junho 04, 2023

Fukushima dramatizada

"The Days" (2023) é a mais recente série da Netflix. Conta a história do acidente da central nuclear de Fukushima, Japão, provocado por um terramoto seguido de tsunami, ocorridos em 2011. Em termos técnicos não está, de todo, ao nível de "Chernobyl" (2019), no entanto enquanto drama documental faz muitíssimo bem o seu trabalho, usando uma estética marcadamente japonesa, que a partir do 3º episódio se torna impossível parar de ver.

junho 03, 2023

Distorção da realidade

Dei por mim quase a chorar e a ter de me afastar da televisão quando esta semana estava sentado ao lado do meu pai que via um documentário no National Geographic sobre vida selvagem. Primeiro, foi um crocodilo que abocanhou o traseiro de uma cria de bufalo e ficou ali a prende-la durante uns agoniantes 10 minutos, enquanto a mãe da cria se limitava a lamber-lhe o focinho, até que o crocodilo a puxou para baixo e a afogou. Depois, veio um macho zebra que começou a atacar violentamente uma cria zebra porque esta não lhe pertencia, segundo o narrador para evitar que essa cria se revoltasse contra ele mais tarde, tendo a mãe da cria tudo feito para evitar que o macho se aproximasse, mas acabando por não conseguir evitar o pior.

Refletindo sobre isto, dei por mim a questionar o mundo seguro em que vivemos. Em que exigimos o direito de afastar tudo aquilo de que não gostamos. E relembrei a entrevista que lia esta semana, na World Literature, de Azar Nafisi, uma escritora iraniana a viver nos EUA, a propósito do seu novo livro "Read Dangerously: The Subversive Power of Literature in Troubled Times", em que diz:

"Well, this book is partly a response to the trend I had noticed, especially in the US, where we use books as comfort food. We read them not in order to be disturbed or find something new, but we read them in order for them to confirm what we already know, at times to confirm our prejudices: “Why don’t they speak what I want them to?” So, there’s no challenge—we’re uncomfortable with challenge. We want to eliminate rather than create an exchange. And so, for me, reading dangerously means that we take that risk to read in order to be disturbed. As James Baldwin says, artists are here to disturb the peace. Writers are not here to warm the cockles of your heart.

For me, the best example of a good reader or a reader who takes risks is Alice in Wonderland. Out of millions of little girls, there’s this one little girl who is bored with the routine of her life, and she’s after something different (...) She risks going into the world of the white rabbit. And when she jumps into that hole, she doesn’t say, Am I going to survive this? What’s going to happen to me next? And her reward, of course, is the world—everything (...)

The last thing that I want to say about Alice, which I think is really important, is that like all good stories, it challenges and questions, not just the world outside but the reader as well. Alice has a lot of questions from these creatures, but every time she asks them about who they are or why are they like this, they ask the question of her, Who are you? Why do you look like this? You look strange. She tells the caterpillar, Who are you? And the caterpillar throws the question back to her, saying, Who are you? So, that is my concept of risking when we read. Writers take a risk when they write; the reader should also take a risk when they read."

Paradoxalmente, tenho dúvidas que estas imagens da National Geographic me tivessem afetado desta forma quando eu tinha 10 anos. Nessa altura vivia numa pequena aldeia em que era comum as pessoas juntarem-se para matar porcos, sem qualquer anestesia, e as crianças assistiam a tudo como se de algo natural se tratasse. Podemos dizer que era a sobrevivência, mas aqui também se pegavam em ninhadas de cães ou gatos, imediatamente após nascerem, metiam-se num saco e enterravam-se num buraco num qualquer pinhal. Isto são coisas que não esqueci, mas existem outras tão ou mais tenebrosas. As pessoas que o faziam nessa altura quando hoje questionadas não sentem orgulho de o ter feito, sentem vergonha e preferem não falar. 

Mas não deixa de ser algo que temos de nos questionar enquanto espécie. Olhando para o meu caso de não aguentar o que vejo na TV ou das pessoas que sentem remorsos pelo que fizeram no passado contra os animais, parece que nos tornámos imensamente mais empáticos. Que passámos a olhar para os animais como parte da espécie humana. Contudo, isso acontece apenas à superfície. Repare-se que aquilo que me afasta da televisão é o facto de antropomorfizar a relação mãe-cria. E aquilo que cria remorso é exatamente esse sentimento de atribuição de emoção aos animais a um nível humano. Contudo, quando olhamos à dura realidade da vida selvagem, vemos que essa questão de empatia inter-espécies, e mesmo intra-espécies, não existe de forma natural ou tão abundantemente como queremos acreditar.

Por outro lado, nós, que nos julgamos mais sensíveis do que as gerações anteriores, somo-lo apenas no que toca ao visível. A nossa espécie extinguiu, de forma direta, milhares de espécies neste planeta e nem por isso se comove com isso no dia-a-dia. Estamos a destruir o nosso próprio planeta com a maquinaria andante que usamos, mas não vemos a grande maioria das pessoas a deixar de viajar de avião por causa disso.

O que isto tudo me diz é que a nossa espécie tende a velar pela criação de um imaginário perfeito para poder viver na crença de que as suas ações correspondem aos seus valores. Se o incómodo for atirado para debaixo do tapete não sabemos que lá está e podemos continuar a levar a nossa vida.

Por outro lado, se atentarmos nos 2 axiomas da "sociologia cósmica" proposta por Liu Cixin — "Primeiro: A sobrevivência é a principal necessidade da civilização. Segundo: A civilização cresce e expande-se continuamente, mas a matéria total no universo permanece constante" (ver a Hipótese da Floresta Negra) — percebemos que podemos desejar controlar a realidade natural a partir de um conjunto de valores, imaginariamente ou logicamente perfeitos, mas a homeostase que mantém a Realidade efetiva é muito ténue e qualquer pequeno desequílibrio a coloca em causa. Basta refletir sobre a anunciada 6ª extinção em massa que estamos a produzir.

Posto isto, não tenho nenhuma resposta cabal para nada, apenas pretendia com este texto constatar que o facto de me ter tornado mais sensível não corresponde exatamente a algo melhor. Mas mais do que isso, essa super-sensibilidade pode estar a distorcer a nossa capacidade para compreender o espectro de realidade que habitamos. 

maio 27, 2023

Alexander von Humboldt [1769 - 1859]

Começo por dizer que se conhecia o nome Humboldt era apenas porque ao longo da minha vida o tenho encontrado um pouco por todo o lado — de cidades a rios, serras, baías, cascatas, uma região na Lua, mais de 300 plantas e mais de 100 animais carregam ainda hoje o seu nome. Mas não fazia grande ideia sobre quem era ou o porquê dessa sua quase omnipresença, em sintonia com a grande maioria da sociedade no século XXI, apesar de em 14 de setembro 1869, na marca dos 100 anos do nascimento de Alexander von Humboldt, se terem realizado festejos por toda a Europa, Américas, África e Austrália. Houve discursos, paradas e procissões em seu nome de Melbourne a Buenos Aires, de Moscovo a Alexandria, com milhares de pessoas nas ruas de São Francisco a Nova Iorque a acenar bandeiras e cartazes com a cara de Humboldt. 

maio 20, 2023

Esquizofrenia em defesa da IA

A defesa da IA geralmente começa por identificar tecnologias anteriores que surgiram e que foram também atacadas, mas que demonstraram ser depois bem assimiladas pela sociedade. Fala-se da electricidade ou da calculadora, assim como se fala da automação de fábricas ou da internet. Apontam-se os ganhos, nada se diz sobre os impactos negativos, menos ainda sobre o enorme trabalho que foi necessário para criar regulação que sustentasse essa integração societal. Bastaria dar o exemplo do RGPD para percebermos que a internet não nos trouxe só maravilhas, e que sem regulação estaríamos bem mal. Esta mesma defesa, diz depois que a IA não está aqui para substituir o humano, é apenas um complemento. E vai mais longe, dizendo que quem não quer ficar para trás tem de entrar no comboio, usando uma expressão que já se tornou mantra no domínio: uma IA não vai substituir uma pessoa, mas uma pessoa com IA vai substituir uma sem IA. Analisemos ambos os argumentos mais em detalhe, nomeadamente o impacto das tecnologias mais recentes nas funções cognitivas.

maio 14, 2023

Sobre a Treta

"On Bullshit" (Sobre a Treta) é um pequeno livro de Harry G. Frankfurt de 2005 baseado num ensaio de 1986. Em 1986 o presidente dos EUA era Ronald Reagan, em 2005 era George W. Bush, eu ouvi falar do livro pela primeira vez em 2018, quando Trump era presidente dos EUA. Este enquadramento serve para perceber que o livro se foca no estudo da comunicação pública, nomeadamente de figuras com autoridade, apesar de não serem mencionadas no livro.

maio 13, 2023

Alucinando com Michel Foucault

"Hallucinating Foucault" (1996) é um romance de homenagem à obra de Michel Foucault. Patricia Duncker inventa um escritor de romances francês chamado Paul Michel e defini-o como espelho do verdadeiro Foucault. Se Foucault queria escrever romances e não escreveu, Paul Michel escreve-os e dedica-os a Foucault. Se Foucault teorizou sobre os processos de loucura e encarceramento, Paul Michel passa ele mesmo por esses processos. Se Foucault começou a sua carreira em Clermont Ferrand, é aí que Paul Michel termina a sua, internado depois de ter enlouquecido com a morte de Foucault. Se Foucault teorizou sobre a função do autor, Paul Michel centra-se na relevância do leitor. O livro leva-nos pela mão de um jovem doutorando que estuda a obra de Paul Michel e tenta compreender a pessoa por detrás da obra, apesar de defender que não lhe interessa a pessoa, o autor, apenas a obra. 

maio 12, 2023

As Visionárias: Rand, Weil, Beauvoir e Arendt

Wolfram Eilenberger, filósofo alemão, surgiu recentemente na cena internacional como divulgador de filosofia com o livro "O Tempo dos Mágicos" (2018), dedicado a Walter Benjamin, Martin Heidegger, Ernst Cassirer e Ludwig Wittgenstein, focado no friso temporal 1919-1929. Para dar continuidade à fórmula de sucesso, avançou para o intervalo 1933-1943, mas desta vez escolheu quatro mulheres — Ayn Rand, Simone Weil,  Simone de Beauvoir e Hannah Arendt —, intitulando o livro como "O Fogo da Liberdade" (2020). Eilenberger faz lembrar Sarah Bakewell, pelo modo como cruza bem história, filosofia e arte, contudo, falta-lhe alguma capacidade de síntese e visão holística, ficando-se por um tom mais jornalístico, de descrição cronológica de eventos. 

maio 10, 2023

O descarrilar de um romance filosófico

Vi o filme quando saiu, mas já não recordava nada além do Jeremy Irons passeando pelas ruas de Lisboa. Entretanto encontrei o livro numa lista de livros relacionados com romances filosóficos, e relendo a premissa fui a correr adquiri-lo. As primeiras 100 páginas foram ouro, com uma viagem por entre poesia, melancolia e existencialismo, do centro da Europa para a costa oeste portuguesa. Mas a partir do meio iniciou-se um declínio, atingindo o total estrambelhamento perto do final. Não se aproveita nada no fim da leitura. São demasiados erros narrativos a que se juntam ainda problemas morais que tornam os personagens insustentáveis. Ainda fui rever o filme, e nota-se que houve um esforço dos guionistas para resolver alguns problemas, mas não sendo o meio adequado ao tipo de premissa, fica também bastante aquém da experiência esperada.

maio 07, 2023

Educação: uma fraude promovida pelo Expresso

O Expresso promoveu conversas sobre o futuro do ensino universitário, tendo convidado para as conversas o diretor da Escola 42 e o presidente da Egas Moniz School of Health & Science, duas escolas privadas que tendo na sua missão objetivos dignos, não deixam de ser instituições com objetivos económicos muito claros, que para se diferenciarem oferecem um discurso, fundamentalmente, baseado em modelos de Ensino Profissional para o Ensino Superior. Pelo meio disto, o Expresso, no seu site e num post no Facebook, patrocinado para obter maior alcance, destaca numa frase, sem aspas, ou seja conclusão sua, que "5% é a taxa de retenção de conhecimento numa aula teórica". Esta frase é uma mentira construída a partir de um número que é uma fraude científica.