capítulos são todos iguais, mais do mesmo, apenas com diferentes intervenientes, diferentes jogos, lugares e montantes, uma decepção completa. Schreier não só não aprofunda, como apresenta um espírito crítico de nível zero, para ele todos estes criadores são dignos de idolatração, resta-nos admirar o seu esforço e agradecer-lhes.

"Uncharted 4" (2016)

Já aqui tinha ressaltado a parte da introdução e das cinco razões por que é difícil fazer jogos (ver texto), contudo quero salientar, e não é uma conclusão nova embora o último capítulo —sobre o jogo que nunca o foi “Star Wars 1313" — tenha ajudado a despoletar esta minha visão, e que tem que ver com as indústrias criativas. Criar algo digno de ser apreciado enquanto obra, enquanto detentor de valor ético, moral mas acima de tudo significante, não está ao alcance de indústrias, corporações, fábricas desenhadas para fazer dinheiro. Claro que se podem criar carrosséis para parques de atrações, capazes de gerar sensações fortes e divertir as pessoas durante um bom bocado. Mas ir além disso, criar artefactos que marquem as pessoas, que lhes toquem e as transformem, que as façam desejar ter sido elas a ter criado aquela obras é algo completamente distinto. É por isso que criar um jogo, um filme, um livro é diferente de criar um software de gestão de supermercado, ou um manual para aprender a usar o Photoshop. Porque nestes últimos só importa a eficiência, enquanto nos primeiros, sendo relevante a eficiência, ela pode ser secundarizada pelo significado, já que sem este é completamente irrelevante a sua existência. Um jogo existe apenas para significar algo, para estabelecer uma relação entre quem cria e quem joga, se serve apenas para passar o tempo, usa-se e deita-se fora, como fazíamos com os manuais de 3d Studio Max.

O jogo que nunca existiu porque Lucas resolveu vender a empresa à Disney, e esta simplesmente decidiu que não queria fazer jogos para consolas!!!

Esta assunção marcou-me ao ler o último capítulo, no qual os trabalhadores da Lucas Arts, em entrevistas, dizem-se dispostos a aceitar tudo e mais alguma coisa de George Lucas, mesmo dizendo que ele nada percebe de desenhar um videojogo, apenas porque o vêem como um mentor de culto, mas a resposta de Lucas acaba por ser o total desprezo, vendendo a empresa à Disney que ao chegar resolve terminar com todos os jogos a decorrer, mesmo "Star Wars 1313", que já tinha sido apresentado na E3. Sobre isto, Schreier não tem uma única palavra, como se fosse tudo aceitável, como se a indústria fosse isto mesmo, dinheiro a mudar de mãos. Que interessa os anos investidos por 60 pessoas num jogo?!! Na verdade, se calhar Lucas tinha razão, o facto de ser um jogo feito por uma empresa tão grande, fez do jogo um projeto de ninguém, um projeto que deve apenas apontar à eficiência dos parâmetros que vão garantir o retorno do dinheiro investido, nada mais. Quem é que quer saber de mais um jogo sobre Star Wars?

Não vou dizer que o livro seja toda uma perda de tempo. Para quem já se envolveu nestas aventuras de criar obras, jogos ou outro tipo qualquer de obra criativa, facilmente se reverá nas descrições. Sim, porque a complexidade da criação de jogos pode ser ligeiramente maior que noutras áreas, mas a produção criativa humana faz-se do mesmo modo, movido por muitas ansiedades, neuroses, frustrações, euforias, alegrias e derrotas...

julho 21, 2019

A coincidência e a genialidade num livro único

Mais importante do que saber que prémios ganhou este livro — "O Último Samurai" (2000) —, ou que tem surgido em várias listas do que melhor foi publicado até agora neste novo século, é para mim o facto de ser um primeiro livro carregado de experiência, porque é o resultado final de alguém que resolveu deixar para trás uma carreira para se dedicar a dar resposta a um desejo interno que a consumia desde sempre, é o resultado de uma mente chegada aos quarenta com meia-centena de romances inacabados. Foi a perseverança que fez Helen DeWitt deixar tudo para trás e tomar as rédeas da sua condição para passar a dedicar-se a criar a única coisa que daria sentido à sua vida, um romance. Só isto seria mais do que suficiente para eu querer ler o livro e admirá-lo, por mais fraco que fosse o livro, nunca se perderia a possibilidade de admiração de um grito pessoal, experiente e íntimo de alguém, porque nada pode ser mais interessante ou relevante do que isto em literatura.

Ilustração de Matt Cummings sobre o livro e que dá conta da obsessão da mãe e filho por livros e pelo filme "Os Sete Samurais" de Akira Kurosawa.

Ao longo de todo o livro assistimos a um diálogo justaposto, entre uma mãe solteira com inteligência acima da média e o seu filho prodígio, atravessando da infância à pré-adolescência. A relação entre duas mentes brilhantes permite-lhes planar acima do quotidiano e focarem-se exclusivamente na racionalização do real e factual, operando sempre a vários níveis de abstração, ou seja, não discutindo sequer obras, mas antes as meta-linguagens que permitem criar essas obras, da literatura ao cinema, da filosofia à linguística, de tudo um pouco atravessa a paisagem de “O Último Samurai”, mesmo alguma matemática e física, mas com muito menor ênfase.

As referências ao longo do livro são todas do topo canónico, somos brindados com discussões sobre a Odisseia, Ilíada, Gilgamesh, Argonautica, As Mil e uma Noites, Proust ou Joyce; os filmes Sete Samurais, Padrinho; ou os génios precoces de John Stuart Mill e Yo-Yo Ma; ou ainda a música de Brahms ou Olivier Messiaen tudo apresentado e dialogado muitas vezes no grego, islandês ou japonês originais à mistura com francês, alemão ou italiano, enquanto a mãe vai investindo dias a fio a datilografar, para poder pagar a renda e sobreviver, umas revistas britânicas antigas sobre “Pesca Avançada”, “O Criador de Caniches” ou “Esqui Aquático Internacional”, quando não têm de passar horas às voltas numa carruagem de metro para fugir à falta de aquecimento no apartamento em que vivem.

Mas nada disto é apresentado com sobranceria, claramente existe uma noção do que é importante, do que é relevante, do que devemos ir atrás, mas não existe um posicionamento acima de qualquer um pela condição de se ser brilhante menos ainda diferente, antes existe a noção de um investimento tremendo, de uma fuga à preguiça, vista essa sim como a razão pela qual nem todos chegam lá. Como diz a mãe a determinada altura a propósito da pessoa com quem teve uma relação de uma noite da qual acabaria por nascer o seu único filho: “The fact is that 99 out of 100 adults spare themselves the trouble of rational thought 99% of the time”; ou como disse Thomas Edison: “Genius is 1 percent inspiration and 99 percent perspiration”.

DeWitt cobre tudo isto com um esquema adicional que funciona como filosofía implícita de vida e que tem que ver com o acaso, o acidente e a coincidência. Tudo é possível, do pior ao melhor, por mais que nos esforcemos, não existe qualquer certeza de podermos ser recompensados, contudo talvez por isso mesmo não devamos fazer nada em busca dessa recompensa, mas apenas em busca daquilo que nos define. Esta é para mim a grande mensagem do livro, e da autora, alguém claramente muito particular, que foi capaz de produzir uma obra carregada de elevação intelectual e ao mesmo tempo imensamente acessível no campo emocional, tudo numa luta imensa contra os editores (ver o vídeo) que pretendiam um livro bastante mais simples, enquadrado nos cânones contemporâneos.


Uma última nota, é impossível ler este livro sem ir a correr rever "Os Sete Samurais" (1954),  agradecendo desde já a DeWitt toda a interpretação da obra fornecida ao longo do texto que me fez repensar o filme de ângulos que nunca antes tinha imaginado, demonstrando a força e relevância dos processos interpretativos tão caros às ciências humanas.

julho 20, 2019

5 Razões porque é Difícil fazer Videojogos

Comecei a ler “Blood, Sweat, and Pixels” do Jason Schreier e chegado ao final da introdução pareceu-me existir já material relevante para partilhar, tendo em conta que Schreier apresenta nessa mesma introdução uma espécie de síntese daqueles que são os problemas centrais da produção de videojogos, ou seja, dos elementos específicos que separam esta indústria cultural das demais, nomeadamente de um lado a cinematográfica, e do outro a de produção de software.


Definição do processo de produção de qualquer jogo:
“Every single video game is made under abnormal circumstances. Video games straddle the border between art and technology in a way that was barely possible just a few decades ago. Combine technological shifts with the fact that a video game can be just about anything, from a two-dimensional iPhone puzzler to a massive open-world RPG with über-realistic graphics, and it shouldn’t be too shocking to discover that there are no uniform standards for how games are made. Lots of video games look the same, but no two video games are created the same way”
As 5 razões apresentadas abaixo são o resultado da síntese de entrevistas a mais de 100 criadores da grande indústria internacional de jogos, entre 2015 e 2017, responsáveis por títulos como: "Pillars of Eternity", "Uncharted 4", "Stardew Valley", "Diablo III", "Halo Wars", "Dragon Age: Inquisition", "Shovel Knight", "Destiny", "The Witcher 3":


1. Eles são Interativos
“Video games don’t move in a single linear direction. Unlike, say, a computer-rendered Pixar movie, games run on “real-time” graphics, in which new images are generated by the computer every millisecond. Video games, unlike Toy Story, need to react to the player’s actions. As you play a video game, your PC or console (or phone, or calculator) renders characters and scenes on the fly based on your decisions. If you choose to walk into a room, the game needs to load up all the furniture. If you choose to save and quit, the game needs to store your data. If you choose to murder the helpful robot, the game needs to identify (a) whether it’s possible to kill the robot, (b) whether you’re powerful enough to kill the robot, and (c) what kind of awful sounds the robot will make as you spill its metallic guts. Then the game might have to remember your actions, so other “characters know that you’re a heartless murderer and can say things like, “Hey, you’re that heartless murderer!”
2. A Tecnologia está Constantemente a Mudar
“As computers evolve (which happens, without fail, every year), graphic processing gets more powerful. And as graphic processing gets more powerful, we expect prettier games. As Feargus Urquhart, the CEO of Obsidian, told me, “We are on the absolute edge of technology. We are always pushing everything all the time.” Urquhart pointed out that making games is sort of like shooting movies, if you had to build an entirely new camera every time you started. That’s a common analogy. Another is that making a game is like constructing a building during an earthquake. Or trying to drive a train while someone else runs in front of you, laying down track as you go.”
3. As Ferramentas são Sempre Diferentes 
To make games, artists and designers need to work with all sorts of software, ranging from common programs (like Photoshop and Maya) to proprietary apps that vary from studio to studio. Like technology, these tools are constantly evolving based on developers’ needs and ambitions. If a tool runs too slowly, is full of bugs, or is missing pivotal features, making games can be excruciating. “While most people seem to think that game development is about ‘having great ideas,’ it’s really more about the skill of taking great ideas from paper to product,” a developer once told me. “You need a good engine and toolset to do this.”
4. A Calendarização é Impossível
“The unpredictability is what makes it challenging,” said Chris Rippy, a veteran producer who worked on Halo Wars. In traditional software development, Rippy explained, you can set up a reliable schedule based on how long tasks have taken in the past. “But with games,” Rippy said, “you’re talking about: Where is it fun? How long does fun take? Did you achieve that? Did you achieve enough fun? You’re literally talking about a piece of art for the artist. When is that piece of art done? If he spends another day on it, would that have made all the difference in the world to the game? Where do you stop? That’s the trickiest part. Eventually you do get into the production-y side of things: you’ve proven the fun, you’ve proven the look of the game, and now it becomes more predictable. But it’s a real journey in the dark up until that point.” Which leads us to...”
5. É Impossível saber o quão "Divertido" será um Jogo até que o Joguemos
“You can take educated guesses, sure, but until you’ve got your hands on a controller, there’s no way to tell whether it feels good to move, jump, and bash your robot pal’s brains out with a sledgehammer. “Even for very, very experienced game designers, it’s really scary,” said Emilia Schatz, a designer at Naughty Dog. “All of us throw out so much work because we create a bunch of stuff and it plays terribly. You make these intricate plans in your head about how well things are going to work, and then when it actually comes and you try to play it, it’s terrible.”

Excertos da Introdução de “Blood, Sweat, and Pixels: The Triumphant, Turbulent Stories Behind How Video Games Are Made” (2017) de Jason Schreier, da Harper Paperbacks.

julho 14, 2019

A Ilusão da Memória: Recordando, Esquecendo e a Ciência das Memórias Falsas

O livro "The Memory Illusion: Remembering, Forgetting, and the Science of False Memory" (2016) não traz nada de muito novo, mas reforça com amplas evidências a fragilidade de algo que nos habituámos a acreditar como sendo a verdade daquilo de que somos feitos. Seguindo Damásio, o Eu é feito das memórias autobiográficas, por isso perceber o quão frágeis essas memórias são, e quão iludidos podemos tão facilmente ser, põe a nu a impotência daquilo que somos e ansiamos ser. Neste sentido, ler Memory Illusion funciona como uma espécie de porta para um ganho de maior consciência sobre o funcionamento do nosso inconsciente.


A especialidade de Julia Shaw é o estudo das memórias falsas. É professora na London South Bank University, e trabalha como consultora forense em casos relacionados com o abuso sexual. O foco do livro é sobre a facilidade com que se criam e apagam memórias, descrevendo-se técnicas sobre modos de fabricação de memórias falsas, e algumas tentativas para despistar as mesmas. É uma área de estudo pantanosa, já que incide totalmente sobre a subjetividade mais íntima, obrigando a trabalhar com grande latência ao erro, ou seja, sabendo que a verdade pode em muitos casos ser completamente impossível de recuperar.

Na generalidade gostei das abordagens, tive apenas algumas reticências nas breves incursões que a autora faz no campo educativo, nomeadamente no papel cognitivo da memória na aquisição de competências, tal como o pensamento crítico, deixou-se enredar facilmente pelo discurso do digital e da memória externa do Google, algo que acaba a fazer novamente quando discute o impacto das redes sociais nas memórias. O que vale é que estas duas incursões são muito breves, não podendo ser de outra forma, já que o foco e trabalho da autora está noutro campo.

Shaw não se inibe também de desmontar uma série de mitos, desde as memórias que alguns de nós pensam reter, anteriores à linha dos 3.5 anos, podendo rondar entre os 2 e os 5, mas colocando todas as memórias abaixo de 1 ano como simplesmente impossíveis. Parece existir um fascínio e grupos de pessoas que assumem recordar o dia em que nasceram, ou o primeiro objecto que viram, e no entanto tudo isso não passa de fabricações, como demonstram as dezenas de estudos realizados no campo. Outra das áreas que Shaw demonstra é a da hipnose, reconhecida por aparentemente ser capaz de recuperar memórias perdidas, algo também sem qualquer sustentação empírica. Do mesmo modo Shaw ataca sem qualquer pudor um dos métodos da psicanálise herdado de Freud, o tratamento por vida da recuperação de memórias traumáticas e reprimidas. Segundo Shaw, o que estes métodos — hipnose e psicanálise — tendem a fazer, é simplesmente criar memórias falsas, já que seguem todo o modus operandi da produção das mesmas.

Por fim quero deixar uma nota de reconhecimento e admiração pelo esforço que Shaw fez em evitar as chamadas universidades de elite, que não passam de universidades de propaganda, o que fica bem evidenciado pelo trabalho aqui apresentado, para o qual contribuíram dezenas de universidades europeias e estatais americanas, sem as quais o trabalho no campo hoje teria muito menos valor. Não raro, estes livros de divulgação limitam-se a citar meia-dúzia de universidades, sempre as mesmas, facilmente reconhecíveis e associáveis a uma chamada elite, ou seja a Ivy League americana e duas ou três inglesas, as mesmas que são citadas em todos os filmes de Hollywood e livros bestsellers. Shaw cita algumas dessas, mas não lhes dá qualquer espaço particular, não se coíbe como é tão usual fazer-se de citar universidades estatais americanas, e apesar de britânica cita imensas universidades europeias. Deixo uma listagem das citadas que apanhei rapidamente: Amsterdam, Geneva, Western Washington, Missouri, Oslo, Temple, North Carolina, Chicago, Tel-Aviv, Minnesota, Giessen, Nevada, British Columbia, Trier, Wilfried Laurie, Laval, Durham , Queen Mary, College of London, Southern California, New York, Columbia, Iowa State, Bordeaux, ESPCI Paris, Arizona, St Lawrence University, Freiburg, Cambridge, Stanford, Lille, Virginia, Harvard, Kent State, Tübingen, Zurich, Boston, Turku, Lethbridge, Stockholm, City, New South Wales, Flinders, Glasgow, Vanderbilt, Tufts, Dalhousie, Bielefeld, Cornell, Yale, Fairfield, Victoria, Maryland, Texas Women’s, MIT, Alabama, Illinois State, Hartford, Baylor, Duke, Toledo, Brown, Rice, Bern, Texas A&M.

julho 13, 2019

O Quarto de Marte (2018)

Foi o Segundo livro de Kushner, o primeiro tinha sido “Os Lança-Chamas” (análise), do qual tinha adorado a forma mas não me tinha ligado com o conteúdo, agora aconteceu em parte o contrário, já que a forma sendo boa não me impressionou, mas sendo fluída acabou gerando uma excelente plataforma para as histórias contadas e o universo criado. O tema de fundo é a prisão perpétua, como se chega a ela e como se lida com ela, quem são as pessoas (nos EUA) sujeitas a ela. Kushner faz um bom trabalho, não se liga à defesa nem à provocação, plana antes sobre os diferentes lados da questão, dá-a ver e a sentir, mas deixa na consciência do leitor o labor crítico de formação de opinião.


O mais evidente desta abstenção de exercício da sua posição e propaganda é desde logo o modo como Kushner evita as emoções que seriam fáceis tendo como pano de fundo condenadas à vida, e mesmo à morte. Seria fácil fazer chorar o leitor, ou logo a seguir enraivecer o mesmo. Temos momentos em que Kushner quase roça a defesa, em que dá conta dos problemas que vivem e atravessam as condenadas, mas é tudo suficientemente balançado para não nos levar pelo coração. As descrições do dia-a-dia, das relações entre prisioneiras, suas conquistas e escapes, vão preenchendo o espaço-tempo de algum normalidade que nos retira dos pensamentos de fins ou injustiças do sistema.

Ainda assim, mais perto do final, torna-se praticamente inevitável questionar a razão, o objetivo, o fundamento, e as evidências que suportam tais penas. Não é apenas pela gravidade, ou pela idade em que se cometem, ou pelo efeito de estupefacientes, ou desespero social ou humano, mas é mesmo pela desproporção da pena que não deveria nunca ser vista como vingança mas antes como reabilitadora. É isso que aqui se levanta, ainda que Kushner não o discuta, apenas aflore, ainda que Kusnher nem sequer dê exemplos ou comparações com outros estados americanos, ou com a Europa. Por exemplo em Portugal a pena máxima é de 25 anos, e essa raramente é cumprida na totalidade se a pessoa demonstrar arrependimento e tiver bom comportamento. Que buscamos demonstrar à sociedade quando penalizamos alguém com uma pena, ou no caso, duas penas perpétuas seguidas? Não é isto completamente desprovido de senso? Sim, eu sei que qualquer ser humano quando agredido, ou agredido um dos seus, reage vingativamente, existe uma necessidade interior de expiar a dor, de sentir que o universo se regula por uma justiça com pesos iguais. Mas se inventámos um edifício social de Justiça foi para findar com essa vingança, para pôr cobro a um sentimento que de nada serve, e que se seguido pelo sistema penal dá como exemplo a toda a sociedade a lógica dessa vingança, em nada então se diferenciado do animalesco desse sentir. Veja-se a história da condenada a três perpétuas que Obama indultou, compare-se os seus crimes com as aberrações dos casos OJ Simpson ou o mais recente caso de Jeffrey Epstein, em que o dinheiro e acesso ao sistema fazem toda a diferença.

Neste livro Kushner está completamente focada nas penas e nas prisões, nos seus personagens, e nunca abandona o tema, teve claramente muito trabalho para conseguir chegar a algumas das descrições apresentadas, ainda assim senti-o menos elaborado do que “Os Lança-Chamas”, menos rico em detalhe, talvez menos ornamentado, mas como disse, mais instigante em termos de mensagem.

julho 08, 2019

Therese Raquin (1867)

"Therese Raquin" (1867) é um romance curto, quase uma novela, centrado num triângulo amoroso com crime, e as consequências psicológicas desse crime. O cenário é tão antigo como o humano, a novidade assenta no modo como Zola trabalha os efeitos do crime, como entra pelas mentes dos criminosos adentro que soltos de culpa oficial não conseguem livrar a sua consciência da mesma. É algo que já tinha sido feito, com grande sagacidade no ano anterior, pelas mãos de Dostoiévski com “Crime e Castigo” (1866). Zola não desilude, mas corre mais riscos, apesar de naturalista não consegue evitar uns certos traços de terror psicológico por via de algum exageramento. O livro continua a ler-se bem ainda hoje, mas talvez o mais interessante seja mesma a parte académica, o lançamento da obra e as críticas duras que recebeu, o que pretendia Zola fazer e as justificações nos prefácios seguintes, assim como as adaptações para teatro e depois cinema.


Deixo ainda uma nota, estes clássicos têm sempre algo de mais relevante que é o modo como nos dão a ver outras épocas, os costumes e comportamentos, os receios e os despreendimentos. Uma das cenas mais impressionantes deste livro acontece na descrição do funcionamento da morgue de Paris em 1860. É uma descrição absolutamente macabra. Deixo um excerto:
“A Morgue é espetáculo ao alcance de todas as bolsas, que pobres ou ricos oferecem gratuitamente a si próprios.
A porta está aberta, entra quem quer. Amadores há que fazem um desvio para não perder uma destas representações da morte. Se as lajes estão vazias, saem desapontados, murmurando entre dentes. Quando estão bem providas, quando há uma boa exposição de carne humana, os visitantes comprimem-se, dando-se emoções baratas, assustam-se, deleitam-se, aplaudem ou assobiam como no teatro e retiram-se satisfeitos, declarando que a Morgue nesse dia saiu-se bem.
Laurent conheceu depressa o público que ali acorria, público heterogéneo que se compadecia e escarnecia em comum. Entravam operários, a caminho do trabalho, com um pão e as ferramentas debaixo do braço; achavam a morte divertida. Entre eles encontravam-se os que faziam sorrir a galeria a cada frase sobre o rito de cada cadáver; chamavam carvoeiros aos que tinham morrido queimados; os enforcados, os assassinados, os afogados, os cadáveres estripados ou esmagados, excitavam-lhes a imaginação zombeteira e com voz que lhes tremia ligeiramente balbuciavam frases cómicas no silêncio arrepiante da sala.”

Storytelling e as Ciências da Mente

O livro “Storytelling and the Sciences of Mind” (2013) de David Herman, pela MIT Press, trata um dos temas que mais tem atraído o meu interesse nos últimos 15 anos, e que tem que ver com o modo como as histórias servem o nosso enquadramento da realidade. Tentar compreender como é que a organização narrativa de informação nos ajuda a compreender o mundo e os outros, como é que essa organização se relaciona com as nossas capacidades cognitivas e nos impele não apenas a refletir e a interpretar os mundos, situações e pessoas apresentadas, mas também a conceber e especular planos futuros para ação, produzindo assim transformações comportamentais a partir da relação com essas narrativas. O livro de Herman é brilhante, porque não se limita a um dos lados da questão, antes trabalha transdisciplinarmente a narratologia e as ciências cognitivas, importando e fusionando conhecimento de parte a parte. O único problema é estar escrito numa forma nada amigável para quem não estude a área, reduzindo completamente o alcance da obra.


Na última década não têm faltado trabalhos no domínio da narrativa e storytelling sobre a sua importância para o humano e para as nossas capacidades cognitivas (Gottschall, Brian Boyd, Paul Zak, etc. ), contudo como diz Herman esses trabalhos têm-se limitado a importar apenas de um lado para o outro. Ora Herman apresenta uma obra na qual apresenta um troca entre ambas as partes, alimentando mutuamente o conhecimento tanto da narrativa como do modo como apreendemos o mundo. Assim o livro divide-se em duas grandes partes, procurando responder às duas grandes questões: (1) “How do stories across media interlock with interpreters’ mental capacities and dispositions, thus giving rise to narrative experiences?”, ou seja, como é que interpretamos os mundos apresentados pelas narrativas. (2) “And how (to what extent, in what specific ways) does narrative scaffold efforts to make sense of experience itself?”, ou seja, como é que a narrativa contribuiu para a nossa compreensão da realidade. Para o efeito Herman propõe dois grandes conceitos: “Narrative Worldmaking” e “Storying the World”.

Assim para o Worldmaking, Herman propõe que as narrativas — independentemente do media — funcionam de modo referencial, providenciando estímulos cognitivos para a criação de entidades na forma de mundos onde as histórias acontecem. No “storying”, Herman propõe que as histórias configuram o modo como organizamos o fluxo do caos de estímulos da experiência diária. Deste modo, o worldmaking poderia ser visto como um instrumento de criação de sentido da realidade. Esta proposta de convergência de enquadramento teórico acaba por configurar aquilo que Herman define como o “mind-narrative nexus”.

Em jeito de introdução a toda esta teorização Herman abre o livro como uma discussão extremamente pertinente e com a qual me venho debatendo há algum tempo, a intenção autoral. Assim, só faz sentido configurarmos as histórias com base na criação de sentido se assumirmos que quem conta histórias o faz com uma intenção, ou seja, que a narrativa é em essência um ato de comunicação, algo que Walter Fisher já tinha proposto em 1985, mas que choca com alguns defensores da arte como algo não comunicacional. Do meu lado, tendo a aceitar mais facilmente que a arte possa não ser dotada de intenção comunicativa quando ela é de ordem simbólica — música ou abstracta — contudo quando falamos de estruturas narrativas, falar de ausência de intenção expressiva é no mínimo paradoxal. Para Herman isto é tanto mais central porque o modo como compreendemos as narrativas é a partir das razões que movem os personagens/pessoas sendo elas que conduzem as razões das histórias e sendo com elas que nós nos envolvemos. Porque os atos das pessoas nas histórias estão fundamentadas em "crenças", "intenções", "objetivos", "motivações", "emoções", "estados mentais" ou "competências" que para a interpretação do leitor têm de inevitavelmente ser atribuídas aos autores/criadores das narrativas.

Isto vai ao encontro da discussão que se segue que tem que ver com a análise não-redutível das situações e das pessoas nas histórias. Herman considera que apesar de podermos aprofundar neurocientificamente os constituintes de "pessoa", isso não nos ajuda a compreender o que acontece no processo de experiência dos recetores. Porque considera que os processos que decorrem acontecem ao nível da intersubjectividade, que pode ser definida em dois níveis, segundo Trevarthen  — primário, “the core of every human consciousness” que “appears to be an immediate, unrational, unverbalized, conceptless, totally atheoretical potential for rapport of the self with another’s mind”; e secundário “sympathetic intention toward shared environmental affordances and objects of purposeful action” — e que é responsável pela nossa noção de individualidade no seio da comunidade, e assim pela nossa capacidade de construir uma noção do nosso posicionamento nessa realidade. Deste modo as histórias servem não apenas o reforço de modelos sociais, mas servem fundamentalmente como experimento e teste desses modelos. Se as pessoas se baseiam nos seus conceitos do mundo para compreender o mundo apresentado pela narrativa, não deixam de usar essas mesmas narrativas como instrumentos de suporte ao pensamento crítico sobre esses conceitos. Ou seja, existe uma interação contínua entre aquilo que a narrativa apresenta e aquilo que é o mundo pré-exposição à história do recetor que conduz a uma discussão crítica interna.

Herman defende que o cerne do engajamento com as histórias acontece a partir do modo como podemos ou não mapear as pistas dadas em dimensões de configuração mental assentes no em: Quem, O Quê, Onde, Como e Porquê. E por sua vez como é que estas questões servem na passagem das categorias narrativas à definição dos personagens, para o que Herman defende que o leitor prossegue um conjunto de questões tais como:
(1) “For which elements of the WHAT dimension of the narrative world are questions about WHO, HOW, and WHY pertinent? In other words, in what domains of the storyworld do actions supervene on behaviors, such that it becomes relevant to ask, not just what cause produced what effect, but also who did (or tried to do) what, through what means, and for what reason?” 

(2) “How does the text, in conjunction with broader understandings of persons, enable interpreters to build a profile for the characters who inhabit these domains of action? Put otherwise, how do textual features along with models of personhood (deriving from various sources) cue interpreters to assign to characters personlike constellations of traits?” 

(3) “Reciprocally, how does the process of developing these profiles for individuals-in-a-world bear on broader understandings of persons?” 
Na segunda parte, dedicada ao "Storying the world", Herman dedica-se a desconstruir o modo como as narrativas podem servir de instrumentos ou ferramentas mentais para trabalhar o mundo, para o que apresenta cinco grandes modos de criação de sentido, ou modos de scaffolding (de suporte) ao nosso pensamento:

1 — “’chunking’ experience into workable segments”
Aqui Herman começa por exemplificar com a divisão em 3 atos de Aristóteles, que tem apenas como objetivo podermos separar em partes a experiência absorvida. Ou seja, particionar e atribuir estrutura à informação, organizando em “pedaços” facilmente indexáveis e chamáveis à memória. Neste processo de chunking enquadram-se vários processos, um também muito interessante é a noção de espaço versus lugar:
“stories can be used to turn spaces into places — to convert mere geographic locales into inhabited worlds. My analysis suggests that there is in fact a range of ways in which narrative can serve as a resource for transforming abstract spaces into lived-in, experienced, and thus meaningful places (..) As Johnstone (1990) puts it, “coming to know a place means coming to know its stories; new cities and neighborhoods do not resonate the way familiar ones do until they have stories to tell” (p. 109; cf. p. 119 and also Johnstone 2004; Easterlin 2012, pp. 111–151; Finnegan 1998; Relph 1985; Tuan 1977). Accordingly, “in human experience, places are narrative constructions, and stories are suggested by places” (Johnstone 1990, p. 134). Hence narrative worldmaking can also be described as a resource for place making—for saturating with lived experience what would otherwise remain an abstract spatial network of objects, sites, domains, and regions."
2 — “imputing causal relations between events” 
É esta componente que nos permite desenvolver pensamento crítico sobre o que acontece nas relações entre os agentes, analisar, contrastar e confrontar as razões, a justeza, a verdade e falsidade. Herman defende que lemos os eventos como ações que constroem o mundo-história dirigido a um objetivo, para uma meta que condiciona as ações e reações. No fundo esta abordagem pela causalidade serve também o chunking, já que permite relacionar eventos e ocorrências até aqui isoladas, em episódios ou cenas, que depois podemos utilizar mentalmente. Herman diz mesmo que as histórias funcionam como heurísticas de julgamento, que vão contribuindo para alimentar com regras básicas a nossa interpretação da realidade.

3 — “addressing problems with the 'typification' of phenomena” 
Neste ponto entramos num processo de chunking, ou organização, em parte, do modo como resolvemos problemas. No fundo, o modo como conseguimos partir do particular de cada história para a generalização da nossa relação com a realidade diária. Herman fala então da tipificação, ou categorização — em objetos e classes — que nos permite gerar expectativas para determinadas resultados de solução para situações nunca antes encontradas, através daquilo que já experienciámos. Assim “If assimilated to preexistent types, any encountered object, situation, or event can be placed within a “horizon of familiarity and pre-acquaintanceship which is, as such, just taken for granted until further notice as the unquestioned, though at any time questionable stock of knowledge at hand”. As histórias recebidas sobre o mundo fornecem contextos de tipicidade, garantindo a interpretação de ocorrências inesperadas, permitindo vários modos de resolução de problemas. No fundo, “a general account of narrative as a mind-extending, mind-enabling resource” (p. 251).

4 — “sequencing actions” 
Aqui a ideia é de que as histórias nos fornecem também uma espécie de protocolos de atuação, de racionalização da sequência de ações a tomar. Este processo é comparado por Herman à conversação, na qual nos organizamos para colaborar, aqui utilizamos as pistas para nos organizer para agir na relação com o problema proposto pela realidade.

5 — “distributing intelligence across time and space”
Este ponto surpeendeu-me porque me habituei a pensar nele a partir da rede de internet, e apesar dele ter nascido com o contar de histórias, e apesar de sabermos que esse é um dos grandes fundamentos das histórias, a passagem de conhecimento entre gerações, nunca tinha parado para compreender as histórias como um fenómeno de inteligência distribuída, que o é também.


Deixo ainda uma palavra para a complexidade do texto. Herman trabalha de forma soberba a abstração de conceitos, o seu problema acaba sendo a enorme dificuldade que tem em particularizar as mesmas. O livro denota um esforço tremendo no sentido de tornar o texto mais acessível, desde logo todos os capítulos apresentam introduções e conclusões de sumário, que repetem os argumentos, assim como são utilizadas várias histórias de vários meios — literatura, cinema, banda desenhada — para desmontar os conceitos, mas nem assim se torna mais fácil compreender o que é aqui discutido. É interessante como Herman compreende que a força das histórias está na particularização e individuação dos eventos e das ações, no uso das pessoas/personagens como veículos principais da compreensão, mas depois não consegue aplicar essas ideias na sua abordagem comunicativa. Não é uma mera questão de uso de jargão, embora diga-se que não houve nesse domínio qualquer controlo de danos, e isso também não ajuda, mas o maior problema são mesmo as enormes tiradas de conceitos abstractos, definidos por jargão, que se interligam e embrenham em novos conceitos, que obrigam o leitor a montar todo um enquadramento mental altamente exigente, para o que quem não possui experiência e conhecimentos anteriores da discussão se torna praticamente inacessível.

julho 06, 2019

O caos do social e a força do humano

Vi o filme, "Capernaum" (2018), sabendo pouco mais além de ter ganho prémios e um trailer visto na diagonal. Enquanto o via senti uma abertura de território novo — o caos do Líbano e os efeitos da crise dos refugiados do país vizinho, a Síria, de onde chegou na última década mais de um milhão de refugiados a um país feito de apenas seis milhões —, um mundo de que vamos falando, mas conhecemos mal, com uma perspectiva a partir de dentro, e uma forma de filmar de guerrilha, que garante simultaneamente enorme realismo e intensidade, a fazer lembrar o  melhor de Dardenne, com um pouco de Padilha e Zvyagintsev. “Capernaum” significa “caos” em árabe, e é isso que o filme nos dá a ver, o contínuo caos social, o caos que nós humanos produzimos na relação com os outros e com a realidade, um caos que sabemos ser parte de nós mas que nos habituámos a domar para criar a cultura sobre a natureza.





Falando o filme sobre tantas e imensas vertentes desse caos e dessa relação homem-natureza, foi com algum espanto que no final ao abrir o Letterbox me deparei com as críticas mais populares ao filme, não apenas com notas baixíssimas mas todas focando-se num único ponto desse caos: o controlo da natalidade. A história apresenta uma criança de rua que decide levar os pais a tribunal por o terem feito nascer, dizendo no final que aquilo que quer é que os pais não tenham mais filhos. Para a ala esquerda da crítica, caiu o “carmo e a trindade”, dizem-nos que isto é um filme eugénico, a realizadora logo atacada de pertencer à direita libanesa e andar a fazer dinheiro à custa dos pobres, um filme que não entende que o problema são os políticos e os senhores da guerra, e depois vem apontar o dedo aos pobres pais e ao sexo desenfreado. Estas críticas são imensamente populares, ainda para mais porque em contra-corrente à chamada burguesia de Cannes que ousou dar um prémio a tal filme, mostrando que quem vai a tais festivais é tudo gente que vive numa bolha e não percebe nada deste mundo.

Talvez todos estes pseudo-defensores dos direitos de todos terem os filhos que quiserem, devessem ter atentado na sigla que surge colada ao casaco da criança que percorre todo o filme e diz SPSS. Talvez pudessem ter parado para pensar que SPSS é um software usado pelas Ciências Sociais para compreender os problemas das sociedades, e ajudar a encontrar formas de melhorar as vidas dessas pessoas. Talvez se estes críticos compreendessem um pouco melhor o mundo em que vivem, soubessem que nos países ricos em que vivem, existe todo um sistema de saúde nacional montado, que faz exatamente isto, que tem todo um sistema de Planeamento Familiar montado que passa pela oferta de consultas, informação e acesso gratuito aos mais diversos meios anticoncepcionais, tudo para evitar o descontrolo e insustentabilidade dessa natalidade.

Mas o filme é muito mais do que essa banal defesa do controlo de natalidade, o filme mostra a que ponto pode chegar um lugar, Beirute, que já foi a Paris do médio-oriente nos anos 1960, e que por causa de uma guerra-civil motivada pela força das convicções religiosas, se deixou afundar e autodestruir. A realizadora, Nadine Labaki, já tinha atacado o problema das religiões no filme “Where Do We Go Now?” (2011) usando como fundo a Lisístrata de Aristófanes, dando conta de uma realizadora que não faz filmes apenas porque é giro, mas porque sente a necessidade de pôr o dedo na ferida. E isso mesmo voltou a fazer neste “Capernaum”, pondo a nu os problemas da sociedade libanesa mostrando-lhes o que vai mal no seu país, apontando o dedo sem pudor, e dizendo bem alto que é preciso fazer alguma coisa. Sim, porque existe uma sociedade libanesa que vê cinema, o filme não foi feito para os senhores europeus ou americanos poderem apreciar a arte que se faz nos países “pobres”.

Nadine Labaki e Zain Al Rafeea em rodagem. Numa entrevista Labaki refere que todo foi filmado sem quais acessos especiais nem cortes de trânsito, incluindo a atriz da Etiópia chegou mesmo a ser presa durante a rodagem por não ter papéis.

Um filme destes facilmente cairia na exploração da pobreza, do sentimento fácil, apelando meramente à pena e compaixão, mas nem aí têm razão os seus detractores, apenas no final Labaki permite uma tal sequência. Todo o filme está centrado num personagem que é uma criança de 12 anos, Zain, muito franzina, mas imensamente resiliente, que nunca se vai abaixo por mais fundo o lugar em que se encontre, luta sempre, até ao final. Não há aqui qualquer exploração sentimentalista, antes existe sim o enaltecimento das qualidades humanas, daquilo que nos motiva a lutar todos os dias, a justiça, e daquilo que mantém os humanos em pé, a solidariedade e a empatia. Labaki utiliza os personagens como veículos da força humana capaz da sobrevivência nos mais inóspitos lugares, lutando contra todos os problemas recorrendo à inteligência armados pela justeza.

Temos de aceitar que a construção de Zain é magistral, não apenas pela performance ímpar da criança (ela própria um refugiado sírio na Líbia, hoje a viver na Noruega com os seus pais) mas pela composição criada para a sua apresentação, que põe em evidência desde o início o modo como a inteligência e o espirito crítico faz a diferença num mundo em que todos se limitam a seguir os exemplos à sua volta. Os seus pais quando questionados pelo tribunal é apenas isso que dizem, que foram assim tratados pelos seus pais, e por isso como eles continuam a fazer o mesmo. Mas Zain não se limita a fazer o mesmo que os seus pais ou os amigos do bairro, porque Zain não se limita a estar parado em casa, todos os dias tem de partir à luta, empurrado pelos pais e pela necessidade de alimentar todos aqueles irmãos. E é dessa luta diária que Zain extrai que lutando poderá conseguir mais, que fazendo outras opções poderá chegar a algo diferente, e não limitar-se a aceitar o mínimo que lhe querem oferecer. Existem duas cenas absolutamente excecionais e instigantes, uma inicial em que Zain dá a sua camisola à sua irmã para que ela consigo controlar o fluxo menstrual, e possa esconder à sua mãe que já entrou na puberdade, e uma outra em que Zain surge a aperfeiçoar o sotaque sírio para poder dirigir-se a um centro de apoio a refugiados sírios e assim conseguir comida para ele e para o bebé de 1 ano de quem toma conta.

Podemos dizer que o filme arrisca excessivamente, que quase se poderia ler como um dedo apontado à parte da sociedade em questão, atirando-lhes todas as culpas pelo seu insucesso, que é uma clara visão de direita, de que os pobres são pobres porque o querem ser. Mas querer ver tal mensagem no filme de Labaki, só pode partir de quem se ocupa de deturpação das mensagens e convicções dos outros. Se realmente o problema fosse esse, e fosse isso que corresse nas veias de Labaki, porque raio iria ela mostrar que pode brotar tanta inteligência de uma criança vinda de uma família tão indigente? Porque raio colocar em cena uma refugiada da Etiópia que tem de fugir para a clandestinidade porque os patrões ricos para quem trabalha não admitem empregadas grávidas? Porque raio colocar tanta enfâse nas repugnantes leis que permitem ter homens a casar com crianças de 11 anos?

Ainda bem que a crítica internacional soube compreender esta obra e agraciar a sua receção, só tenho pena que os júris do BAFTA e do Oscar não tenham também compreendido, tendo deixado-se seduxir por um muito inferior "Roma" (2018).