2022 ficará na história como o ano em que a Inteligência Artificial foi reconhecida pelas suas capacidades criativas.
No dia 30 de novembro a OpenAI colocou na rede, em acesso gratuito, um assistente de IA, o ChatGPT, que em apenas 5 dias conseguiu mais de um milhão de utilizadores, alimentados pela curiosidade de contactar com as suas capacidades extraordinárias de conversação. No meio dos muitos defeitos que lhe fomos encontrando —erros factuais, invenção de dados, excesso de confiança, ou falta de “voz” —, todos tivemos de reconhecer que nunca tínhamos visto nada igual. É possível entrar em diálogo com o assistente, conversar sobre a mais ampla gama de assuntos e gerar momentos de profunda partilha empática construída a partir da autoilusão com base na naturalidade, eloquência e compreensão discursiva do assistente.
Mas não foi apenas a conversação que foi tomada de assalto. Meses antes, a 12 de julho, tinha sido divulgado um outro assistente, o Midjourney, depois, a 22 de agosto, era também divulgado o Stable Diffusion da Ludwig Maximilian University de Munich, e ainda a 28 de setembro, a OpenAI disponibilizava a todos o Dall-E 2. Estes três assistentes de IA partilham as mesmas competências de desenho de imagens, com a particularidade de apresentarem resultados originais, simultaneamente muito humanos, como se tivessem sido criados por seres humanos.
"Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business" é um livro de 1985, considerado um clássico dos estudos dos média, tendo servido para elevar Neil Postman ao nível de McLuhan, ambos visionários e profetas dos média. Por esse lado, tendo a concordar, a abordagem é próxima, ainda que Postman seja mais organizado e regrado, ambos tendem para uma escrita que tem mais de épico e menos de académico. Mas se a capacidade de criar boas metáforas é importante, porque ajuda à compreensão do complexo por um maior número de pessoas, não é condição suficiente de análise e criação de conhecimento. Por isso, não admira que os legados maiores de ambos sejam os títulos dos seus livros.
Estudos atrás de estudos [1,2] têm demonstrado a necessidade básica de vivermos em grupo, de partilharmos a vida com outros, de dar conta dos nossos amores, derrotas, dores, ganhos, sofrimentos e vontades. Muitos dos recentes estudos da Psicologia Positiva falam disso como condição essencial para a felicidade, para o bem-estar, mas vêm de trás, vêm dos primeiros estudos da psicologia social e da aferição das motivações humanas [3], levando em conta processos de comparação humana [4, 5] e de aprendizagem social [6] que vêm inscritos em nós à nascença. Mas o modo como vamos vivendo, em que o trabalho assume cada vez mais o lugar central da nossa vida, torna tudo isso complicado. O gráfico abaixo ilustra um conjunto de ideias sobre as quais vale a pena determo-nos.
Por um lado podemos dizer que a ideia de que a vida são os amigos é muito sobrevalorizada, que tudo se resume ao parceiro, e em última análise, estamos mesmo sozinhos, nada a fazer.
Por outro lado, julgo que aquilo que este gráfico nos diz, comparando-o com aquilo que a psicologia nos diz que precisamos, é que as Redes Sociais se tornaram na tábua de salvação deste século XXI. Este processo de individualização, destruição das comunidades alargadas, iniciado no século XX com a industrialização e desenvolvimento acelerados, foi conseguido sem uma destruição de todos nós graças ao suporte dos Mass Media que garantiam um fio de relação humana constante, produzindo a necessária estabilidade emocional. No século XXI fomos mais longe, individualizámos ainda mais, mas ao mesmo tempo criámos as redes sociais que nos permitiram abandonar os media de massas, para voltar à relação direta com pessoas, relação comunitária efetiva, ainda que por via de redes digitais.
É um gráfico riquíssimo para reflexão sobre o que somos realmente, que põe a nu muitas falácias sobre aquilo que acreditamos ser.
Robert McKee é uma das maiores autoridades do guionismo de Hollywood, sendo o seu livro “Story: Substance, Structure, Style and the Principles of Screenwriting” (1997) considerado uma espécie de bíblia para quem escreve para o meio audiovisual. “Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen” (2016) é assim além da sua primeira publicação em 20 anos, um verdadeiro sucessor de “Story”, capaz de aprofundar toda a componente da escrita de diálogo. Entretanto McKee passou todos estes anos envolvido nos seus famosos workshops, aquilo que confessa mais gostar de fazer porque segundo ele: “Life is absurd. But there is one meaningful thing, one inarguable thing, and that is that there is suffering. Fine writing helps alleviate that suffering – and anything that puts meaning and beauty into the world in the form of story, helps people to live with more peace and purpose and balance, is deeply worthwhile.”
É interessante ver como as reações ao livro se dividem entre acusações de academismo e falta dele. McKee é um brilhante analista de histórias, nos mais variados meios, o que faz com que não raras vezes se exceda e entre em processos de sistematização de ideias, conceitos e argumentos que não são muito úteis a quem escreve. Contudo, para académicos como eu, são autênticas pepitas, porque provêm de um olhar único, que funciona como um microscópio de aumento das teias narrativas e sociais plasmadas nas obras. O facto de McKee ser mais artesão que académico, dá-lhe um acesso à arte do fazer absolutamente invejável. Neste segundo livro McKee dedica-se a desconstruir a arte do diálogo nas suas mais variadas estruturas, sistemas e lógicas, usando exemplos amplos e variados para expor as suas teorizações, que vão desde o teatro à televisão, passando pelo cinema. Os casos apresentados, e desmontados, são brilhantemente dissecados, como se despisse os filmes de toda a sua envolvência plástica e nos apresentasse os nós da narrativa completamente nus, dando conta daquilo que considera mais importante no diálogo — o subtexto — ou “the double dimension of dialogue—the outer aspect of what is said versus the inner truth of what is thought and felt.” .
Simultaneamente McKee não deixa de tecer comentários e justificativas sobre o efeito plástico do medium, nomeadamente sobre as diferenças nas capacidades de cada um dos media, o que torna o livro imensamente relevante para todos aqueles que trabalham o âmbito do transmedia.
O trabalho de McKee acaba sendo bastante académico, ainda que metodologicamente siga uma via pouco comum, já que como revela, o método seguido é o de apresentar ideias às suas audiências de criadores, com quem vai depurando e filtrando até que condigam com um sentir da maior parte dos criativos. Na verdade, e tendo em conta tratar-se de arte, o método é profundamente académico, e se serve quem procura fórmulas, ou modelos, para chegar ao maior número de pessoas, acaba afastando aqueles que andam à procura de autenticidade ou da subversão do status quo.
O livro apresenta-se em 4 partes, sendo a primeira de domínio mais académico, no qual é exposto toda a sua teorização sobre a arte do diálogo, e diga-se, a parte que mais me interessou. Depois temos três partes dedicadas a conselhos sobre problemas nos diálogos, sobre o tratamento do diálogo em função dos personagens, e por fim a desconstrução de várias cenas no seu design de diálogo. Vou deixar aqui uma síntese da primeira parte, e aconselho vivamente a leitura de uma entrevista para a Creative Screenwriting na qual ele dá conta de algumas das ideias aqui discutidas:
1 – DEFINIÇÃO do DIÁLOGO, por McKee
Este ponto começa por ser desde logo inovador, não porque McKee olha para todos os media narrativos, mas porque McKee resolve estender totalmente a relevância do Diálogo, e ao fazê-lo eu não podia estar mais de acordo, uma vez que segue completamente o sentido da Pragmática da Comunicação.
“Tradition defines dialogue as talk between characters. I believe, however, that an all-encompassing, in-depth study of dialogue begins by stepping back to the widest possible view of storytelling. From that angle, the first thing I notice is that character talk runs along three distinctly different tracks: said to others, said to oneself, and said to the reader or audience.” “I place these three modes of talk under the term “dialogue” for two reasons: First, no matter when, where, and to whom a character speaks, the writer must personalize the role with a unique, character-specific voice worded in the text. Second, whether mental or vocal, whether thought inside the mind or said out into the world, all speech is an outward execution of an inner action. All talk responds to a need, engages a purpose, and performs an action. No matter how seemingly vague and airy a speech may be, no character ever talks to anyone, even to himself, for no reason, to do nothing. Therefore, beneath every line of character talk, the writer must create a desire, intent, and action. That action then becomes the verbal tactic we call dialogue.” “To say something is to do something, and for that reason, I have expanded my redefinition of dialogue to name any and all words said by a character to herself, to others, or to the reader/audience as an action taken to satisfy a need or desire. In all three cases, when a character speaks, she acts verbally as opposed to physically”
Para explanar melhor esta definição, McKee apresenta uma diferença entre Dramatização e Narrativização de diálogo, entre o diálogo realizado dentro da cena (dramatizado) e aquele exterior à cena — o monologo ou a fala para o leitor/espectador — (narrativizado). Para se compreender esta distinção, McKee faz o que sabe melhor fazer, pega num pequeno diálogo, e dá-o a ler nas 3 formas: "said to oneself", "said to others", "said to the reader". Deixo apenas primeiros parágrafos do exercício.
1) “Dreams run like streams.” Hoary proverbial wisdom, I know you well. And in reality most of what one dreams is not worth a second thought—loose fragments of experience, often the silliest and most indifferent fragments of those things consciousness has judged unworthy of preservation but which, even so, go on living a shadow life of their own in the attics and box-rooms of the mind. But there are other dreams.”
2) “Dreams run like streams.” A proverb I know you’ve heard. Don’t believe it. Most of what we dream isn’t worth a second thought. These fragments of experience are the silly, indifferent things our consciousness judges unworthy. Even so, in the attic of your mind they go on living a shadow life. That’s unhealthy. But some dreams are useful. ”
3) “Glas and Markel sit in a café. As dusk turns to night, they sip after-dinner brandies.
GLAS: Do you know the proverb “Dreams run like streams”?
MARKEL: Yes, my grandmother always said that, but in reality, most dreams are just fragments of the day, not worth keeping.
GLAS: Worthless as they are, they live shadow lives in the attic of the mind.
MARKEL: In your mind, Doctor, not mine.
GLAS: But don’t you think dreams give us insights?”
O Dialogo e o Medium
Ainda na definição, McKee dedica uma boa parte à discussão do efeito do media no uso do tipo de diálogo,
“All dialogue, dramatized and narratized, performs in the grand symphony of story, but from stage to screen to page, its instruments and arrangements vary considerably. For that reason, a writer’s choice of medium greatly influences the composition of dialogue—its quantities and qualities. The theatre, for example, is primarily an auditory medium. It prompts audience members to listen more intently than they watch. As a result, the stage favors voice over image” [assim, cabe ao som transportar a maior parte do diálogo, ou informação, 80/20]. Cinema reverses that. Film is primarily a visual medium. It prompts the audience to watch more intently than it listens. For that reason, screenplays favor image over voice. [Cabe a imagem a maior parte do diálogo: 80/20]. The aesthetics of television float between the theatre and cinema. Teleplays tend to balance voice and image, inviting us to look and listen more or less equally. [Imagem/som: 50/50]. Prose is a mental medium. Whereas stories performed onstage and onscreen strike the audience’s ears and eyes directly, literature takes an indirect path through the reader’s mind.” [Por isso não existe regra, tanto pode ser dramatizado como narrativizado.]
2 – AS 3 FUNÇÕES DO DIÁLOGO “Dialogue, dramatized and narratized, performs three essential functions: exposition, characterization, action.”
2.1. Exposition
“Is a term of art that names the fictional facts of setting, history, and character that readers and audiences need to absorb at some point so they can follow the story and involve themselves in its outcome. A writer can embed exposition in the telling in only one of two ways: description or dialogue.” “Onstage and onscreen, directors and their designers interpret the writer’s descriptions into every expressive element that isn’t dialogue: settings, costumes, lighting, props, sound effects, and the like. Comic book artists and graphic novelists illustrate their stories as they tell them. Prose authors compose literary descriptions that project word-images into the reader’s imagination.”
A exposição é ainda responsável por vários parâmetros da construção narrativa, vitais para a construção de cenas que garantam o total envolvimento do espectador/leitor: “pacing and timing”; “showing versus telling”; “narrative drive”; “exposition as ammunition”; “revelations”; “direct telling”; “forced exposition”. Destes todos, deixo uma das mais relevantes para compreender o que está a acontecer no processo de contar uma história:
“Narrative drive is a side effect of the mind’s engagement with story. Change and revelations incite the story-goer to wonder, “What’s going to happen next? What’s going to happen after that? How will this turn out?” As pieces of exposition slip out of dialogue and into the background awareness of the reader or audience member, her curiosity reaches ahead with both hands to grab fistfuls of the future to pull her through the telling. She learns what she needs to know when she needs to know it, but she’s never consciously aware of being told anything, because what she learns compels her to look ahead.”
2.2. Characterization “The second function of dialogue is the creation and expression of a distinctive characterization for each character in the cast. Human nature can be usefully divided into two grand aspects: appearance (who the person seems to be) versus reality (who the person actually is).”
Deste modo o desenvolvimento de personagens obriga-nos a criar duas facetas: o verdadeiro personagem, e a sua caracterização. A primeira diz respeito aos momentos de tensão e escolha, momentos no qual percebemos que tipo de pessoa é, os valores que se levantam e falam por si, a sua dignidade ou ausência dela. Já para a caracterização McKee apresenta três parâmetros:
“1) To intrigue. The reader/audience knows that a character’s appearance is not her reality, that her characterization is a persona, a mask of personality suspended between the world and the true character behind it (..) Having hooked the reader/audience’s curiosity, the story becomes a series of surprising revelations that answer these questions.”
“2) To convince. A well-imagined, well-designed characterization assembles capacities (mental, physical) and behaviors (emotional, verbal) that encourage the reader/audience to believe in a fictional character as if she were factual.”
“3) To individualize. A well-imagined, well-researched characterization creates a unique combination of biology, upbringing, physicality, mentality, emotionality, education, experience, attitudes, values, tastes, and every possible nuance of cultural influence that has given the character her individuality (..) And the most important trait of all: talk. She speaks like no one we have ever met before.”
2.3. Action “Dialogue’s third essential function is to equip characters with the means for action. Stories contain three kinds of action: mental, physical, and verbal. (..) Mental Action: Words and images compose thoughts, but a thought does not become a mental action until it causes change within a character. (..)Physical Action: Physical action comes in two fundamental kinds: gestures and tasks. (..)Verbal Action: As novelist Elizabeth Bowen put it, “Dialogue is what characters do to each other.” (..) Therefore, before writing a line, ask these questions: What does my character want out of this situation? At this precise moment, what action would he take in an effort to reach that desire? What exact words would he use to carry out that action?”
3 – EXPRESSIVIDADE
O terceiro ponto do método de McKee apresenta-se na desconstrução da expressividade, que McKee faz em três frentes diferentes: conteúdo, forma e técnica.
3.1 Conteúdo
“As you compose dialogue, I think it’s useful to imagine character design as three concentric spheres, one inside the other—a self within a self within a self. This three-tiered complex fills dialogue with content of thought and feeling while shaping expression in gesture and word. The innermost sphere churns with the unsayable; the middle sphere restrains the unsaid; the outer sphere releases the said.”
Aqui entramos pelos reinos da interpretação narrativa adentro, com McKee a levar consigo todas as ferramentas da pragmática e semiótica para ajudar no suporte à construção por via da desconstrução e interpretação que cada leitor faz do que vai enfrentando e construindo mentalmente.
The Said: “The surface level of things said supports the more or less solid meanings that words, spoken or written, directly express with both denotations and connotations. The Unsaid: “A second sphere, the unsaid, revolves within a character. From this inner space the self gazes out at the world. As thoughts and feelings form at this level, the self deliberately withholds them.” The Unsayable: “Deepest yet, concealed beneath the unsaid, the sphere of the unsayable roils with subconscious drives and needs that incite a character’s choices and actions.”
Isto permite McKee chegar à essência do que tem para dizer e definer:
Text and Subtext
“Text means the surface of a work of art and its execution in its medium: paint on canvas, chords from a piano, steps by a dancer. In the art of story, text names the words on the page of a novel, or the outer life of character behavior in performance—what the reader imagines, what an audience sees and hears. In the creation of dialogue, text becomes the said, the words the characters actually speak. Subtext names the inner substance of a work of art—the meanings and feelings that flow below the surface. In life, people “speak” to each other, as it were, from beneath their words. A silent language flows below conscious awareness. In story, subtextual levels enclose the hidden life of characters’ thoughts and feelings, desires and actions, both conscious and subconscious—the unsaid and unsayable.”
3.2 Forma
“The qualities and quantities of dialogue vary with the levels of conflict used in the storytelling (..) Conflict disrupts our lives from any one of four levels: the physical (time, space, and everything in it), the social (institutions and the individuals in them), the personal (relationships of intimacy—friends, family, lovers), and the private (conscious and subconscious thoughts and feelings). The difference between a complicated story and a complex story, between a story with minimum dialogue versus maximum dialogue, hinges on the layers of conflict the writer chooses to dramatize.”
3.2 Technique
“Figurative devices range from metaphor, simile, synecdoche, and metonymy to alliteration, assonance, oxymoron, personification, and beyond. In fact, the list of all linguistic tropes and ploys numbers in the hundreds. These turns of phrase not only enrich what’s said, but also send connotations of meaning resonating into the subtexts of the unsaid and unsayable as well.”
Neste ponto McKee aprofunda questões de paralinguagem, de design de informação — suspense, cumulativo, balanceado — economia (dizer o máximo com o mínimo), pausa e a necessidade do silencio
O livro continua com todo um trabalho de desconstrução e depuração de técnicas — com cenas de "The Sopranos", "The Great Gatsby", "Lost in Translation" ou ainda "O Museu da Inocência" de Pamuk—, através do que McKee partilha uma imensidade de conhecimento sobre a arte do diálogo mas também sobre a arte da narrativa e sua relevância para o ser humano. Para muitos o livro soará formulaico, para mim soa metódico, imensamente sistematizado algo que não é comum nas artes. Diria que McKee, ao usar esta abordagem também já no "Story" foi um dos grandes percursores daquilo que hoje qualificamos como Narrative Design.
Fica uma nota final, a versão audiobook é narrada pelo próprio McKee, o que adiciona toda uma outra camada de interesse à leitura via audio.
Tenho muitas dúvidas sobre o histerismo condenatório que decorre à volta do legado de Michael Jackson em virtude do documentário "Leaving Neverland" (2019). Estive a reunir um conjunto de nomes ao longo da história com rabos de palha, desde Caravaggio (assassinato) e Da Vinci (pedofilia), a Einstein e Pessoa (declarações racistas), ou Heidegger e Hamsun (defensores do nazismo), passando por Picasso ou James Brown (autoritários e violentos), para tecer um argumento geral, mas acabei por desistir da ideia.
"O Tempo protege a Verdade dos ataques da Inveja e Discórdia" (1642), Nicolas Poussin
Cada caso é um caso, e cada pessoa tem níveis de aceitação diferentes em função da especificidade do legado e daquilo de que é acusada. Não é possível criar uma regra fechada que sirva uma análise generalista, pela simples razão de que os atos se opõem, ou seja, temos por um lado pessoas que serviram a sociedade, contribuindo com um legado considerado imensamente rico e relevante, por outro, essas mesmas pessoas cometeram crimes contra valores relevantes dessa sociedade. No fundo, trata-se de colocar na balança da justiça moral da História e chegar a um número que penda para o lado positivo ou negativo, mas como facilmente se depreende, nada disto é passível de medição, acabando por cair no subjetivismo de cada um.
Na verdade, qualquer vida escrutinada ao detalhe — quanto mais impactante e famosa tiver sido, mais escrutinada é, indo da exposição pública de cartas a diários íntimos — não pode encontrar apenas perfeição. Por muito mau que nos soe, e até ofenda, podemos contentar-nos pensando que afinal não passaram de meros humanos, que santos e deuses existem apenas na nossa imaginação.
Poder e interesses múltiplos. É o que existe por detrás da publicação simultânea, mundial e em papel de um livro com mais de 600 páginas, "No Armário do Vaticano" de Frédéric Martel. Todas as edições lançadas a 21 fevereiro 2019. Impressionante.
A Danah Boyd esteve no 2018 SXSW Edu para fazer mais uma keynote brilhante, "You Think You Want Media Literacy… Do You?" (2018). Boyd tem sido incansável na defesa de perspetivas mais abertas para com os usos que os adolescentes fazem dos media, propondo reflexões mais incisivas sobre aquilo que conduz as pessoas a fazerem o que fazem, evitando os julgamentos rápidos, muitas vezes meramente assentes no preconceito. Nesta palestra, Boyd discute o estado atual da sociedade na sua relação com as Fake News, com os Media e com a Produção de Conhecimento.
Boyd vem colocar o dedo na ferida e relembrar que as visões do mundo que cada um de nós carrega consigo não são produzidas por um governo, uma escola, ou um conjunto de autoridades, servem-se também das próprias experiências de cada um, que por sua vez ganharam agora novos canais distribuídos de amplificação oferecidos pela internet.
“For better and worse, by connecting the world through social media and allowing anyone to be amplified, information can spread at record speed. There is no true curation or editorial control. The onus is on the public to interpret what they see. To self-investigate. Since we live in a neoliberal society that prioritizes individual agency, we double down on media literacy as the “solution” to misinformation. It’s up to each of us as individuals to decide for ourselves whether or not what we’re getting is true.”
“I get that many progressive communities are panicked about conservative media, but we live in a polarized society and I worry about how people judge those they don’t understand or respect. It also seems to me that the narrow version of media literacy that I hear as the “solution” is supposed to magically solve our political divide. It won’t. More importantly, as I’m watching social media and news media get weaponized, I’m deeply concerned that the well-intended interventions I hear people propose will backfire, because I’m fairly certain that the crass versions of critical thinking already have.”
Não existem soluções simples, menos ainda os chavões do passado nos poderão indicar o caminho, já que ele se tornou bastante mais complexo. A Literacia dos Media pode ajudar, o Pensamento Crítico também, mas não chega, temos de admitir que não passa de uma gota no oceano da produção de imaginário que cada ser individualmente desenvolve e que tenta inculcar nos que o rodeiam.
“In some online communities, taking the red pill refers to the idea of waking up to how education and media are designed to deceive you into progressive propaganda. In these environments, visitors are asked to question more. They’re invited to rid themselves of their politically correct shackles. There’s an entire online university designed to undo accepted ideas about diversity, climate, and history. Some communities are even more extreme in their agenda. These are all meant to fill in the gaps for those who are opening to questioning what they’ve been taught.”
“Trained on critically interrogating biblical texts, evangelical conservative communities were not taking Trump’s messages as literal text. They were interpreting their meanings using the same epistemological framework as they approached the bible. Metaphors and constructs matter more than the precision of words.”
“If you don’t start from a place where you’re confident that climate change is real, this sounds quite reasonable. Why wouldn’t you want more information? Why shouldn’t you be engaged in critical thinking? Isn’t this what you’re encouraged to do at school? So why is asking this so taboo?”
Quero acreditar que maior conhecimento da História e do Método Científico nos pode ajudar, mas temos de ser humildes para perceber que não chegará a todos do mesmo modo. Temos de aceitar que quanto mais distribuída for a capacidade humana para produzir abstração mental, mais individualizada esta se irá tornar, polarizando muito daquilo que tendemos a ver como não polarizável. Mais ainda, porque a nossa capacidade para racionalizar a realidade é reduzida, dependemos fortemente da emoção para compreender essa realidade, precisamos de âncoras seguras, sei as quais vamos ao fundo. Repare-se neste comentário de Boyd sobre a empatia:
“Empathy is a powerful emotion, one that most educators want to encourage. But when you start to empathize with worldviews that are toxic, it’s very hard to stay grounded. It requires deep cognitive strength. Scholars who spend a lot of time trying to understand dangerous worldviews work hard to keep their emotional distance.“
Na verdade esta foi a grande justificação para a existência de uma Comunicação Social, do desenvolvimento do Jornalismo enquanto 4º poder: conseguir criar um espaço comum no qual todos se reviam, para o qual todos nós podíamos contribuir com a educação que íamos construindo nas escolas comuns. Contudo, a partir do momento em que o espaço comum deixa de existir, em que as fontes são individuais, e com cada um a acreditar apenas em si próprio, os problemas emergem. Sem um fio de conhecimento comum, a realidade do conhecimento e informação, que é abstrata torna-se ainda mais abstracta, deixando-nos à mercê da teoria que mais força emocional tiver.
A realidade física é complexa, mas bastante mais acessível que a "realidade" que todos os dias cada um de nós cria nas suas próprias cabeças. E as mensagens que cada um de nós produz, estão longe de ser inócuas, por mais força mental que se detenha. Para fechar, e recomendando a leitura do texto completo, ou o visionamento da palestra, deixo algo porque me bati nas redes sociais, contra muitas pessoas, que não faziam parte de qualquer seita, informadas e algumas até com créditos científicos, mas simplesmente acreditavam nos seus próprios ideais de sociedade, descurando a realidade de muitos que vivem mais fragilizados ou na ausência das tais âncoras:
“In 2017, Netflix released a show called “13 Reasons Why” (…) But I’m on the board of Crisis Text Line, an amazing service where people around this country talk with trained counselors via text message when they’re in a crisis. Before the news media even began talking about the show, we started to see the impact. (..) At Crisis Text Line, we do active rescues every night. This means that we send emergency personnel to the homes of someone who is in the middle of a suicide attempt in an effort to save their lives. Sometimes, we succeed. Sometimes, we don’t. It’s heartbreaking work. As word of “13 Reasons Why” got out and people started watching the show, our numbers went through the roof. We were drowning in young people referencing the show, signaling how it had given them a framework for ending their lives. We panicked. All hands on deck. As we got things under control, I got angry. What the hell was Netflix thinking?”
Já está disponível o novo livro "Boom Digital? Crianças (3-8 anos) e Ecrãs" (2018) publicado pela ERC. Em 2016 a professora Cristina Ponte lançou um projeto no qual se pretendia conhecer os usos de meios eletrónicos por crianças dos três aos oito anos em Portugal, os resultados surpreenderam e foram publicados no ano passado no ebook "Crescendo entre Ecrãs" (2017). Para este novo livro, a professora convidou vários investigadores para refletir sobre os resultados, aprofundando tópicos como: a educação, a família, a parentalidade, a infância, os media digitais e os jogos digitais.
Agradeço o convite realizado pela Cristina Ponte para participar nesta reflexão, que muito me honra, tendo em conta todo o trabalho que vem realizando nos últimos anos neste domínio da relação entre os media e as crianças. Assim, no meu texto — Jogos digitais na infância — procurei analisar os dados encontrados e contribuir para uma abordagem crítica dos mesmos, nomeadamente desfazer alguns fantasmas e alarmismos que vêm sendo propalados. Interessou-me dar algumas respostas sobre as razões porque geram tanto fascínio os videojogos junto das crianças, e ao mesmo tempo lançar uma abordagem de análise que se desligue da distinção entre género (feminino e masculino), e opere mais a partir da distinção entre jogos competitivos e cooperativos.
Recomendo a leitura do estudo, e dos vários capítulos de reflexão sobre o mesmo, pois servirão para construir uma sociedade mais consciente da realidade, menos receosa e mais capaz de aproveitar o potencial que os media digitais, e os jogos também, possuem na formação das nossas sociedades.
“Stranger Things 2” não difere muito da primeira temporada no que toca ao conceito, diferenciando-se no entanto bastante a nível técnico, desde a escrita à cinematografia. Nota-se um cuidado tremendo, tudo foi muito pensado e analisado, cada detalhe que vemos, ouvimos ou percepcionamos foi lá colocado com um objetivo muito concreto, o que garante a toda a série uma coerência impressionante, e explica em parte o seu sucesso.
A televisão como centro da cultura dos anos 1980
Este caráter técnico muito cuidado acaba por contrastar com o tema de fundo da série, os anos 1980, um tempo em que muito do que se fazia estava longe da perfeição. Mas o trabalho de realização não se limita a repescar ou a prestar homenagens a obras dessa época, toda a estrutura narrativa assenta numa mescla de padrões decalcadas dessas obras. As estruturas mais evidentes surgem desde logo pelo uso do grupo de crianças que partem à aventura ("ET", 1982; "The Goonies", 1985; "Explorers", 1985) a que se junta o padrão do grande mal que veio do desconhecido ("The Evil Dead", (1981) "The Thing", 1982; "Aliens", 1986). Neste caso a série é mais arrojada que por exemplo o filme “Super 8” (2011), pois não se constrange no uso do horror.
Um dos múltiplos postais de promoção da série que citam diretamente filmes de horror, no caso "Aliens" (1986), ao que junta a data prevista de saída, junto ao Halloween.
Os anos 1980 não são os primeiros a ter direito a este tipo de adaptações, no entanto são os que têm ostentado mais sucesso. Por exemplo Netflix produziu uma outra série, “The Get Down”, dedicada aos anos 1970, tendo recorrido ao respeitado cineasta Baz Luhrmann, mas que não passou do episódio 11, apesar de um resultado audiovisual excepcional. Contudo o público alvo dos anos 1970 é muito mais escasso, desde logo porque nessa década a televisão e o cinema ainda não tinham assumido o controlo total da cultura, o que fez com que muitos dos que viveram essa época não tenham acedido a veículos de massificação de cultura. É verdade que existem alguns resquícios dessa identidade massificada nos anos 1970 mas mais no campo musical. Aliás, talvez não seja por acaso que “The Get Down” se baseie na música, no "disco sound".
Série “The Get Down” (2016-2017) da Netflix
Neste sentido, podemos dizer que muito do que alavanca a recuperação da cultura dos anos 1980 se deve ao facto de termos, hoje, as gerações que viveram nessa época a sua adolescência, em lugares centrais de poder, desde as empresas às universidades, passando por tudo o que é comunicação social e produção cultural, mas aquilo que os torna verdadeiramente particulares é o facto de pela primeira vez termos tidos obras de massificação global da cultura, que chegaram a quase todas as geografias e de forma muito rápida, por meio da Televisão. Se olharmos à evolução dos media e à produção cultural que os alimentava, existem pelo menos dois elementos centrais: por um lado, o aumento da relevância da televisão na cena pública, que faz com que aumente a necessidade de maior produção de produtos audiovisuais, em que se inclui a necessidade da música começar a surgir com telediscos; e por outro lado, sendo a televisão hegemónica, e ainda sem o espartilhamento em canais segmentados, os mesmos ideais, valores e identidades vão ser repassados para todos de forma igual. Podemos dizer que os anos 1980 funcionaram como a ponta de um funil, que fez convergir toda a diversidade cultural que vinha de trás. E repare-se como tudo isto vai começar a desaparecer a partir do meio da década dos anos 1990, quando a internet surge e começa a tomar conta dos interesses das gerações que estão nessa altura a crescer.
A semelhança com "Close Encounters of the Third Kind" (1977)
Isto acaba por conduzir “Stranger Things 2” a um paradoxo em termos de media, porque se a maioria da cultura que suporta os anos 1980 na série provém diretamente do cinema (The Exorcist, 1973; Jaws 1975; Close Encounters of the Third Kind, 1977; Halloween, 1978; The Warriors, 1979; Escape from New York, 1981; Poltergeist, 1982; The Thing, 1982; E.T. the Extra-Terrestrial, 1982; Gremlins, 1984; Ghostbusters, 1984; Indiana Jones and the Temple of Doom, 1984; Karate Kid, 1984; The Goonies, 1985; The Terminator, 1984; The Breakfast Club, 1985; Stand by Me, 1986, ver muitasoutras referências e ainda mais), isso só se explica porque a geração que recorda estes filmes, não se recorda de os ter visto nas salas de cinema, mas na televisão. Do mesmo modo, se a série é supostamente uma série de televisão, o media que a suporta é a Web (Netflix), e muitos dos que hoje a veem não usam a televisão para a sua visualização. No fundo temos um produto de televisão que homenageia o legado cultural da televisão, não tendo esta estado na base da produção, nem antes nem depois. Isto está relacionado com o afunilamento cultural do parágrafo anterior, mas merecia todo um estudo per se.
Voltando à série em si, é impossível não falar do modo como exerce a sua atração sobre os espetadores. Já percebemos que o tema são os anos 1980, o cinema, a música e a televisão dessa época. Já percebemos que existe um público muito alargado de pessoas que se identificam com essa época e essa cultura, e que garante à partida o sucesso da série. Este público está hoje na meia-idade, e como disse acima algum dele até bem posicionado na sociedade, mas isso não o impede de se questionar sobre o que conseguiu e não conseguiu, de voltar às dúvidas existenciais que pensava terem desaparecido com o final da adolescência. Para muitos, esta série é o antidepressivo perfeito, já que os leva de volta à idade da inocência, antes do conhecimento dos problemas, das responsabilidades, dos empregos, casa e filhos. De certa forma podemos dizer que a pré-adolescência e adolescência representa para uma parte significativa de pessoas, o eldorado desta vida, o tempo em que a imaginação era tudo, e a criatividade era ilimitada, mesmo que os adultos e professores teimassem em dizer que não. Depois de adultos, mesmo com algumas pergaminhos na parede e sem falta de meios no bolso, tudo parece mais vedado e artilhado à nossa volta. Pode-se fazer muito mais, ir de férias, adquirir a consola ou televisão que se quiser, comer a doçura que nos apetecer, quantas vezes no apetecer, mas a liberdade de que se dispunha, de que o mundo estava a nossa mercê desapareceu, sendo que o que verdadeiramente aconteceu foi a nossa transformação, ganhámos consciência dos limites que a sociedade nos impõe e por isso dos nossos próprios limites. “Stranger Things 2” abre uma janela, ainda que temporária, para esse mundo sem limites.
Por outro lado, e apesar da série ser recomendada para adultos, os seus principais intérpretes são um grupo de crianças, pré-adolescentes, que servem de padrão narrativo em analogia aos filmes dessa época, e acabam por trazer para a frente do ecrã pais e filhos, mas nesta segunda temporada parece existir algo mais. Os pré-adolescentes em cena, não estão apenas a fazer o papel de crianças nos anos 1980, gerando identificação com as crianças de hoje, estão ainda a gerar identificação direta entre os espectadores agora adultos e as suas nostalgias de criança. Existem dois momentos em que isto é muito evidente: a abrir a temporada, no salão de jogos, e a fechar a temporada no baile de finalistas. Em ambos os casos, os miúdos não teriam idade para ali estar, contudo se ali aparecem, é acima de tudo para manipular as memórias que vamos revisitando por meio dos estímulos que as referências cinematográficas vão gerando.
No fundo, “Stranger Things 2” é um cocktail de estímulos desenhado para nos impactar emocionalmente, para nos agarrar através daquilo que mais prezamos nas nossas vidas, as memórias das nossas experiências. Sendo estas memórias um reflexo do que fizemos, mas mais do que isso, daquilo que somos ou daquilo em que nos tornámos. Porque é nestas memórias que as nossas emoções mais profundas se baseiam para nos ajudar a reagir, é aí que estão gravadas as nossas decisões morais, sobre o que correu bem e correu mal, e por isso quando ativadas reagem fortemente. Neste sentido, não admira que tantos e tantos espectadores se digam profundamente afetados emocionalmente pela série.
Cheguei até “All That Fall” através de Elena Ferrante, que se socorre desta peça no segundo volume da saga “A Amiga Genial” para lançar uma discussão existencial entre Lenu, Lila e Nino. Ferrante fixa a conversa em redor de um dos múltiplos pontos discutidos na peça, e apesar de ser algo fugaz é provavelmente uma das partes mais relevantes da peça, já que se liga diretamente ao modo como Beckett desejava que a peça fosse experienciada.
“All That Fall” foi criada como audio drama, uma peça dramática para rádio. Vários foram os criadores que procuraram Beckett para realizar adaptações para palco, entre os quais Ingmar Bergman e Laurence Olivier, mas sempre, ou quase sempre, recusadas por Beckett. Dizia ele:
“Even the reduced visual dimension it will receive from the simplest and most static of readings (..) will be destructive of whatever quality it may have and which depends on the whole thing's coming out of the dark." (fonte)
Ou seja, “All That Fall” baseia a criação e comunicação da experiência na forma do medium. Um dos personagens é cego, daí que toda a peça seja construída para o sentido da audição por meio dos diálogos, música e efeitos sonoros. Cabe ao recetor recriar mentalmente os cenários, espaços e cores. E aqui chego ao destaque realizado por Ferrante, e que me parece ser aquele que verdadeiramente justifica a obstinação de Beckett quanto à não adaptação para palco.
“Mr. Rooney: (..) No, I cannot be said to be well. But I am no worse. Indeed, I am better than I was. The loss of my sight was a great fillip. If I could go deaf and dumb I think I might pant on to be a hundred”, excerto de “All that Fall” de Beckett
“Dan Rooney, she said, is blind but he’s not bitter about it, because he believes that life is better without sight, and in fact he wonders whether, if one became deaf and mute, life would not be still more life, life without anything but life.” excerto de “The Story of a New Name” de Elena Ferrante
O velho e eterno dilema dos sentidos, tão discutido por Sócrates e Platão, sobre o modo como estes deturpam a realidade que nos chega, impossibilitando-nos de aceder à pura verdade. A realidade não é possível através do modo sensível, dizia Platão, tendo por isso defendido a erradicação das artes da República. A elaboração de Ferrante é distinta, já que procura um enaltecer da desistência existencialista da realidade perceptiva, ou seja, uma fuga às dores e obstáculos que a vida nos vai colocando na frente. Já Beckett pelo contrário está mais preocupado em encontrar distintas possibilidades de aceder ao belo, servindo este diálogo num extremar dessa busca.
A peça tem sido bastante trabalhada em ambiente escolar dada a sua imensa expressividade, nomeadamente simbólica. Deixo aqui uma ligação que vale a pena explorar para quem pretenda trabalhar a peça nesses ambientes. A peça pode ser ouvida no YouTube, embora o som não esteja com a melhor qualidade, e por isso pode ser também lida em português online.
Chegou-me por diferentes fontes o documentário “HyperNormalisation” (2016), de Adam Curtis, produzido pela BBC. Fontes que por respeitar me obrigaram a encontrar as 2h46m para dedicar ao visionamento do mesmo. No fim, não posso dizer que tenha sido tempo perdido, mas também não posso deixar de dizer que me senti defraudado e até vítima de uma enorme tentativa de manipulação, o que não deixa de ser irónico, ainda que interessante, tendo em conta que a tese central do documentário assenta na demonstração da manipulação global das massas pela política internacional.
Ao longo de quase três horas Curtis ensaia as mais diversas teorias, que vai suportando totalmente em imagens de arquivo e uma voz off de autoridade. Esta abordagem audiovisual é magistral, já que usa o real como espetáculo para passar a ideia e ao mesmo temo credibilizá-la. Usa um modo discursivo com que as pessoas estão familiarizadas, o do cinema espetáculo mesclado com o da informação televisiva. É difícil escapar à argumentação, apresentada como verdade cabal, única sem margem para dúvida, reforçada por imagens do real, som e vozes coadunantes, ficamos como que hipnotizados e deixamo-nos embalar pela excelência da retórica audiovisual.
Em essência, Curtis defende que o mundo vive dominado por meia-dúzia de políticos que para se manter no poder, engendram continuamente histórias da carochinha (ex. Sistema Bancário, Bolsa, Kissinger, Assad, Kadafi, Bush, Blair, Hussein, ISIS, Putin, Farage e Trump) que servem no adormecimento da sociedade, como ele diz, na defesa de uma suposta “estabilidade”. Curtis defende, que em face da complexidade da realidade, e da impotência para a transformar, os políticos, e o mundo — artistas, juízes, professores, etc. —, têm-se retraído e contado histórias uns aos outros para evitar dizer que “o rei vai nu”. Curtis elabora a teoria com base no fim do regime comunista na União Soviética, em que ninguém acreditava já na capacidade do sistema para dar resposta às necessidades reais da sociedade, mas todos continuavam a querer acreditar nas histórias que falseavam os problemas existentes, criando uma realidade patranha ("fake") em que todos preferiam acreditar e conviver. Este mundo aparente e aceite por todos, foi etiquetado como processo de "hipernormalização", pelo antropólogo Alexei Yurchak, no livro 2005, “Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation”, e é a base de todo o filme, e toda a grande teoria de Curtis.
Diga-se, não é uma má teoria, o problema deste documentário é que peca exatamente pelo pecado que tenta elucidar, o que é no mínimo caricato. Ou seja, ao tentar demonstrar que os políticos, e o mundo, têm criado histórias que fogem à complexidade do real, para hipernormalizar tudo à nossa volta, Curtis acaba a criar a sua própria hipernormalização sobre a hipernormalização, fugindo, ele próprio, à gigantesca teia de complexidades que percorre cada um dos exemplos dados para suportar a sua teorização. Diga-se que ao longo do documentário, Curtis faz leituras muito interessantes, diria mesmo penetrantes e verdadeiros abre-olhos, tais como o fantoche internacional Gaddafi, ou ainda a definição dos perfis e modos de atuação política de Putin e Trump, como “shape-shifters” (constante mudança de forma e objetivos, baralhando tudo e todos). Contudo, outros exemplos como o arco narrativo de décadas criado para explicar o surgimento do ISIS roça a pura mitologia. E isso fica evidente para cada um de nós especialista nas suas áreas. Não especialista em ciência política não sou capaz de medir com concretude o alcance do que Curtis afirma, deixando-me seduzir. Contudo quando ele fala de cinema, internet ou IA fico totalmente estupefacto com o modo como supersimplifica o complexo apenas para garantir que o que se conta corresponde às necessidades da sua história, algo que os académicos conhecem muito bem como viés.
Mas se à partida tudo isto deitaria por terra o menor interesse pelo documentário, antes pelo contrário só o torna ainda mais relevante, já que acaba por se auto-incluir nesse mundo patranha, assumido ou não, sendo um documentário patranha. Mas sendo-o funciona como um objeto que merece toda a nossa cuidada atenção, já que é um objeto meta-hipernormalizante. E por isso a questão que se impõe, é tentar perceber o porquê deste fenómeno, o que encerra enquanto ação humana, como se produz, e com que objetivos; como se tornou tão central ao ponto de contaminar o próprio discurso que o tenta desmistificar.
Ora a resposta advém de um, entre muitos, dos principais fatores escamoteados pela análise de Curtis, os Media, a mediatização do real, dos factos e acontecimentos. As transformações industriais e tecnológicas permitiram transformar o planeta numa aldeia global. Como tal existe uma necessidade vital de manter a aldeia pulsante, ora essa vida só é possível através dos media, já que não se pode juntar as pessoas todas à volta da fogueira, no final do dia ou da semana. Não existe vida sem comunicação, porque a essência do que nos torna humanos é a nossa capacidade social, em essência o diálogo e a troca.
Reconhecida a presença essencial dos media, passamos ao passo seguinte, que são os seus conteúdos. Para que grupos grandes compreendam o teor das mensagens que lhes são passadas, é requerida uma simplificação da complexidade. Quando tal não acontece o grupo simplesmente acaba ignorando, começa a desligar e vai à procura de outra fonte que compreenda, que fale no seu comprimento de onda. Deste modo, mais do que encenar, foi e será sempre vital omitir e simplificar informação, isto é a condição base do processo de contar histórias (storytelling), processo de organização de informação que evolutivamente mais frutos deu à formação das civilizações humanas.
O storytelling é uma tecnologia de simplificação, podemos dizer de normalização do complexo. O processo assenta na selecção de eventos chave, na estripação do secundário e redundante, mas também do impossível ou não explicável. O processo de contar histórias não funciona bem quando, o que se diz, não tem uma causa e efeito, é como se a história ficasse incompleta. Quem está do outro lado, fica sem perceber, e como disse acima, tende a desligar de quem conta histórias sem sentido completo, fechado fácil de apreender. Era assim nos grupos tribais, onde o storytelling germinou para ajudar a transmitir conhecimento de geração em geração, mas também para manter o grupo unido, devoto de uma mesma visão, crente nos mesmos princípios, podemos dizer, sequiosos de normalização. Daí que os políticos se debatam constantemente por encontrar os bodes expiatórios, fantoches, que possam de algum modo fechar as histórias, dar-lhes uma explicação e sentido, que acalme as pessoas e lhes permita avançar.
Curtis ataca a hipernormalização pela ânsia da estabilidade, como se essa fosse um erro. É verdade que a disrupção é bem vista pelos meios artísticos e criativos, sabemos que é dela que brota o melhor de nós, as grandes inovações e avanços da humanidade. Mas daí a extrapolarmos o sentimento de momentos decisivos da sociedade, para um contínuo no tempo, vai uma distância inimaginável. O ser humano precisa da estabilidade, até para se tornar criativo. Como vários estudos têm demonstrado, os momentos de disrupção, só surgem porque momentos de acalmia e enorme estabilidade permitiram formar o conhecimento para o salto no momento de aperto. Se a todo o momento vivermos sob aperto, a criatividade simplesmente definha, basta tentar procurar inovação em regiões que vivem sob a pressão constante da guerra.
Trailer de "HyperNormalisation" (2016) de Adam Curtis
Por fim, uma rápida pesquisa na web, ou visita ao IMDB, dá para perceber que este documentário é uma linha de trabalho já muito experimentada pelo autor. Não há aqui nada de muito novo. São múltiplas as pontas do documentário que ficam soltas, e que Curtis se desculpa com a ideia de que não pretende fazer cinema, apenas criar ideias que as pessoas possam apanhar em qualquer momento que começam a ver os seus filmes. Mas o que Curtis faz é apontar o dedo à sociedade, às pessoas, simplesmente para dizer que estão a fazer algo errado. O problema de Curtis não é não explicar como fazer certo, não sejamos ingénuos ao ponto de esperar que Curtis apresentasse uma 3ª Via para ombrear com Giddens e Gaddafi! Mas, e para além das contradições naturais em teorizações deste calibre, Curtis não tem argumentos para explicar sequer porque é errado. Apontar o dedo, fazem as crianças desde pequenas, desde que começam a perceber a diferença entre si e os outros.
Filme completo, disponível no Youtube temporariamente, até ser retirado. Normalmente apenas visionável no BBC iPlayer.
Li "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley nos anos 1990, tendo perdurado em mim fortes memórias que me permitiam recordar a obra como maior, pela sua qualidade e visão. No entanto, depois de ter voltado ao seu universo, por ter visto o filme homónimo de Burt Brinckerhoff (1980), e ter relido alguns capítulos do livro, concluo que as minhas memórias eram melhores que a realidade.
Livro de 1932 e filme de 1980
"Admirável Mundo Novo" é um livro interessante que se sustenta no valor histórico, tendo surgido antes de "Mil novecentos e oitenta e quatro" (1949) de George Orwell, ainda que depois de "Nós" (1921) de Yevgeny Zamyatin. A escrita não é muito atrativa e o enredo é um tanto ingénuo, segurando o nosso interesse mais pelo modo como vai apresentando a vida do "mundo novo" e contrapondo os seus valores aos nossos.
Filmes de síntese capazes de incorporar o espetador na trama durante o seu visionamento, levando-o a sentir como se fosse verdadeiramente o personagem na tela.
Por outro lado, a abordagem pela sátira acaba por ser contraproducente, no sentido em que evidencia fortemente uma das suas maiores fragilidades, os personagens. Na ânsia por colar os mesmos a figuras políticas da altura, e de lhes tecer críticas, acaba por criar personagens sem identidade, volúveis e inverossímeis, com os quais temos dificuldade em nos relacionar. Se não surge a densidade de um Winston ("Mil novecentos e oitenta e quatro") com quem empatizar, os restantes parecem apenas fazer parte do cenário, nunca funcionando como efetivo contrapoder.
Diria que o melhor, e aquilo que continua a fazer o texto sobreviver ao tempo, além do aspeto histórico, assenta na ideia, na sua vanguarda especulativa, nomeadamente na clarividência em relação ao futuro da ciência e dos media, o que tem mantido a obra como boa referência de estudo e reflexão académica.
O filme, apesar de datado, funciona bastante bem em termos de fidelidade de adaptação, mais porque sendo telefilme permitiu-se uma extensão de três horas, garantido assim tempo para o desenrolar dos detalhes enunciados no livro. Por outro lado, o facto de ser um telefilme, torna o acesso ao mesmo mais difícil, tendo apenas conseguido ver o mesmo por meio de uma velha cópia VHS.
Demorei a escrever sobre este livro porque me obrigou a alguma reflexão mais elaborada, já que por um lado sentia que estava perante um trabalho de escrita e aprofundamento cultural de relevo, mas por outro sentia muitas reticências face à essência daquilo que nos queria dizer o seu autor. Li várias críticas de quando saiu em 1985, li mais algumas à edição comemorativa dos 25 anos de 2010, mas não consegui extrair muito mais do que aquilo que tinham sido as minhas impressões positivas, encontrei pouco esforço de interpretação de algumas das ideias que atravessam o livro. Aproveitei então o Goodreads para ler algumas críticas mais atuais, distanciadas no tempo, por quem como eu não leu o livro quando saiu, e assim totalmente despegado de memórias e nostalgias, e comecei a encontrar aqui e ali, alguns pontos negativos em consonância com as minhas dúvidas. Mas foi ao ler uma entrevista de DeLillo à Paris Review de 1993, que comecei a compreender a razão das minhas impressões.
De forma sintética, e abstraindo do enredo que nos faz virar as páginas, “Ruído Branco” procura respostas para as ansiedades contemporâneas, nomeadamente as produzidas pela velocidade e abundância de mensagens introduzidas pelos media na paisagem diária em que vivemos. Para produzir esta crítica DeLillo cria um mundo a partir de uma pequena cidade americana, na qual seguimos um professor universitário, especializado em Estudos de Hitler. Como rapidamente se depreende esta especialização é o foco da sátira de DeLillo, servindo de ponte para o questionamento final que nos propõe, a angústia do Medo de Morrer.
Capa da edição comemorativa dos 25 anos de "White Noise" da Penguin.
O romance está dividido em três grandes blocos — o primeiro de crítica dos media; o segundo do impacto dos media sobre o modo como vemos a realidade; e o terceiro como tentativa de explicar o que tudo isso representa. A primeira parte é a mais bem conseguida, tanto no conteúdo como na escrita, a erudição das metáforas e uma impressionante capacidade para escalpelizar ações e comportamentos num modo incisivo. A segunda parte é dedicada à ação mas numa lógica concentrada que nos permite aproximar mais da intimidade das relações da família do personagem principal. Por fim, a terceira parte é a mais simbólica, abandonam-se as descrições e a ação, e é tudo focado na explicação dos porquês, com recurso a algum devaneio filosófico.
As primeiras questões que me surgiram tiveram que ver com o facto de trabalhar especificamente na grande área de Estudos dos Media o que me torna mais sensível ao conteúdo. Falo especificamente do momento em que o livro é escrito, há 30 anos, e toda a crítica que foi produzida antes e depois sobre os mesmos problemas identificados aqui por DeLillo. Não tendo nada de errado a apontar, surge-me como um discurso um pouco saturado, mesmo nos anos 1980 já o era, as principais obras de McLuhan são dos anos 1960. Embora tenhamos de admitir que foi nos anos 1980 que a cultura popular se hegemonizou, e por via dos media de massas assumiu ascendente sobre a realidade. Aliás, daí a catalogação de uma nova era, a da pós-modernidade, nomeadamente pela via da tal hiperrelidade, como bem definiram Baudrillard ou Eco, em que o real deixa de existir porque substituído pela realidade criada pelos media.
" — Eles estão a tirar fotografias de gente a tirar fotografias."p. 20
“— Compreendi finalmente que este meio de comunicação social [a televisão] é uma força primordial no lar americano. Fechado, independente do tempo, contido em si mesmo auto-referenciado. É como se, mesmo ali, no meio da nossa sala, um mito estivesse a nascer, algo que fosse já do nosso conhecimento, de uma forma onírica e pré-consciente.” p. 68
De certo modo parece-me que o livro envelhece menos bem, apesar de ser ainda contemporâneo por vezes sobressai como crítica/sátira de uma era já longínqua. Talvez aqui o problema não seja sequer de DeLillo, mas antes da velocidade que se imprimiu à sociedade, nomeadamente por via das tecnologias de comunicação que transformaram drasticamente os media e a nossa relação com os mesmos, e tudo nos pareça já tão distante. Ainda assim gostei de ler, e não foi por aqui que me surgiram impressões menos positivas.
As minhas dúvidas ou incómodos surgem na terceira parte do livro, quando DeLillo entra no modo explicativo, e faz a sua proposta de teorização sobre a crise humanista criada pelos media, em que o acessório se tornou central, em que o mesquinho, o irrelevante ou insignificante passou a dominar o real, e a dominar os interesses das nossas vidas. Para Delillo isto explica-se como modo de fuga ao Medo da Morte. Seria uma tentativa de alheamento de si, de concentração no exterior de nós mesmos, para olvidar os nossos anseios. Diga-se que não discordo completamente desta ideia, muito do cinema e literatura de puro entretenimento que produzimos hoje tem esse desígnio como objetivo, esquecermo-nos de nós mesmos, escapar ao real que nos restringe a liberdade. A minha dúvida, e mesmo contestação à premissa é que não acredito que isso tenha qualquer relação com o Medo da Morte, desde logo porque se essa fosse a condição, então cada um de nós procuraria antes aproveitar o máximo possível antes de morrer, e não investir o tempo em futilidades para esquecer, para apagar o resto do tempo que nos resta por cá.
Verifiquei depois mais algumas referências de textos académicos que a proposta a que Delillo chega é, admitido por ele, influenciada por um texto de grande sucesso dos anos 1970, “The Denial of Death”, e que encaixa totalmente aqui em termos de argumento. Não vou dizer mais nada sobre esse livro, para além do que disse na resenha que lhe fiz logo depois de ter terminado “Ruído Branco”. Dizer apenas que é um texto sem valor na atualidade do conhecimento científico, e que tenho pena que o escritor se tenha deixado enredar por tal argumentação. Apesar disso, e enquanto romance, já que não se trata de um livro científico, DeLillo consegue manter todo o nosso interesse até ao final, assim como a nossa admiração pela forma como vai montando a argumentação com alguns casos e diálogos verdadeiramente lancinantes.
Posto isto quero agora ligar tudo com a entrevista de DeLillo, e explicitar um pouco daquilo que retiro de toda a experiência de leitura e reflexão de “Ruído Branco”, começando desde logo pela primeira pergunta sobre a razão pela qual DeLillo começou a escrever
"Eu queria aprender a pensar. A escrita é uma forma concentrada de pensar. Eu não sei o que penso sobre determinados assuntos, ainda hoje, até me sentar e tentar escrever sobre eles. Talvez eu estivesse à procura de formas mais rigorosas de pensar." [DeLillo à Paris Review]
Foi esta frase que me fez compreender “Ruído Branco”, que passei a ver como ensaio, à lá Saramago, em que uma determinada ideia lhes surge à mente e recorrem à escrita para a compreender, dar-lhe sentido e significado. A semelhança com Saramago termina aqui, já que DeLillo é muito mais orgânico, menos estruturado, mais próximo de Faulkner, como ele próprio gosta de afirmar. Aproximei-me de DeLillo porque esta revelação vai de encontro ao que faço com muitos dos textos que crio não científicos, nos quais começo com uma ideia e a meio do texto dou por mim a pensar algo completamente diferente, encadeado pela exploração mental dos diferentes conceitos que vão aflorando à consciência. O que me ajuda a compreender como se pode partir da discussão sobre os media e chegar ao medo da morte, e mais ainda, como ao longo do tempo pós-escrita, e de novas escritas, vamos vendo as nossas ideias mudar. Ou seja, não assumo aquilo que DeLillo aqui escreveu, como o seu modo único de ver a realidade, mas antes o modo como a viu na altura em que escreveu este livro, apenas isso.
Não menos interessante, e que me aproximou um pouco mais da sua pessoa, foi a resposta à questão sobre a fase da vida em que tinha começado a ler, DeLillo surpreendentemente revela que em criança só lia banda desenhada, e que só começou a ler mais seriamente a partir dos 18 anos. Não me poderia ter identificado mais, embora a minha identificação termine aqui, já que fiquei depois embasbacado pensando na elevada qualidade do seu trabalho, e no como tinha na minha frente mais um exemplo do modo como o talento se constrói, que não nasce, mas também não tem de ser condicionado desde o berço.
“Ruído Branco” tem alguns problemas de conteúdo, muito fruto do tempo em que foi escrito, mas enquanto romance, obra artística, continua intacto, dono de uma escrita soberba capaz de abrir pequenos orifícios na realidade e conduzir-nos pelo seu interior na tentativa de nos ajudar a compreender, perscrutando por dentro.
“Jeu d'influences” é um serious game muito interessante pela forma como consegue traduzir os recursos dramáticos em proveito do jogo e do assunto que pretende tratar. Sendo um jogo sobre processos de gestão de comunicação de crise, consegue colocar o jogador no centro da crise e fazer com que este seja levado a agir e decidir em função dos vários interesses — financeiros, políticos e morais.
Em síntese, somos colocados no lugar de um diretor de uma empresa de sucesso, acarinhada por políticos e banca devido à criação de um novo tipo de betão ecológico, contudo uma noite o nosso sócio mais próximo, o investigador por detrás desse novo betão, comete suicídio. É aí que a crise começa, como gerir a comunicação das razões dessa morte? Motivos profissionais ou familiares? Em que estava ele a trabalhar nessa altura? Como é que os média estão a lidar com o assunto? Como é que lidamos com os média? E os bloggers, como lidamos com eles? E a verdade deve prevalecer, ou a mentira faz parte? E o rumor alimenta-se ou cria-se?
Tudo questões que veremos surgir na nossa frente, muito bem dissimuladas como parte da narrativa, e que nos farão questionar sobre tudo aquilo que fundamenta a gestão da comunicação de crise. Diga-se que com a evolução para o modelo atual de Sociedade de Informação em que vivemos, os assessores e estrategas de comunicação tornaram-se tão ou mais importantes que os jornalistas. Se até aqui a comunicação era toda controlada pelas redações, existia aquilo que chamávamos de gatekeeping, controlo do que se publica e não publica, hoje tudo isso se democratizou, não apenas porque o número de órgãos de comunicação social explodiu via web — blogs, facebook, twitter, etc — mas também porque quem está do outro lado deixou de ser ingénuo, ganhou uma nova literacia e passou a saber gerir aquilo que quer comunicar. No fundo o espaço mediático deixou de ser aquele domínio de aparente transparência, de aparente acesso direto à pura verdade, para se transformar numa arena de luta entre as múltiplas verdades. Isto porque como diz Christophe Reille, gestor de comunicação: "A verdade é aquilo em que a maioria das pessoas acredita."
Durante seis capítulos somos conduzidos por uma narrativa bem desenhada, bem ilustrada e com excelente performance de vozes, tudo sendo complementado por pequenos documentários vídeo que servem para ilustrar os conceitos mais complexos, que podemos decidir ver ou não em função do conhecimento que já detemos sobre o tema. As questões vão surgindo e à medida que vamos agindo e decidindo, três medidores vão contabilizando o nosso desempenho: UBM (unidade de medida de ruído média), isto é, a importância que o caso está a assumir nos média; a Confiança do nosso gestor de comunicação; e o nosso Stress. Se deixarmos o UBM chegar aos 100, o jogo termina; se o nosso gestor de comunicação deixar de confiar em nós (chegar a 0), o jogo termina; e por fim, se ficarmos demasiado stressados durante o processo (chegar a 100) o jogo é terminado também. No fundo temos de fazer um gestão interna das nossas ações, tendo em conta estas três variáveis. A experiência vai levar-nos a situações de dilema moral, criando pressão para a realização de atos potencialmente reprováveis, cabendo-nos decidir ir atrás do nosso gestor ou seguir os nossos modelos mentais do real.
O interessante — e a aprendizagem acontece nestes momentos — surge quando os nossos modelos mentais do que achamos que seria melhor colide com aquilo que o jogo nos apresenta, e faz com que percamos. Aí começamos a perceber que o mundo que pintamos interiormente pode diferir daquele que uma boa gestão de comunicação requer, e é aí que começamos a ganhar noção do que está em jogo nesta literacia dos media.
“Jeu d'influences” (2014) foi criado pela francesa The Pixel Hunt para a cadeia de televisão France 5, com um orçamento incrivelmente magro de apenas 90 mil euros, mais ainda para os níveis franceses, mas que resulta num trabalho surpreendente, nomeadamente no design de jogo, a sua sintonia com o tema retratado, assim como no detalhe artístico e extensão do jogo. O jogo está online e é gratuito, mas está em francês, podem experienciar em “Jeu d'influences”.
Assisti hoje à keynote "Creative Disruption at the Intersection of Arts and Technology Education" da Kathleen Tyner, da Universidade do Texas, proferida na conferência SITE2015 em Vegas, e gostei bastante, apesar de ela não se ter dedicado propriamente ao assunto que tinha elencado no abstract da keynote. Gostei particularmente do seu interesse em McLuhan e no design e produção dos media.
Diagrama "A Multiliteracy Mandala" de Kathleen Tyner
O mais interessante da apresentação foi o seu diagrama "A Multiliteracy Mandala", não apenas o esquema em si, mas a forma como o apresentou, e como lançou às pessoas. [Para saber mais sobre o modelo ler New Agendas for Media Literacy]. Tyner dizia que os colegas a abordavam questionando porque é que o Conteúdo estava no meio, em vez da Audiência, ou outro, e isso motivou-a a reflectir sobre o próprio conceito de modelo. Deste modo ela passou a sugerir às pessoas que a partir do seu modelo, elas re-organizassem os elementos em função dos seus focos de trabalho. Aliás, nas suas aulas, passou a apresentar o modelo em módulos individuais, cabendo aos alunos o trabalho de reflectir sobre a sua re-construção.
Ora isto pareceu-me muito relevante, vindo de uma académica, porque demonstra o encarar de frente da cultura participativa, colaborativa e co-creativa. Ouvir o que os outros têm a dizer, porque nenhum de nós detém todo o conhecimento, nem a razão completa, aprendemos constantemente. Deste modo ela oferece aqui à comunidade uma estrutura modelar, e os parâmetros que a constituem, sendo as pessoas depois responsáveis por desenhar o diagrama final em função das suas áreas de atuação.
Em relação ao modelo em si, concordo com a proposta, nomeadamente a sua frontalidade quanto a termos de encarar a literacia como mais do que mera análise crítica, adicionando-lhe como referiu, a "criação crítica", algo que defendi há alguns anos, num artigo sobre Literacia Mediática. Não me canso de dizer que um filme, ou jogo, é muito mais do que a história que conta, é toda a forma como conta, não interessa apenas o "quê", mas é tão ou mais relevante, o "como".
No final da conferência, deixou a audiência com um caramelo, pelo menos a mim a isso soube! Disse que estava disposta a trabalhar com os colegas para fazer avançar a área do uso destas tecnologias na aprendizagem, que podia trazer a sua equipa, especializada em artes e jogos educativos, mas colocou uma condução essencial para aceitar trabalhar com os colegas, estes têm de trazer paixão, de outra maneira não vale a pena. Acabou tocando na ferida, porque é aqui que surgem muitos dos problemas de projectos académicos que lidam com a criatividade - como os jogos sérios, a gamificação, etc. - quando as pessoas fazem o que fazem porque é uma tarefa, ou porque apenas tem de ser feito, e não porque o desejam fazer.
Ira Glass é um dos mais conceituados apresentadores da rádio americana, um meio no qual trabalha há mais de 30 anos. Ao longo da sua carreira foi agraciado com vários prémios e um doutoramento honoris-causa. A sua capacidade e mestria como contador de histórias é amplamente reconhecida, e é por isso que vale a pena parar para ouvir o que tem a dizer nesta entrevista para Public Radio International, sobre o modo como conta histórias, como as encontra, assim como como se atinge este estado de mestria.
Definição de história nos Media
Na primeira parte da entrevista, Glass fala sobre o que define uma história. Começa por dizer que as histórias nos media são diferentes daquelas que nos habituámos a escrever na escola. Assim Glass define dois blocos de construção para qualquer história a ser contada através dos media,
1 - A anedota, ou pequena história
É uma sequência de acções, "primeiro aconteceu isto… e depois aconteceu isto… e a seguir aquilo… depois ele fez assim… e chegou àquele sítio…"
"The power of the anecdote is so great...No matter how boring the material is, if it is in story form...there is suspense in it, it feels like something's going to happen. The reason why, is because literally it's a sequence of events...you can feel through its form [that it's] inherently like being on a train that has a destination...and that you're going to find something..."
Esta sequência tem de ser gerida por meio de um ritmo, determinada por uma batida (beats) que são as questões que se vão colocando a cada momento: "Porque aconteceu isto? Porque foi ele para lá? Onde é aquele sitio?"
"The anecdote should raise a question right from the beginning. It's implied that any question you raise, you're going to answer it. The shape of the story is that you are throwing out questions, to keep people watching or listening, and then answering them along the way."
Isto que Ira Glass define como a "anedota", é no fundo aquilo que David Bordwell define como "hipothesizing". Bordwell explica-nos que no cinema estamos continuamente a lançar hipóteses mentais sobre o que vai acontecer a seguir. A nossa curiosidade guia-nos e mantém o nosso interesse desperto. Por isso tendo a definir muitas vezes a arte do storytelling como a arte de gerir expectativas.
2 - Momento de reflexão
A sequência de acções, que nos colocou dentro de um comboio em movimento, tem de nos conduzir a algum lado, tem de nos questionar e surpreender, tem de dizer alguma coisa.
"Why am I wasting time hearing this story... you have the two parts of the structure, you have the anedocte and the moment of reflection... and often you'll have an anedocte that just kills, that is so interesting... but in the end it means absolutely nothing... it doesn’t tell you anything new... And sometimes we know we have something here, something kind of compelling but it just doesn’t seem to become together... and often it's your job to be kind of ruthless and understand that either you don't have a sequence of actions or you don't have a moment of reflection, and you're going to need both."
Primeira parte da entrevista
Em suma, os dois blocos que Ira Glass considera centrais para a construção de qualquer história, são os mesmo que se consideram centrais desde o início dos estudos da narratologia, a Fabula e o Syuzhet, ou seja o conteúdo e a forma, a história e o discurso. Aquilo que Glass aqui faz diferente, é que lhes dá um tom específico, não fica pelo discurso seco e objectivo do nosso discurso académico. Glass concretiza como deve funcionar o syuzhet e a que deve responder a fábula.
Encontrar uma boa história
Na segunda parte da entrevista Glass fala dos problemas de se encontrarem boas histórias, ou seja boas fabulas para contar. E apesar de parecer um queixume da profissão, acaba por ser imensamente relevante, já que tão poucas vezes se fala da mesma:
“Often the amount of time it takes to find a good story, takes more time than to produce it.”
Uma frase que vem totalmente de encontro ao que não me canso de repetir, a propósito dos aspectos criativos, da criatividade, e da produção e partilha de conteúdos, que é que nada podemos criar, sem muito antes consumir.
"You’ll have to get rid of a lot of crap before you get to anything special. Because you don’t want to do mediocre work. The only reason you want to do this, is because you want to do something memorable, something special."
A evolução do processo criativo
Na terceira parte Glass vai apresentar um dos pontos altos da entrevista, e que mais tem sido partilhado online a propósito do processo criativo ao longo da vida. Mais uma vez, não é nada de novo, mas sim a forma como é exposto, a sinceridade e autenticidade da apresentação.
"Nobody tells people who are beginners — and I really wish somebody had told this to me — is that all of us who do creative work … we get into it because we have good taste. But it’s like there’s a gap, that for the first couple years that you’re making stuff, what you’re making isn’t so good, OK? It’s not that great. It’s really not that great. It’s trying to be good, it has ambition to be good, but it’s not quite that good. But your taste — the thing that got you into the game — your taste is still killer, and your taste is good enough that you can tell that what you’re making is kind of a disappointment to you, you know what I mean? A lot of people never get past that phase. A lot of people at that point, they quit. And the thing I would just like say to you with all my heart is that most everybody I know who does interesting creative work, they went through a phase of years where they had really good taste and they could tell what they were making wasn’t as good as they wanted it to be — they knew it fell short, it didn’t have the special thing that we wanted it to have. And the thing I would say to you is everybody goes through that. And for you to go through it, if you’re going through it right now, if you’re just getting out of that phase — you gotta know it’s totally normal. And the most important possible thing you can do is do a lot of work — do a huge volume of work. Put yourself on a deadline so that every week, or every month, you know you’re going to finish one story. Because it’s only by actually going through a volume of work that you are actually going to catch up and close that gap. And the work you’re making will be as good as your ambitions. It takes a while, it’s gonna take you a while — it’s normal to take a while. And you just have to fight your way through that, okay?"
"The Gap" (2014) de Daniel Sax, é um pequeno filme que procura dar corpo a este momento da entrevista de Ira Glass. Algo que já tinha sido antes também transposto para visualização tipográfica por David Liu
Glass expressa tudo isto a propósito daqueles que querem criar vídeo, mas serve para qualquer atividade criativa. O que Glass aqui fala é do desenvolvimento da mestria, um processo moroso, o qual ficou conhecido nos últimos anos como as 10 mil horas necessárias para nos tornarmos especialistas. Mas mais uma vez, Glass apresenta isto de uma forma tão vívida, e sentida, que se torna impossível para nós, não nos revermos naquilo que ele diz.
Eu próprio fico a questionar-me, quando há quase 15 anos tomei a decisão de abandonar a realização/edição video, para me dedicar exclusivamente à investigação. Nessa altura, dei-me conta que tudo aquilo que tinha conseguido fazer até ali, estava longe de me satisfazer. Conhecia à minha volta quem fosse capaz de fazer melhor, e na confrontação, não consegui continuar aquele caminho. Talvez tivesse precisado de investir mais tempo, como diz Glass. Por outro lado, não me arrependo. Julgo que tudo passa por decisões que tomamos em certos momentos da nossa vida, e decidimos avançar. Podemos olhar para trás e questionar como teria sido, mas não adianta ficar parado a questionar.