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agosto 13, 2023

A Era das Intuições

Eric Kandel ganhou o Nobel de Medicina em 2000 pelo seu trabalho na área da fisiologia da memória. Depois do prémio, resolveu escrever vários livros de divulgação, sendo este “The Age of Insight” (2012) um dos mais citados nomeadamente na área dos estudos da consciência (ex. Anil Seth), pelo modo como relaciona os processos de consciência com os processos criativos. Dito isto, o livro é mais e menos, porque tenta fazer um dois em um, ao escrever toda uma primeira parte de enaltecimento à ciência criada na cidade de Viena, no início do século vinte, daí o subtítulo — “The Quest to Understand the Unconscious in Art, Mind, and Brain, from Vienna 1900 to the Present”; e uma segunda parte, dedicada à discussão da teorização científicia que suporta a existência da arte. A primeira parte é uma espécie de resposta, agradecimento, à oferta de cidadania da cidade após o Nobel, que tinha sido uma resposta de Viena ao facto de Kandel afirmar que o seu Nobel não era austríaco, mas americano-judeu


julho 22, 2023

Biografia de Søren Kierkegaard

Quis ler “Philosopher of the Heart: The Restless Life of Søren Kierkegaard” (2019) porque tentei várivas vezes ler os livros de Kierkegaard, mas sem sucesso. A escrita de Kierkegaard é demasiado enrolada, rebuscada, escamada. Os temas demasiado fantasistas repletos de dor e sofrimento existencial entremeados por discussões religiosas. 


Contudo Kierkegaard é uma das referências pioneiras do existencialismo, mais particularmente da melancolia, o que me leva encontrar constantes referências ao seu trabalho. O livro de Clare Carlisle desenvolve uma biografia seguindo um registo próximo da escrita de Kierkegaard, que será excelente para quem leu avidamente o autor, mas para outros, como eu, acaba por não servir de ponte para o trabalho, mantendo tudo igualmente à distância. Interrogava-me no final se o problema estava na escrita e religiosidade do autor, ou se num desfasamento identitário promovido pela idade em mim, isto porque senti o mesmo amargo que senti no ano passado com “Nos Cumes do Desespero” (1933) de Emil Cioran, uma desconexão total. Palavras belas de enaltecimento total do interior para questionar tudo e todos teriam sido a minha delícia com 20 anos, hoje não me dizem nada. Tivesse Carlisle realizado um trabalho documental próprio, como fez Sarah Bakewell com o existencialismo de Heidegger e Sartre e talvez tivesse adorado, mesmo que me tivesse ajudado a desistir de uma vez desses autores.

junho 18, 2023

Sendo Eu, uma ciência da Consciência

Anil Seth é professor de neurociências computacionais, com uma formação de base em ciências naturais e um doutoramento em ciências da computação. O seu trabalho no domínio das ciências da consciência tornou-se uma referência nos últimos anos, sendo não só altamente citado pela academia, como seguido pelos média tradicionais. Para esse reconhecimento terá contribuído a TED que realizou em 2017, “Your brain hallucinates your conscious reality”, que conta com 14 milhões de visualizações, e pode ser vista como uma síntese de tudo aquilo que nos apresenta neste livro “Being You: A New Science of Consciousness” (2021).

junho 03, 2023

Distorção da realidade

Dei por mim quase a chorar e a ter de me afastar da televisão quando esta semana estava sentado ao lado do meu pai que via um documentário no National Geographic sobre vida selvagem. Primeiro, foi um crocodilo que abocanhou o traseiro de uma cria de bufalo e ficou ali a prende-la durante uns agoniantes 10 minutos, enquanto a mãe da cria se limitava a lamber-lhe o focinho, até que o crocodilo a puxou para baixo e a afogou. Depois, veio um macho zebra que começou a atacar violentamente uma cria zebra porque esta não lhe pertencia, segundo o narrador para evitar que essa cria se revoltasse contra ele mais tarde, tendo a mãe da cria tudo feito para evitar que o macho se aproximasse, mas acabando por não conseguir evitar o pior.

maio 13, 2023

Alucinando com Michel Foucault

"Hallucinating Foucault" (1996) é um romance de homenagem à obra de Michel Foucault. Patricia Duncker inventa um escritor de romances francês chamado Paul Michel e defini-o como espelho do verdadeiro Foucault. Se Foucault queria escrever romances e não escreveu, Paul Michel escreve-os e dedica-os a Foucault. Se Foucault teorizou sobre os processos de loucura e encarceramento, Paul Michel passa ele mesmo por esses processos. Se Foucault começou a sua carreira em Clermont Ferrand, é aí que Paul Michel termina a sua, internado depois de ter enlouquecido com a morte de Foucault. Se Foucault teorizou sobre a função do autor, Paul Michel centra-se na relevância do leitor. O livro leva-nos pela mão de um jovem doutorando que estuda a obra de Paul Michel e tenta compreender a pessoa por detrás da obra, apesar de defender que não lhe interessa a pessoa, o autor, apenas a obra. 

maio 12, 2023

As Visionárias: Rand, Weil, Beauvoir e Arendt

Wolfram Eilenberger, filósofo alemão, surgiu recentemente na cena internacional como divulgador de filosofia com o livro "O Tempo dos Mágicos" (2018), dedicado a Walter Benjamin, Martin Heidegger, Ernst Cassirer e Ludwig Wittgenstein, focado no friso temporal 1919-1929. Para dar continuidade à fórmula de sucesso, avançou para o intervalo 1933-1943, mas desta vez escolheu quatro mulheres — Ayn Rand, Simone Weil,  Simone de Beauvoir e Hannah Arendt —, intitulando o livro como "O Fogo da Liberdade" (2020). Eilenberger faz lembrar Sarah Bakewell, pelo modo como cruza bem história, filosofia e arte, contudo, falta-lhe alguma capacidade de síntese e visão holística, ficando-se por um tom mais jornalístico, de descrição cronológica de eventos. 

maio 10, 2023

O descarrilar de um romance filosófico

Vi o filme quando saiu, mas já não recordava nada além do Jeremy Irons passeando pelas ruas de Lisboa. Entretanto encontrei o livro numa lista de livros relacionados com romances filosóficos, e relendo a premissa fui a correr adquiri-lo. As primeiras 100 páginas foram ouro, com uma viagem por entre poesia, melancolia e existencialismo, do centro da Europa para a costa oeste portuguesa. Mas a partir do meio iniciou-se um declínio, atingindo o total estrambelhamento perto do final. Não se aproveita nada no fim da leitura. São demasiados erros narrativos a que se juntam ainda problemas morais que tornam os personagens insustentáveis. Ainda fui rever o filme, e nota-se que houve um esforço dos guionistas para resolver alguns problemas, mas não sendo o meio adequado ao tipo de premissa, fica também bastante aquém da experiência esperada.

abril 25, 2023

Humanamente Possível (2023)

Sarah Bakewell é reconhecida por dois belíssimos livros, um sobre Montaigne (2010) e outro sobre a corrente do Existencialismo (2016), neste seu último livro — "Humanly Possible: Seven Hundred Years of Humanist Freethinking, Inquiry, and Hope" (2023) — foi à procura da definição de Humanismo. Partindo do estilo que a caracteriza — a fusão fluída de biografia, arte, história e filosofia — atravessa 700 anos de ideias para dar conta das origens, evolução e relevância do Humanismo, um termo apenas cunhado no século XIX, e para o qual ainda hoje temos dificuldade em encontrar uma definição que sirva a todos. Para o efeito, convoca as vidas e ideias de Petrarca, Boccaccio, Da Vinci, Erasmus, Montaigne, Voltaire, Spinoza, David Hume, Thomas Paine, Frederick Douglass, Robert G. Ingersoll, John Stuart Mill, Harriet Taylor, Bertrand Russell, Zora Neale Hurston, Thomas Mann e Vasily Grossman.

abril 20, 2023

Valores humanistas

Em 1952, no primeiro Congresso Humanista Mundial, os fundadores da Humanists International acordaram numa declaração sobre os princípios fundamentais do Humanismo moderno, a que chamarm "Declaração de Amesterdão". Essa declaração foi actualizada em 2002, na comemoração dos 50 anos, novamente em 2022, para comemorar os 70 anos, para reflectir as realidades modernas da época. A seguir apresenta-se a declaração completa. Toda a informação pode ser encontrada em Humanists International.

Desenho de Leonardo da Vinci baseado nos escritos de Vitruvius que definiu as dimensões proporcionais do ser humano por meio da cricunferência e quadrado por forma a demonstrar a centralidade do ser humano na natureza.


janeiro 07, 2023

Como Não Fazer Nada

Jenny Odell é uma artista e professora de design digital na Universidade de Stanford, e o seu livro "How to Do Nothing: Resisting the Attention Economy" de 2019 tornou-se um best-seller nos EUA, ou como se diz na gíria da internet, tornou-se viral. A razão prende-se essencialmente com o argumento que discute: como lidar com um mundo em alta-rodagem em que somos continuamente monitorizados e se espera que atinjamos mais e mais resultados. A discussão realiza-se num plano próximo, em que todos aqueles que trabalham no mundo dos serviços e usam redes sociais no seu dia-a-dia facilmente se reconhecerão, mas enriquece essa discussão com teorização da psicologia e fenomenologia, assim como com a sua própria experiência. Odell nasceu em Cupertino na California, a pequena cidade que alberga a sede "espacial" da Apple, considerada um dos corações de Silicon Valley, tendo crescido no meio da tecnologia procurou conciliar a mesma com os seus estudos em artes.

julho 03, 2022

A vida de Montaigne, segundo Bakewell

Adoro Montaigne, mas soube-me a pouco o livro de Sarah Bakewell, "How to Live, or a life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer" (2010) de quem tinha adorado "At the Existentialist Cafe: Freedom, Being, and Apricot Cocktails" (2016), talvez porque sabia menos sobre Sartre, Beauvoir e Heidegger. Já me tinha acontecido com o livro de Stefan Zweig, "Montaigne" (1942), sobre o qual disse "não se pode chamar a um texto que aglutina um conjunto solto de ideias sobre alguém uma biografia". E agora com Bakewell, voltei a sentir um pouco disto mesmo. Contudo, refletindo, talvez o problema não esteja nos biógrafos, nem tão pouco no biografado, mas na obra principal deste. O brilho dos "Ensaios" (1580) está no modo como nos dá acesso ao modo de ver do próprio Montaigne. Lendo os Ensaios conseguimos em vários momentos calçar as suas botas e viajar pelo seu mundo. Uma viagem que segue pelo meio dos seus pensamentos, sem inícios nem fins, já que é de um modo associativo que cada ensaio se vai desenvolvendo e nos oferecendo acessos ao seu mundo interior e ao passado. Tentar transformar este mundo rizomaticamente livre num encadeado fixo de momentos temporais parece estar destinado à decepção.

abril 30, 2022

O humano Aristóteles

A partir de um apurado levantamento histórico Annabel Lyon especula sobre os três anos em que Aristóteles foi professor de Alexandre o Grande. Aristóteles tinha cerca de 40 anos e Alexandre 13. Mas não se espere um mundo perfeitamente delineado e amigável. Lyon construiu um texto minimalista, oferecendo muito poucas referências, raramente enquadrando os episódios supostamente mais conhecidos das vidas de ambos, ao mesmo tempo que constrói as cenas num modo abstrato, situa-as ligeiramente no espaço e tempo, mas apenas por forma a lançar o leitor numa mais profusa especulação sobre o que e como terá acontecido. Esta abordagem torna o texto em si distante e pouco envolvente, já que procura estimular o efeito dramático no leitor que para o efeito tem de recorrer à História. Por outro lado, Lyon apresenta um mundo de comportamentos com dois mil anos, distantes, mas também feitos de carne, de desejos e ódios, o que não raras vezes nos faz bater de frente com imaginários de uma suposta elevação da Grécia Antiga.

abril 15, 2022

Subtextos de um Príncipe

Os livros de Iris Murdoch não se podem ler apenas enquanto histórias, a sua faceta filosófica está sempre presente no subtexto requerendo que nos debrucemos sobre as motivações do tema, buscando chegar ao que terá conduzido o pensar no engendrar do mundo ficcional e das ações dos personagens. No caso de “O Príncipe Negro” (1973), temos à superfície uma tragédia, um escritor de 58 anos divorciado que se apaixona pela filha de 20 anos de um casal que é constituído pelos seus dois melhores amigos de sempre, e acaba a desencadear reações trágicas e irreversíveis. Se a intriga mantém o nosso envolvimento até ao final e com boa intensidade emocional, aí chegados parece tudo saber apenas a “mais uma tragédia de amores”. Mas se refletirmos no sentido ético da filosofia de Murdoch (Duringer, 2022), podemos ver mais, podemos ver como todo o texto é um labor de dissecação do comportamento humano, numa tentativa de oferecer à compreensão aquilo que o nosso preconceito tende a impedir-nos de abarcar, sem recorrer a embelezamento nem persuasão. O personagem é apresentado na sua plenitude, com toda a carga negativa, reforçando mesmo a nosso recusa, contudo essa apresentação obriga-nos a repensar, a procurar compreender.

janeiro 09, 2022

"A Perspetiva Científica" de Bertrand Russell

"The Scientific Outlook" foi publicado em 1931 e está hoje um pouco datado. Apesar de ter sido reeditado em 1949, com pequenas alterações pelo autor no domínio histórico, permanecem problemas científicos como o otimismo para com o behaviorismo, a fazer lembrar "Walden Two" (1948) de Skinner, e a psicanálise de Freud, assim como apresenta dúvidas quanto ao darwinismo. Mas mais importante do que essas falhas, explicáveis pela época, é todo o trabalho especulativo realizado ao redor da sociedade científica do futuro, pelo modo como abre caminho a todo uma forma de olhar a realidade que nos obriga a questionar o lugar da ciência.

Galatea 2.2 de Richard Powers

"Galatea 2.2" é um livro sobre Inteligência Artificial (IA) escrito em 1995, algo que poderia ditar imediatamente todo um texto datado, no entanto não é daí que surgem os seus maiores problemas. Powers é uma mente brilhante, capaz de um olhar analítico em profundidade e a IA acaba sendo aqui uma ótima desculpa para dissertar sobre a vida e o ato de viver. Mais ainda porque o livro é escrito num tom autobiográfico, com o protagonista a ser nomeado com o nome do autor, um escritor escrevendo o seu quarto romance, aquele que estamos a ler, variando os países e a língua em que a sua mulher é profissional de tradução, mas mantendo intacta a vontade do autor de nunca ter filhos. Esta sua vontade acaba sendo central para compreender o desígnio final da IA criada.

janeiro 03, 2022

O conforto que suporta o Estoicismo

"A Enfermaria nº6" é um conto alargado, uma novela, de Chekhov que trata questões existenciais a partir  da exemplificação prática. Chekhov coloca em cena dois personagens que dialogam, filosofam segundo Sócrates, e depois conduz esses personagens a passar pela prática das doutrinas defendidas. A novela funciona como um ataque ao estoicismo e à sua tendência para ignorar a emoção em função da razão, defendendo a racionalização como único caminho possível na vida:

dezembro 27, 2021

Porque nos Sentimos Inquietos (2021)

Adorei a discussão em redor das perspectivas sobre o contentamento humano de quatro grandes — Montaigne, Pascal, Rousseau e Tocqueville — apresentada em "Why We Are Restless: On the Modern Quest for Contentment" (2021) por Benjamin Storey e Jenna Silbur Storey. Ainda que sejam apresentados como promotores originais das ideias apresentadas e não o sejam. Desde logo porque a proposta de Montaigne, o "contentamento imanente" estava já presente em Epicuro via Lucrécio. Assim como Pascal não oferece nada que as religiões não tenham oferecido antes. Depois Rousseau dá conta da ineficácia da proposta de Montaigne a nível individual, e Tocqueville da ineficácia a nível de uma nação (EUA). Mas tudo isto faz parte de um ciclo que se repete — experiência vs. transcendência — podendo nós continuar opondo Tocqueville a Espinosa ou Nietzsche, para no final perceber que estamos ainda junto à discussão original e dualista que opôs Platão a Aristóteles.

A narração do audiobook é bastante apropriada às ideias discutidas no livro.

dezembro 18, 2021

Viajar no tempo para salvar Sócrates

A premissa era super-interessante — viajar no tempo para evitar a morte de Sócrates — mas a execução acabou ficando abaixo das expectativas. Esperava mais discussão filosófica, apesar de ter lido que para alguns tem demais. Esperava uma explicação mais forte para alguém se lançar na senda de fazer Sócrates mudar de ideias. Esperava congruência narrativa, apesar dos necessários saltos temporais das viagens no tempo. Mas talvez o maior problema tenha acontecido com o facto de pela primeira vez ter sido incapaz de suspender a minha descrença quanto às viagens no tempo. Passei grande parte do livro a teorizar sobre a razão porque não é possível, muito influenciado pela teorização sobre o tempo de Carlo Rovelli.

dezembro 08, 2021

"Bewilderment" (2021) de Richard Powers

Uma leitura comovente sobre um mundo humanamente íntimo e abundante em ciência. A história acontece num futuro próximo raiado pelos problemas da atualidade — aquecimento global, pandemia, polarização política e ativismo —, visto a partir dos olhos de uma criança de 9 anos, diagnosticada distintamente em função de cada médico — com autismo, OCD ou ADHD —, que perdeu recentemente a mãe e tem de enfrentar o mundo tendo como único amigo o pai que é astrobiólogo e se dedica à modelação de simulações de possíveis formas de vida em exoplanetas. Um dos melhores livros de 2021.

outubro 17, 2021

Abelardo e Heloísa

Pedro Abelardo foi um filósofo francês que ficou conhecido pela tragédia proporcionada a partir do seu romance com a erudita Heloísa de Argenteuil. O seu legado é maior, teve grande impacto na filosofia e teologia da época medieval e influenciou o ensino tendo tido influência no surgimento da própria Universidade enquanto instituição. Ousado e muito à frente do seu tempo, muito deve, segundo ele, ao castigo que lhe foi infligido. O tio de Heloísa, após descobrir o casamento em segredo de ambos, mandou castrá-lo. Como legado pessoal, ficaram as cartas que escreveram um ao outro, numa época posterior e que podemos ler nesta obra. O texto das mesmas é bastante direto, expondo de forma clara o impacto dos acontecimentos sobre a pessoa de cada um deles.