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dezembro 26, 2019

Isolamento social animado em plasticina

“Facing It” (2018) é um filme de animação de estudante brilhante que além de apresentar uma história atual e impactante, recorre a um conjunto muito diversificado de técnicas de animação, misturando múltiplos media, para dar conta do sentir dos personagens. A curta é o resultado do projeto final do mestrado em Direção de Animação, National Film and Television School (UK), de Sam Gainsborough, depois de se ter licenciado em Screenwriting for Film and TV na Bournemouth University, em 2013. Ao longo do ano passado o filme foi galardoado com imensos prémios e nomeações.
Tecnicamente temos: pixilation, plasticina, chromakeying, motion tracking e rotoscoping. Os personagens são pessoas reais, filmadas com máscaras e marcadores faciais, em movimentos adaptáveis ao stop-motion do filme. Os grandes planos foram novamente filmados com fundo verde, para servir o rotoscoping e mistura com a plasticina. Os marcadores da face foram usados para a substituição das expressões, via motion tracking, com as animações criadas em plasticina.

É um trabalho audiovisual impressionante, pela mistura de técnicas que requerem competências muito distintas, e pelo resultado final imensamente conseguido em termos de coerência estética. Não só as técnicas foram fundidas sem deixar rasto, como a cinematografia e a cor trabalham em perfeita sintonia para fazer passar a história de Gainsborough. Vale a pena ver o making of, depois do filme, e ler a entrevista no Director's Notes.
No meio de tudo, gostei particularmente da técnica utilizada na modelação da plasticina, no modo como as dedadas em vez de serem limadas, para se tornarem invisíveis, são enfatizadas para oferecer textura e expressividade à superfície plástica. Em certos momentos, nomeadamente quando animados, o modo como Gainsborough trabalha os rastos das dedadas fazem lembrar as texturas produzidas pelas pinceladas de Van Gogh.


"Shaun always feels separate and isolated from the confident, happy world around him. Whilst waiting for his parents in a busy pub, Shaun struggles valiantly to join in with the admirably happy people in the crowd, but the more he tries, the more he goes awry. As everything in the pub goes from bad to worse, Shaun finds himself confronted by the painful memories that made him who he is. His feelings, memories and desires overwhelm him and by the end of the evening he is ready to explode…"

abril 26, 2019

Sobre o Mito: “desde que se leia”

Um dos grandes mitos que surgiu nas últimas décadas com a elevação do discurso pós-moderno a discurso popular e consequente queda de reconhecimento dos especialistas, foi o da colocação ao mesmo nível de qualquer texto, independentemente da sua forma ou conteúdo. Diz-se e lê-se um pouco por todo o lado: “o que é preciso é ler, desde que se leia, não importa o quê”. Nada podia ser mais erróneo. Vamos usar um modelo simples de análise textual para perceber porque importa e faz diferença aquilo que se escolhe para ler.


A desconstrução, simples, de texto pode ser feita nas suas três unidades básicas que funcionam como camadas: sintaxe, semântica e pragmática. Assim, temos:
1º nível – Sintaxe: conjunto de regras e princípios que governam a estrutura das frases (Ex. explica como se conjugam verbos, ou plural e singular, etc.); 
2º nível – Semântica: é onde se atribui sentido às palavras e frases (Ex. “bola”, quer dizer pedaço de borracha esférica; mas “bola de futebol americano” quer dizer pedaço de borracha oval).
3º nível – Pragmática: aqui elevamos a complexidade, é onde se atribui sentido às palavras e frases em função da relação que temos com os significados ou com a pessoa que as emite. (Ex. “cruz”, um católico pensará em Cristo, mas um matemático tenderá a pensar em sinal de multiplicação; se um professor e um médico nos dizem “que não estamos a ir bem”, apesar da mesma sintaxe e mesma semântica, não querem dizer o mesmo).
Quando iniciamos os nossos passos como leitores, perto dos 6 anos, começamos pela sintaxe. Aprender as letras, depois palavras, depois regras que nos permitem juntar palavras e formar frases. Quanto mais lermos, mais exemplos vamos conhecer sobre como juntar letras e palavras para criar frases. Depois disso, começamos a perceber que existem muito mais palavras do que aquelas que usamos no dia-a-dia e que exigem durante o processo de leitura o uso do dicionário, o que nos vai fazendo ampliar o vocabulário, assim como acrescentando novos significados a frases compostas que antes desconhecíamos. Depois disso, começamos a perceber que apesar de poderem ser as mesmas palavras ou frases, elas variam em função de quem está a falar, do contexto, do local ou momento em que estão a ser ditas, e por isso vamos ampliando a nossa bagagem das múltiplas interpretações possíveis da linguagem.

Tendo em conta estes processos, podemos dizer que ler sempre o mesmo, ou um conjunto restrito de estilos textuais, é suficiente para o domínio sintático. Ou seja, para uma criança pequena, a dar os primeiros passos, não interessa muito o que vai lendo, desde que leia. O que se pretende é que memorize as letras, palavras, frases as suas posições, organizações e usos. Mas a determinada altura, temos de começar a guiar as leituras, temos de lhes oferecer textos que eles compreendam para que se mantenham a ler, mas que ao mesmo tempo vão exigindo mais e mais conhecimento de significados, de forma a garantir que eles vão ampliando o vocabulário, os diferentes usos frásicos, assim como as noções de composição diferentes dessas mesmas frases. Chegados à terceira fase, temos de começar a ler aquilo que numa primeira leitura não nos atrai, por ser diferente do que estamos habituados, ou seja, "sair da zona de conforto". Porque já não chega ampliar o vocabulário, precisamos de ler diferentes versões da realidade para podermos começar a comparar, a confrontar e a contrastar, e assim começar a compreender porque as mesmas palavras, e as mesmas frases, e as mesmas ideias podem conter outros significados até aí desconhecidos.

É por isso que ler qualquer coisa não é indiferente. Se lermos todos os dias, mas a leitura for colocada sempre ao mesmo nível de desafio, ou seja, não forem apresentados significados novos de palavras, frases, ou dos seus diferentes usos, é como se não estivéssemos a ler nada. O texto está a servir apenas de condutor, de envelope, ao qual nem sequer prestamos atenção. É como passar todos os dias na mesma estrada, não aprendemos mais sobre ela depois de passar por ela 100 vezes, não é por acaso que na maior parte dos dias não nos lembramos sequer de ter feito a estrada para o trabalho, nada de novo chamou a nossa atenção, foi mera repetição, por isso nada ficou dessa passagem.

Ou seja, ler Dan Brown ou José Rodrigues Santos pode até saber-me bem pela intriga e aventura, pode funcionar como umas horas bem passadas de entretenimento, mas por mais horas que os passe a ler, as minhas competências tanto de compreensão textual como de escrita não vão melhorar em nada (a não ser que seja um adolescente, ou seja alguém que leu muito pouco, e ainda não tenha atingido um nível médio). Lê-los, será como passar pela mesma estrada para o trabalho todos os dias, com a vantagem de poder ser divertido.

Do mesmo modo, se for um livro de não-ficção — sobre Astronomia, Vinhos ou Cinema — aprendo sobre o assunto em questão, mas não devo esperar que essa leitura altere ou contribua para melhorar as minhas competências de leitura e escrita. Por outro lado, se não incrementar o nível de detalhe, aprofundamento e erudição dos tópicos sobre esses temas, pela ausência de variação continuarei apenas a solidificar o que já sei, não passando disso. É por isso que as novelas de amor e traição se revelam tão pouco relevantes para além do mero divertimento, não só são limitadas no uso das funções textuais, como não vão além do baralhar e voltar a dar das tramas amorosas, descurando toda a restante complexidade humana.

Nunca se leu tanto no planeta como hoje, porque nunca as pessoas viram a sua realidade tão mediada por ferramentas que operam com imagens e texto, sendo o texto o principal meio de que as pessoas dispõem para se fazer ouvir. Desde os jornais e suas caixas de comentários ao Facebook, Twitter ou WhatsApp, nunca nos vários milhares de anos que levamos como espécie, houve tanta pessoa alfabetizada e obrigada a ler todos os dias para poder levar a sua vida por diante, no entanto essa prática diária não alterou propriamente as competências de leitura e escrita das pessoas. Basta perder um pouco a ler essas mesmas caixas de comentários e deter-se sobre o uso dado ao texto, a sua sintaxe, semântica e pragmática.


Podia terminar com o último parágrafo, mas não estaria a dar um contributo completo, por isso deixo duas recomendações: The Greatest Books e PNL2027.

março 28, 2018

Ao cinema não basta querer emular os videojogos

King Arthur: Legend of the Sword” (2017) é um filme de Guy Ritchie o que se evidencia desde as primeiras sequências dada a sua tendência para colocar a forma na frente do conteúdo, nomeadamente em termos de montagem, composição visual e ritmo. Contudo julgo que desta vez se excedeu ao tentar descaradamente fundir discursos contemporâneos da moda — as séries de tv, mas principalmente os videojogos — para agradar em particular ao público mais jovem, dominante no consumo dos conteúdos audiovisuais, mas a julgar pelo desastre em bilheteira nem a esses conseguiu agradar.




Temos o mito, da espada na pedra, carregado com fantasia à lá “Lord of the Rings” e “Game of Thrones”, mas ao contrário destes, não temos história nem personagens. Artur não sabe quem é, não quer saber, nem tem razões para querer, assim como não parece munido de qualquer motivação, vontade ou desejo, simplesmente existe para que o filme tenha um foco humano. Os restantes são adereços, igualmente desprovidos de vida, nem Jude Law consegue salvar algo que não tem pés nem cabeça. Sim, nos videojogos blockbusters os personagens também são pouco desenvolvidos, mas quem disse que um videojogo era um filme?


Por outro lado temos uma banda sonora, por Daniel Pemberton, de excelência que tudo vai colando por meio de bons leitmotivs sonoros que adocicam o nosso interesse, ao que se juntam momentos altos de grande impacto visual, por meio de sequências de cinema virtual em que o cinema dá lugar à animação de VFx. Contudo tudo isto acaba por criar um conjunto de sequências que poderíamos desfrutar em qualquer âmbito sem necessitar do filme, simplesmente para apreciar a beleza do virtuosismo técnico e criativo. São sequências em que o cinema deixa de o ser para assumir mero caráter de cinemático, a cola à estética dos videojogos é muito alta, tanto que em vários momentos pensei estar num videojogo e não num filme.




Ritchie impressiona com o calibre explosivo da forma, a velocidade da montagem e a composição constante in-your-face, tudo no filme parece gritar pela nossa atenção, ao mesmo tempo que nada parece realmente valer essa atenção. Os personagens parecem ter sido retirados de um "Lock, Stock and Two Smoking Barrels" (1998) ou "Snatch" (2000) e enfiados à pressão num mundo medieval, não se conseguindo nunca vislumbrar qualquer Cavaleiro da Távola Redonda e menos ainda um Rei Artur. A demonstrar que não chega produzir obras de impacto audiovisual forte, que por mais intenso que o labor seja, e mesmo que consiga manter o nosso olhar e ouvidos presos à tela, continuamos a precisar de personagens humanos para nos fazer sonhar, para conseguirmos criar fábulas que perdurem. O cinema é acima de tudo drama, narrativa encenada, já um videojogo conta com outros atributos, nomeadamente jogabilidade e interatividade, que não têm lugar num filme.

fevereiro 09, 2016

Vertigem audiovisual

Parece fácil, parece ad hoc, coincidências suportadas por processamento computacional, mas não, é muito pouco disso, é muito trabalho, muito tempo investido no desenvolvimento de sensibilidade capaz de captar e editar assim. É a primeira vez que aqui trago trabalho de Leonardo Dalessandri que segue uma linha de filmes web desenvolvida por criadores como Matty Brown e Jason Silva, e que podemos apelidar de vertigem audiovisual.





Esta abordagem estética caracteriza-se essencialmente pela velocidade e ritmo imprimido por via da montagem, assim como pela alternância entre planos gerais e planos de pormenor, socorrendo-se ainda de artifícios como a câmara lenta, acelerada e reversa. A experiência constrói uma espécie de pequena janela para uma realidade nova, que se consome em poucos minutos deixando uma impressão profunda, que perdura como uma essência de perfume.

Deixo apenas um dos filmes de Leonardo Dalessandri, Watchtower of Turkey, mas aconselho vivamente uma visita ao seu Vimeo, no qual destaco a recente colaboração com Jason Silva em "Captains of Spaceship Earth" (2015), pelo texto de Silva sobre os efeitos dos media.

"Watchtower of Turkey" (2014) de Leonardo Dalessandri

abril 17, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume I

Êxtase e deleite, são os adjetivos que me ocorrem ao terminar de ler “Do Lado de Swann”, o primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust, publicado em 1913. Contudo estas sensações não se deram facilmente. Este primeiro volume acompanha-me há mais de dez anos, comprei-o no ano de lançamento da tradução portuguesa de Pedro Tamen, em 2003, influenciado por todo o burburinho de imprensa. Desde então tentei lê-lo várias vezes mas nunca passava da página 50. Em 2013 pela comemoração do centenário do lançamento do primeiro volume voltei a pegar-lhe como atesta o meu Goodreads mas nada. As impressões de cada uma dessas tentativas falhadas, invariavelmente reportavam enfado e sonolência. Proust descrevia tudo tão minuciosamente, aborrecia porque ausente de conflito e desse modo de enredo, tornando um suplício a sua leitura. E no entanto desta vez, ao chegar à página 150 um clique ocorreu dentro de mim, sim em mim porque na escrita nada se alterava até esse momento. A partir desse momento a minha leitura e a escrita de Proust entravam em sintonia, o ritmo que até aqui era lento e sonolento passava a sentir-se como sereno e tranquilo. A minuciosidade era agora assimilada com ritmo compreendendo musicalidade, impressionava a cada novo parágrafo, criando ânsia pelo parágrafo seguinte, pela página seguinte, por continuar a ler deleitando-me a cada novo instante.


Não quero entrar em muito detalhe sobre o texto já que este é apenas o primeiro volume de sete, 450 páginas de 3200, mas farei o possível por ir escrevendo impressões, ainda que breves, sobre cada um dos volumes que for lendo. Se conseguir, no final procurarei então escrever sobre os temas e a obra como um todo.

Deste modo, e falando apenas deste primeiro volume, devo dizer que após o primeiro dia de reflexão sobre o que li, discerni três abordagens, ou três dimensões, distintas de acesso à obra, cada uma origem de diferentes formas de prazer, o que dá conta do potencial estético do texto. Antes de as descrever, dizer que apesar de ser uma obra seriada, este primeiro volume apresenta um claro arco, com um fechamento que sabendo nós que não o é, se sente, porque o livro como que realiza um círculo, voltando ao ponto de partida, embora mais tarde no tempo. Proust liga as pontas, conecta os personagens, e provavelmente prepara o terreno para os próximos volumes. Indo agora às dimensões de que falava, temos:


1 - As histórias de amor
Este é, para mim, o nível menos relevante mas é o nível no qual o texto assume um carácter mais standard, seguindo a lógica realista de crítica de costumes, encaixando nas tradições do romance do século XIX, início de XX. Ele está mais presente no miolo do livro, ou seja na segunda parte do primeiro capítulo (“Combray”) e em todo o segundo capítulo (“Um amor de Swann”). É uma componente do texto em que o enredo assume domínio sobre a forma escrita, em que somos levados pelos relatos de acontecimentos, em que o conflito surge, seguimos atrás de um homem que se esvai em ciúme. O melhor desta parte acaba sendo a minuciosidade como Proust descreve esse ciúme, o detalhe que nos faz recordar momentos das nossas vidas, questões que nos colocámos a nós próprios em situações semelhantes.
“Talvez não soubesse o quanto ele fora sincero durante a briga, ao dizer-lhe que não lhe mandaria dinheiro e procuraria fazer-lhe todo o mal possível. Talvez tampouco soubesse da sua sinceridade, se não com ela, pelo menos consigo mesmo, em outros casos em que, em prol do futuro da sua ligação, para mostrar a Odette que era capaz de passar sem ela, havendo sempre possibilidade de um rompimento, resolvia Swann passar algum tempo sem visitá-la.” (tradução de Mario Quintana)

2 - A análise estética do real e social
Este é um ponto muito rico, embora de mais difícil acesso para a generalidade dos leitores, já que diz respeito ao modo como Proust usando toda a sua sensibilidade estética, construída durante os anos em que dedicou textos à análise de várias obras de arte, se dedica a desconstruir a realidade, usando metáforas a partir de uma tríade de artes – literatura, pintura e música. Esta desconstrução acontece com maior força na primeira e última partes do livro. Em que Proust assume a primeira-pessoa, e nos fala diretamente, ainda que pela voz de um personagem por si criado. É neste registo que surge, logo no início do livro, o famoso episódio da Madalena, que não irei citar agora, e toda a discussão sobre o poder das "memórias involuntárias", sobre o que espero falar no final.

Quando Proust entra neste registo é como se o texto assumisse o lugar de pincel ou batuta, e sentimos o mundo escrito como borrões de tinta, ou rasgos de notas. As suas descrições dos campos de Combray são tão esteticamente detalhadas que não apenas nos sentimos transportados para o espaço, mas para um espaço especial criado pela sua capacidade oratória que plastifica e embeleza toda aquela realidade.
“O meu maior desejo era ver uma tempestade no mar, não tanto como um belo espetáculo, mas como a revelação de um instante da verdadeira vida da natureza; ou antes, para mim só eram belos os espetáculos que eu sabia não terem sido artificialmente arranjados para me agradar, mas que eram necessários e imutáveis — a beleza das paisagens ou das grandes obras de arte. Apenas tinha curiosidade e avidez daquilo que julgava mais verdadeiro que o meu próprio ser, aquilo que tinha para mim o valor de me mostrar um pouco do pensamento de um grande gênio, ou da força ou graça da natureza, tal qual se manifesta quando entregue a si mesma sem intervenção humana. Assim como o lindo som de uma voz, isoladamente reproduzido pelo fonógrafo, não nos consolaria da perda de nossa mãe, uma tempestade mecanicamente imitada me deixaria tão indiferente como as fontes luminosas da Exposição.” (tradução de Mario Quintana)
“Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com essa justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorraçado. ” (tradução de Mario Quintana)

3 - A forma da escrita
Por fim a forma da escrita, cerne da estética da obra Proustiana, está presente em todo a extensão do livro, por vezes de forma mais leve, outras assumindo um pendor pesado, como que a dizer: “olha para mim, olha para cada palavra escolhida, olha para as frases que se entrelaçam sem fim, os torvelinhos de ideias tecidas em mim e sobre mim através do que prendo os teus olhos, cerco a tua mente, e carrego sobre o teu coração”. Não admira que Proust tenha demorado anos a concretizar a obra, e tenha deixado dezenas e dezenas de cadernos de notas sobre a construção da mesma, já que o que aqui vemos, apesar de poder brotar da sua competência literária, é também fruto de um trabalho de grande minúcia artesanal, uma atenção obsessiva com o detalhe.
“Mesmo quando não pensava na pequena frase [da sonata de Vinteul], ela existia latente em seu espírito, da mesma forma que algumas outras noções sem equivalente, como as noções de luz, de som, de relevo, de volúpia física, que são as ricas posses com que se diversifica e realça o nosso domínio interior. Talvez as percamos, talvez se extingam, se voltarmos ao nada. Mas, enquanto vivermos, e tal como acontece no tocante a qualquer objeto real, não podemos fazer como se as não tivéssemos conhecido, como não podemos, por exemplo, duvidar da luz da lâmpada que se acende diante dos objetos metamorfoseados de nosso quarto, de onde se escapou até a lembrança das trevas.” (tradução de Mario Quintana) 

Não quero terminar sem deixar de citar as palavras de Woolf enquanto lia este primeiro volume da obra de Proust, que agora depois de o ter lido, e sentido, percebo completamente:
“Proust so titillates my own desire for expression that I can hardly set out the sentence. Oh if I could write like that! I cry. And at the moment such is the astonishing vibration and saturation and intensification that he procures — there’s something sexual in it — that I feel I can write like that, and seize my pen and then I can’t write like that. Scarcely anyone so stimulates the nerves of language in me: it becomes an obsession. But I must return to Swann.”

“My great adventure is really Proust. Well what remains to be written after that? I’m only in the first volume, and there are, I suppose, faults to be found, but I am in a state of amazement; as if a miracle were being done before my eyes. How, at last, has someone solidified what has always escaped and made it too into this beautiful and perfectly enduring substance? One has to put the book down and gasp. The pleasure becomes physical like sun and wine and grapes and perfect serenity and intense vitality combined.”
Virginia Woolf

Edição lida: Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido - Volume I - Do Lado de Swann”, Relógio D'Água, ISBN 9789727087303, trad. Pedro Tamen, 2003, p. 450

Nota sobre os excertos: uso a tradução de Mario Quintana para os excertos porque não tenho acesso ao texto em digital da tradução lida. Espero falar sobre as traduções no final, mas das várias que tive oportunidade de folhear, e comparar com o original, as duas melhores são sem dúvida a de Quintana e Tamen.


Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

abril 02, 2015

Infinite Jest / A Piada Infinita

Wallace conseguiu. David Foster Wallace (DFW) tinha um objectivo muito concreto para "Infinite Jest" (IJ) (1995) (traduzido para português como "A Piada Infinita" (2012)) que passava por retirar-nos do cisma do quotidiano, os automatismos com que lidamos e aceitamos a realidade à nossa volta, levando-nos a assumir um papel participativo, não apenas na construção de sentido da obra, mas essencialmente pelo confronto de ideias, diálogo com o outro. Uma rápida pesquisa online pelo nome do livro dá-nos uma ideia muito concreta do alcance desse diálogo concretizado em páginas inteiras dedicadas, wikis, blogs, fóruns, livros e congressos que continuam sendo alimentados 20 anos depois da obra ter sido lançada.

Capa da edição portuguesa, traduzida por Salvato Telles Menezes e Vasco Menezes.

DFW defendia que o Entretenimento ombreia com a Arte na capacidade de nos fazer sentir e refletir [1]. O que mais o incomodava era divisão entre as chamadas artes alta e baixa, o elitismo da crítica na proteção dos seus e rebaixamento dos demais. DFW acreditava que se sentia algo quando em contacto com o entretenimento fosse literatura ou televisão, então isso não podia ser relegado, esquecido, fazer-se de conta que nada se sente [2]. Isto é uma das características mais fundamentais na pessoa de DFW, a sua sinceridade e aceitação do mundo tal como ele é [3]. Deste modo IJ tinha um segundo propósito para DFW, conseguir unir o Entretenimento e a Arte, juntar o melhor de cada num único artefacto, e conseguiu, IJ consegue ser ao mesmo tempo: trivial e complexo; coloquial e erudito; conciso e diarreico; profundamente linear e completamente não-linear; absolutamente divertido e terrivelmente chato.

Capa da edição brasileira (traduzida como "Graça Infinita" (2014)), a melhor do ponto de vista de design.

IJ é uma obra arquitectada, planeada ao milímetro, desenhada para produzir efeitos muito concretos na sua audiência. Nesse sentido é fruto do mais objectivo design literário, sem nunca abandonar o profundamente subjetivo artístico que lhe confere a pessoalidade, a experiência e vivência únicas do seu autor. IJ é ao mesmo tempo um manifesto de DFW, capaz de demonstrar toda a sua filosofia de vida, e um legado capaz de demonstrar todo o alcance do seu arcaboiço intelectual.

Para suportar todas estas ideias DFW criou um mundo muito particular para contar a sua história. IJ situa-se num futuro alternativo próximo, o livro foi escrito em 1995, com a história a situar-se na primeira década dos anos 2000. Ou seja, para nós já é passado, mas isso acaba por não ser muito relevante, já que o foco narrativo não se centra nos efeitos dessa passagem de tempo, mas nas pessoas, seus desejos e vidas. O futuro aqui serve mais para facilitar ao imaginário do leitor o deslocamento para uma realidade alternativa. A história decorre em dois pontos centrais, uma escola de ténis e uma casa de desintoxicação, por onde os personagens vão passando, apresentando-se e confrontando-se. O cerne da caracterização de IJ fica a cargo de uma família, James Incandenza (pai) Avril Incandenza (mãe) e os três filhos Orin, Mario e Hal.

Uma das histórias de IJ encenada em Lego pelo Brickjest

A versão original do livro tinha mil páginas, contudo com letra bastante pequena, nomeadamente as notas que ocupam mais de 100 páginas. A versão alemã tem 1500 páginas, o que a julgar pelos números de "locs" no meu Kindle, e comparando com outros livros, me parece muito mais próximo do real, caso fosse utilizada uma letra de tamanho dito normal nas versões impressas. Neste sentido IJ é praticamente uma saga em termos de tamanho, cerca de 60 horas de leitura, o que se reflete na imensidade de pequenas histórias e nas dezenas e dezenas de personagens. Mas não se pense que o livro é difícil pelo tamanho. As dificuldades que enfrentamos na leitura são criadas pelo próprio DFW, de forma propositada, no modo como organiza a informação. DFW não segue estruturas narrativas clássicas (em que tudo vai sendo explicado à medida que se avança, montado e estruturado para produzir prazer), nem tão pouco modernas (meramente experimentalistas), embora também as utilize, DFW é um pós-modernista, e enquanto tal usa tudo o que a literatura lhe dá para agir sobre a cognição dos seus leitores, destruturando e estruturando, obrigando o leitor a sair do conforto da aceitação do que o autor vai debitando, para procurar as peças do puzzle e assim construir os seus significantes e significados, sempre duvidando se estes estão ou não alinhados com os do autor.

Como livro extraordinariamente aberto que é, pelo que disse atrás, mas também pelo modo polifónico utilizado, DFW regista quase todos os modos discursivos – directo, indirecto, indirecto livre – olhando e caracterizando personagens a partir do seu interior ou do narrador que tanto fala em primeira como em terceira pessoas, e que nem sempre conseguimos situar, IJ dá-se a cada um de nós de formas totalmente diferentes, produzindo respostas emocionais e cognitivas bastante distintas. Existe quem adore, quem deteste, quem se aborreça, quem ri às gargalhadas e quem chora profundamente. Neste sentido é possível encontrar pessoas que ficam agarradas a IJ desde as primeiras páginas, quem só se comece a ligar pelas 200, quem como eu só começou a sentir a partir das 500, e quem nunca se ligue. Quase todos, quando terminam, eu incluído, têm vontade de recomeçar imediatamente. Esta vontade de recomeçar a leitura impressionou-me bastante porque se aproxima imenso do objecto que está no cerne do enredo, um filme de entretenimento, chamado também "Infinite Jest", que as pessoas não conseguem parar de ver. Ou seja, DFW claramente objectiva a este efeito, e consegue-o.

Para o conseguir coloca a trabalhar toda a complexidade estrutural de IJ. A primeira leitura serve apenas de primeira passagem, de reconhecimento. O mundo criado por DFW é próximo, mas é profundamente alternativo, estranho e distante, muito do que parece não é, e muito do que nada parece tem imenso valor. DFW não é apenas um pós-modernista, com vontade de destruturar a literatura e nos colocar a pensar, é alguém dotado de uma forma muito peculiar de ver o mundo, suportado por uma enorme bagagem descodificadora desse mundo. Ou seja, formado em Filosofia, DFW lia de tudo e de forma compulsiva. IJ é mera janela para um mundo inteiramente construído pela mente de DFW, um mundo enorme e detalhado, dotado de uma imensidade de camadas de significado. DFW usa depois a literatura para verbalizar todas essas camadas, servindo-se de todo o arsenal formal para lhes dar corpo. É por isso que DFW usa e abusa das notas de rodapé (existem capítulos inteiros dentro de notas de rodapé); usa e abusa de palavras inventadas, de discursos entrecortados, viagens no tempo, personagens secundários ou meramente figurantes. DFW não pretende ser directo, nunca, tudo tem sempre segundo, terceiro ou mais significados e cabe-nos a nós, enquanto leitores, trabalhar para chegar a esses significados. A vontade de reler advém exatamente da tomada de consciência de tudo isto, com o fechar da última página sentimos que descortinámos apenas a primeira camada e partes das outras camadas, sentimos que o livro tem ainda muito mais para nos dar.

Por isso mesmo o final de IJ tem sido imensamente debatido online, em busca de fechamento, algo que a Gestalt nos diz ser uma necessidade humana profunda. DFW disse em entrevistas que o fechamento estava lá, que bastava apenas olhar para além da última página. Neste sentido não deixa de ser interessante que uma das explicações para o final de IJ mais amplamente aceite e citada seja de Aaron Swartz, uma outra mente prodígio do nosso tempo. Trabalhando em frentes bem diferentes, Wallace e Swartz tinham em comum a luta pela franqueza e tolerância por via da comunicação com o outro contra o individualismo. DFW pôs fim à sua vida em 2008, Swartz leu e escreveu a sua explicação de IJ em 2009, pondo também fim à sua vida em 2013.

É possível encher páginas sobre IJ, e muitas se têm escrito, por isso mesmo opto por deixar aqui alguns links para textos que fui lendo ao longo da leitura, e outros que li apenas após o virar da última página. DFW conseguiu mesmo o que pretendia, porque ler IJ dá-nos vontade de constantemente confrontar as nossas ideias com as de outras pessoas, de ouvir o que os outros pensam, e refletir sobre o que pensámos nós, umas vezes mudando de ideias, outras mantendo, optando pelas nossas deduções e intuição.

Para fechar, quero apenas recomendar a leitura de dois textos de DFW que podem ler mesmo antes de iniciar a leitura de IJ, pois irá ajudar a compreender melhor DFW e consequentemente IJ. O primeiro texto foi escrito em 1993, na altura em que DFW estava a escrever IJ, e dá conta da tese que subjaz a IJ, falo de “E unibus pluram: Television and US fiction”. O segundo texto foi aquele que me deu a conhecer DFW há uns anos, “This is Water”, que sintetiza toda a filosofia de DFW e IJ, inclusive usa uma imagem presente em IJ (os peixes que se questionam: “o que é a água?”). Este segundo texto, ganhou entretanto uma interessante visualização em vídeo a qual fiz menção aqui no blog quando saiu.


Fecho. Anotei centenas de trechos no texto, alguns de uma linha apenas, outros páginas inteiras de discurso sem qualquer ponto final. Não coloco aqui nenhum desses excertos, optando por transcrever apenas um pequeno ponto que julgo ser capaz de dar conta do estilo de DFW, tanto na forma como junta o vulgar ao intelectual, como na forma como plasma em texto uma ideia,
“Olha-Para-Mim-A-SerTão-Completamente-Sincero-E-Aberto-Que-Desprezo-Toda-A-Pose-Insincera-Do-Processo-De-Engatar-Uma-Pessoa-E-Transcendo-A-Hipocrisia-Normal-Do-Vulgar-Frequentador-De-Bares-De-Uma-Forma-Paricularmente-Fixe-Espirituosa-E-Consciente-E-Se-Me-Deixares-Engatar-te-Não-Só-Vou-Continuar-A-Ser-Esprituosa-E-Transcendentemente-Aberto-Como-Te-Introduzirei-Neste-Mundo-Transcendente-De-Falsidade-Social”

Textos para acompanhar IJ
Acompanhamento de Leitura da Ed. Brasileira - Posfácio (2015)
Acompanhamento de Leitura da Ed. Americana - Infinite Summer (2009)
Dezenas de detalhes explorados em detalhe
Site dedicado a DFW
IJ Wiki

Teorias sobre o final de IJ
A mais citada, de Aaron Swartz
De Dan Schmidt
De Daniel Pellizzari


Análises recentes e em português
Camila von Holdefer
Isabel Lucas
Taize Odeli
Mário Rufino

Livros sobre IJ
David Foster Wallace’s Infinite Jest: A Reader’s Guide” de Stephen Burn
Elegant Complexity: A Study of David Foster Wallace’s Infinite Jest” de Greg Carlisle

Sobre a tradução Portuguesa
Traduzir uma piada de 1000 páginas (Público)


Referências
[1] DFW 10 Favorite Books, in J. Peder Zane, (2007), The Top Ten: Writers Pick Their Favorite Books, W. W. Norton & Company
[2] Wallace, D. F. (1993). E unibus pluram: Television and US fiction. Review of Contemporary Fiction, 13, 151-151.,
[3] Wallace, D. F. (2009). This is water: Some thoughts, delivered on a significant occasion, about living a compassionate life. Hachette UK.

outubro 20, 2014

A inovação em "Half-Life"

Stuart Brown publicou ontem no YouTube um belíssimo documentário no qual dá conta da inovação estética produzida por "Half-Life" (HL) em 1998. Ao longo de cerca de 20 minutos Brown apresenta historicamente o surgimento de HL e compara os seus elementos mais marcantes com outros jogos anteriores e posteriores. O documentário acaba por resultar numa demonstração do quão marcante e relevante foi o surgimento de HL para o género First-Person Shooter.


Fiz questão de frisar que a maior relevância de HL diz respeito ao género FPS, já que apesar de este ter apresentado elementos extremamente relevantes no campo do storytelling, o facto de ter permanecido sempre colado à primeira-pessoa, impediu-o de elevar a fasquia neste domínio. Tenho-o dito várias vezes, e volto a dizer, não é possível gerar o nível de empatia requerido por uma história se o protagonista não estiver presente. Em HL2 isso foi muito atenuado com os personagens secundários, nomeadamente Alyx, mas continuou a ser insuficiente. Em termos puramente teóricos, posso até pedir ao jogador que "preencha" o espaço deixado vazio pelo protagonista, tal como o leitor faz quando falta alguma informação num livro que está a ler, mas não chega.

As personagens são elementos-chave numa história, sem elas não existe ligação ao seu âmago emocional. Podemos ver isto acontecer num dos livros mais elogiados de Italo Calvino, As Cidades Invisíveis (1972) um livro que procura obrigar o leitor a trabalhar na construção mental do personagens, já que o autor apenas fornece o esboço dos ambientes e espaços das cidades. Mas o que acontece é um distanciamento total, uma frieza, uma ausência de sentires capazes de me fazer respirar a história. A descrição é insuficiente, requer drama para se tornar narração.

"RetroAhoy: Half-Life" (2014) de Stuart Brown

Em HL, ou qualquer FPS o que temos é isso, uma tentativa de gerar história por via do ambiente, e aqui HL foi exímio, criando todo um mundo espacial altamente credível, sem quebras, sem níveis, sem cutscenes, literalmente sentimos que tínhamos entrado em Black Mesa. Mas tudo seria tão diferente se pudesse ter conhecido Gordon Freeman.

Desta vez gostei de ler os comentários no YouTube, porque se por vezes pareço estar sozinho a defender tudo isto, verifiquei que não é de todo o caso. O primeiro comentário que aí poderão ler, o mais votado, toca exactamente aqui. Muito interessante!

maio 18, 2014

A montagem e a câmara orgânica

Priorities” é a mais recente curta do jovem e brilhante realizador de animação da Letónia, Gints Zilbalodis. A sua animação anterior, "Acqua" (2012), tinha já sido recebida com muito aclamação na rede, apresentando um estilo único e pessoal. Com “Priorities” Zilbalodis vai além da linguagem da animação e do cinema, constrói toda uma nova forma de "ver", que em parte deve a uma paisagem visual cada vez mais definida pelo mundo dos videojogos.



“Priorities” tem uma boa história, que se torna ainda mais encantadora quando descobrimos a metáfora pessoal que lhe subjaz (ler abaixo depois de ver o filme). Mas aquilo em que o filme nos entranha é o seu aspecto formal experimental. O filme tem 10 minutos, mas apenas 4 planos, algo impensável em 2014, como ainda ontem se discutia no IV Encontro da AIM. Por outro lado o comum espectador dificilmente se dá conta de que está na presença de um filme de apenas 4 planos. A razão para tal prende-se com a forma como a câmara é usada, que deve claramente ao trabalho de Cuarón em "Gravity" (2013), e que Zilbalodis refere como o seu filme preferido de ano 2013.

É no entanto muito interessante reflectir sobre este uso da animação da câmara, algo que até aqui estava mais ligado ao mundo dos videojogos. Nesse domínio há muito que se trabalham algoritmos, técnicas e modelos para controlo de movimento de câmara, muitas vezes incluindo inteligência artificial capaz de dar resposta por parte da câmara aos movimentos rápidos em ambiente de jogo. “Gravity” pelo seu lado recorre ao movimento de câmara para simular algo muito específico, a flutuação espacial ou ausência de gravidade. Mas em “Priorities” não temos nenhuma destas condições ou objectivos, Zilbalodis simplesmente experimenta esta abordagem estética para contar a sua história, e fá-lo de forma absolutamente brilhante, tendo explicado ao SotW o que procurava,
“I wanted it to look as organic as possible and the cinematography to be imperfect. The continuous shot workflow helped me see the film as a whole and not get lost in details. The long takes limit the story to unfold in real time. In a more traditional style of cutting, it’s easy to skip over the unimportant parts of the story to keep it entertaining. But since the story is very simple and there’s not much of a plot I didn’t have to skip over anything, the story fit the style very well.”
Claro que se torna inevitável pensar nas complexidades e constrangimentos que advém desta escolha estética. E desengane-se quem pensa que por se tratar de animação criada por computador, é tudo muito mais fácil do que criar um plano sequência, como a famosa abertura de "Touch of Evil" (1958) de Welles. Como diz Zilbalodis “If I changed just a small detail, the whole scene had to be rendered again”. Para compreender o processo em detalhe é muito interessante ouvir a descrição do processo numa numa entrevista dada One Small Window,
“I had never made a CGI film before. I learned by trial and error. For example, only when I had finished the character rigs I would start to learn how to animate. By doing that I made a lot of mistakes, but a lot of happy accidents too. Almost everything was done in Maya. The characters, the environment and most of the effects animation. Each of the 4 shots was a separate Maya file. I would start by very roughly matching the storyboards. At this stage, the characters and the camera are just floating from point A to point B and the environment consists of only the most important objects that are essential to the story. I tried not to separate any of the processes and would simultaneously animate the characters and tweak the environment to find a better frame. This approach is only possible if a single person is doing it. After the camera is animated, I would look through it and only add details that can be seen on screen. I did the same for character animation. Once a certain limb leaves the frame it freezes midair and becomes animated when enters it again. That means if the camera would be tilted just slightly the illusion would break. This method not only saves a lot of time but also helps to focus on what’s important to the story. I then rendered each element separately and imported them into After Effects. There I added some minor effects like the flares and smoke from them. I used masks to add shadows on the characters. And finally on top of everything I added photographic effects like diffusion, chromatic aberration and film grain, which when used subtly adds reality and blends all of the elements together.”
Priorities (2014) de Gints Zilbalodis

Depois de verem o filme, e terem atribuído a vossa interpretação pessoal ao que viram e ouviram, leia a metáfora pessoal que esteve na base do filme,
“The idea is very personal to me. Like the main character in the story, when I have a large goal in mind I spend all of my energy to reach it. For me the goal is to finish the film and for the character it’s the lighthouse. I become so lost in the work that everything else around me seems to be out of focus. But there are good friends like the dog character who remind me to step out of the cave and live a little.”

julho 09, 2012

montagem como poesia

I need one dollar (2012) é pura poesia na forma de montagem audiovisual. As imagens não significam nada em concreto, nem a sua ligação se preocupa com tal, temos apenas uma cidade como pano de fundo que serve de tema a toda elaboração. Gioacchino Petronicce está totalmente focado na visceralidade das sensações que o seu processo de montagem possa desencadear. Não recorre a qualquer montagem metafórica para o fazer, basta-lhe usar a base técnica, o ritmo, e manipulá-lo no sentido de desenvolver uma estilística capaz de atingir os efeitos estéticos desejados. O autor diz-nos,

These images were shot during a travel in New York City. I wanted to create a video on this city which made me feel of incredible feelings. Upon my arrival I was impressed by the visual and sound variety of this city. Really, sound is everywhere.
So I wanted to create this video as an experiment between sound and image where they progress together. I had to try to make that none of them "eats" the other one.
I envisaged this work to create relations and transitions between images by the movement by playing on various sound, break, restart, etc.

I didn't try to tell a real story, it's just about real... For me, this is a visual and sound creation made to share a personal experiment to the people who looks at it. I hope that the effect will work.

Por isso mesmo é que não posso dizer que temos uma montagem de excelência e um design de som de grande qualidade, aqui sou obrigado a chamar montagem ao todo, som+imagem. O que está aqui em causa é todo um trabalho de edição visual e sonora, ou seja no sentido mais clássico da designação de audiovisual. Por isso vejam o filme como bom som.

I need one dollar (2012) de Gioacchino Petronicce