Mostrar mensagens com a etiqueta literatura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta literatura. Mostrar todas as mensagens

janeiro 01, 2023

A metáfora em Lobo Antunes

Não é bem uma novela, é mais um poema em prosa sobre as memórias de um ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa, um militar médico português enviado para Angola. Neste perfil encaixa o próprio autor, António Lobo Antunes, que tendo terminado a licenciatura em medicina (a especialização em psiquiatra só viria depois) foi destacado para guerra colonial em Angola, entre 1971 e 1973. Neste sentido, podemos dizer que se trata de uma obra autobiográfica, carregada de emocionalidade, transposta na forma de uma escrita profundamente poética.

novembro 28, 2022

O Passageiro (2022)

16 anos depois de “A Estrada” (2006), e agora com 89 anos, Cormac McCarthy regressa com uma "portentosa" força narrativa. No campo da história pode haver alguma desilusão porque o enredo avoluma-se, mas nunca se chega a desenrolar. Contudo para um autor que chega a esta idade no ativo, mais importante do que ter algo para dizer, será a forma de o dizer, e nesse campo Cormac impressiona. Temos uma estrutura modular que se vai afirmando por meio de pedaços soltos de exposição que aos poucos vão desdobrando o espaço e o tempo, permitindo-nos reconstruir o mundo-história. Nada disto é novo, o que é novo é a particularidade do método de exposição que é maioritariamente feito por via da conversação. Praticamente tudo o que sabemos, sabemo-lo através das infinitas conversas de Bobby Western com todos aqueles com quem se cruza. Para alguns leitores, são um excesso divagante, contudo são estas conversas o cerne do livro, sem elas não seria possível todo este fluxo narrativo a acontecer sem enredo a desvelar-se. Vamos passando de conversa para conversa, seguindo o protagonista e as suas predileções, e é nelas que a nossa atenção se foca, são elas que nos fazem virar página atrás de página, que nos fazem não só descobrir quem é Western, mas especialmente quem era a o seu pai e a sua irmã. 

junho 05, 2022

Na Terra Somos Brevemente Magníficos

O título, "Na Terra Somos Brevemente Magníficos" (2019), atraiu-me desde que o vi pela primeira vez, talvez por produzir um sentimento paradoxal, no sentido em que soa a pedante e simultaneamente humilde. A experiência de leitura correspondeu, definindo-se como desassossegada, num sentido pessoano, pela profundidade a que o autor consegue levar a descrição do sentir que vai edificando numa escrita de enorme beleza.

maio 28, 2022

"Rebecca" (1938) de Daphne Du Maurier

"Rebecca" (1938) é um livro imensamente apreciado, inicialmente mais pelo público, mas hoje também por alguma crítica. Já o tinha tentado ler, mas não tinha gostado da escrita. O filme homónimo de Hitchcock também não me tinha deixado qualquer marca particular. Mas voltei agora a insistir, em mais uma tentativa para tentar compreender o que gera tanto interesse. Gostei da leitura, nomeadamente a partir do meio, onde o enredo nos agarra e não conseguimos parar de ler, mas no final soube-me apenas a mais uma história de crime.

(Esta edição é de um tempo em que ainda traduzíamos os nomes dos personagens)

maio 22, 2022

Um Reino Maravilhoso

Chega-se ao final desta obra não só com uma enorme vontade de visitar o Reino Maravilhoso, mas também, estranhamente, com uma certa pena de não se ter nascido transmontano! Graça Morais foi por estes dias agraciada com o Doutoramento Honoris Causa pela UTAD, mas Miguel Torga deixou-nos há muito, ambos artistas transmontanos, aqui evocados conjuntamente, Torga com um conto dedicado a Trás-os-Montes e Morais com cerca de 50 pinturas e desenhos. O conto termina evocando outro vulto transmontano, Camilo Castelo Branco.

Um Reino Maravilhoso (2002)

abril 10, 2022

"Shuggie Bain" de Douglas Stuart

Demorou 10 anos a escrever, e isso é mais do que evidente no labor da escrita, não apenas na sua beleza mas no intrincado detalhe com que vai descrevendo cena atrás de cena, representando não apenas o espaço e a ação, mas dando conta do sentir dos vários pontos de vista dos seus personagens. Existe uma sensação de completude, como se cada cena fosse um exercício estudado por Douglas Stuart, trabalhado como se de pequenas jóias se tratassem. Mas não é mera expressão o que aqui temos, nem poderia ser. Ninguém conseguiria chegar a tanto detalhe se não tivesse realmente vivido muito do que ali se conta. Por isso, quando pegamos na história de vida de Douglas Stuart e percebemos o decalque, não é apenas o horror do que nos foi contado que nos toca, o tremor acontece ao perceber que foi possível atravessar tudo aquilo e mesmo assim chegar ao topo do mundo da escrita, acrescentando ainda que levou mais 12 anos a publicar, tenso sido recusado 44 vezes pelas editoras. Se o livro termina como uma dor brutal, o reconhecimento da carreira do seu autor oferece-nos a admiração plena e uma esperança de esplendor máximo.

Sinopse: 1981, Glasgow. A outrora próspera cidade mineira sufoca sob o jugo férreo das políticas de Margaret Thatcher, lançando milhares de famílias para a miséria. A epidemia do álcool e das drogas aproveita para capturar os mais vulneráveis.

GoodReads

janeiro 21, 2022

Primeiras obras literárias

As Primeiras Coisas” (2013) do português Bruno Vieira Amaral (1978) e “Antes de Partires” (2000) da irlandesa Maggie O'Farrell (1972) são obras que parecem não ter nada em comum além do facto de serem ambas primeiras-obras. Para mim, que as li em simultâneo, posso dizer que encontrei vários outros pontos de contacto, ainda que quando aprofundados resultem mais em contraste do que em similitude. No entanto, tratando estes pontos da abordagem e das competências de escrita dos autores pareceu-me suficientemente relevante agregar os dois num mesmo texto. Saliento ainda que ambas as obras foram premiadas com prémios nacionais para primeira-obra abaixo dos 35 anos, Amaral com o Prémio José Saramago, no valor de 25 mil euros, e O’Farrell com o Betty Trask Award, no valor de 20 mil libras. 

janeiro 16, 2022

"Irmão de Alma", ou, "De Noite Todo o Sangue é Negro"

Não há muitos elogios novos que se possam fazer a "Frère d'âme" (2018) (em português, traduzido com base no título inglês, "De Noite Todo o Sangue é Negro") que já ganhou alguns dos prémios literários mais cobiçados por todo o mundo — França (Prix Goncourt des Lycéens (2018)), Itália (Premio Strega Europeo (2019)), Holanda (Europese Literatuurprijs (2020), EUA (Los Angeles Times Book Prize for Fiction (2020)) e Inglaterra (International Booker Prize (2021). 

janeiro 08, 2022

A Filha Obscura (2006)

Ler a "A Filha Obscura" foi uma experiência extremamente estimulante, do ponto de vista do ganho de conhecimento sobre o mundo interior das crises da meia-idade, particularmente, para mim, por me mostrar o lado feminino dessa crise. Mas foi também imensamente estranha, porque senti que estava a ler partes desconhecidas de um universo que conhecia em detalhe, a Saga Napolitana, nomeadamente o último volume "História da Menina Perdida". Nem todos os contornos batem certo, mas começa nos nomes — Leda, Nina, Elena, Gino Vs. Elena, Lenu, Lila, Nino —, passa por Florença onde vive com o marido; num uma escritora, na outra professora universitária; mas essencialmente sonhadoras e fortes numa contínua luta interior com as pressões daquilo que querem ser e aquilo que a sociedade espera que sejam. Como diz Rachel Cusk, "Elena Ferrante escreveu a sua história duas vezes".


dezembro 25, 2021

Milkman (2018)

"Milkman" é brilhante, mas não se oferece a todos do mesmo modo. Facilmente podemos encontrar quem deteste, como acontece com o crítico do NYT, ou quem adore e lhe ofereça o Booker 2018. Na generalidade fala-se de um livro de difícil leitura, mas ser um livro que exige uma leitura mais lenta e atenta não tem nada que ver com ser difícil. Mais, comparando com outros fluxos de consciência, Joyce ou Woolf, é imensamente acessível, muito mais na linha de um bem-humorado Tristram Shandy. Mas se a escrita impressiona, é o ponto-de-vista interior, como se estivéssemos literalmente dentro da cabeça de uma adolescente de 18 anos que enfrenta um mundo feito de conflitos numa Irlanda nos anos 1970, que acaba a marcar-nos.

novembro 27, 2021

"Encruzilhadas" (2021)

"Encruzilhadas" de Jonathan Franzen surge seis anos após o seu último romance, e só por isso torna-se imediatamente digno da nossa atenção e interesse. Tenho muita dificuldade em seguir autores — literatura ou cinema — que lançam obras novas todos os anos, não por não conseguir acompanhar, mas porque não acredito que alguém tenha algo de novo, com substância, para dizer todos os anos. O real requer contemplação, indagação, questionamento e maturação. Escrever por escrever, produzir texto, pode servir para distrair os leitores, mas dificilmente oferece mais do que isso. Nesse campo concreto, "Encruzilhadas" não desilude, e mostra Franzen ao seu melhor nível.

outubro 27, 2021

Pátria ou tapeçaria humana

"Pátria" de Fernando Aramburu é um trabalho impressionante, não tanto pelo seu tema, os efeitos da ETA na sociedade Basca, mas mais pela forma escultural oferecida ao texto que consegue transpor um mundo tremendamente fluído e veloz de oralidade e pensamento para o discurso escrito. Para este efeito contribuem duas grandes abordagens: a variação de voz, entre primeira e terceira-pessoa, que acontece a todo e qualquer momento, dando conta da relação entre os pensamentos interior e público dos personagens; e a variação temporal, presente e múltiplos passados, com o discurso a variar no tempo em função de cada personagem, podendo ser 30 ou 5 anos ou meses, obrigando o leitor a ir atrás, contextualizando, mas contribuindo para a ideia de uma tapeçaria humana que se forma a partir de tiras de vidas. Tendo em conta este labor de Aramburu, e tendo eu acedido à versão portuguesa e espanhola, tenho de dizer que em Português se perde muito do seu efeito. 

julho 25, 2021

Milan Kundera: A Arte do Romance

Milan Kundera diz a determinada altura, neste "The Art of the Novel" (1986), que em julho de 1985 tomou a decisão de não mais conferir entrevistas. Parece um preciosismo, uma excentricidade artística proveniente de um ego excessivamente inflamado. Mas ao ler esta obra percebemos duas coisas: Kundera é alguém muito cioso da forma das suas obras, com a música como berço soube usar todo o seu formalismo para criar uma literatura com formas por vezes quase matemáticas; por outro lado, olhando aos reparos que vai fazendo sobre a imprensa e traduções feitas do seu trabalho nos anos 1970, percebe-se que o cuidado era pouco, nomeadamente com um autor provindo de um país escondido atrás de uma "cortina de ferro". 

Versão audiobook apresentada numa belíssima narração de Graeme Malcolm

julho 24, 2021

2666: uma longa viagem

No final das 1000 páginas podemos fechar o livro e decidir ficar com as impressões criadas ao longo das semanas de leitura, sem realizar qualquer esforço de as organizar, de lhes dar um sentido. Essa vontade pode ser maior quando de frente a livros que são escritos com a intenção de se furtar a essas tentativas de catalogação ou organização de significados, como é o caso de “2666”. Ainda assim, enquanto leitores dotados de competências, por vezes obsessivas, na identificação de padrões e atribuição de significados, torna-se difícil não encetar esse esforço. As linhas que se seguem são assim o resultado da minha experiência de leitura, condensada e verbalizada num conjunto de ideias e parágrafos.

abril 24, 2021

Novelas de Ferrante, Roth e Mann

Trago 3 pequenos livros — "Tonio Kroger" (118p), "Um Estranho Amor" (176p), "Indignação" (176p) —, 3 novelas aparentemente desconexas, mas que fui lendo e colocando na pilha de lidos sem me dar ao trabalho de parar para refletir e escrever. Tendo resolvido colmatar essa falta, percebi que faria sentido juntar a conversa sobre os 3 num texto único, desafiando-me a mim próprio em busca de relações. Desde logo, podem estabelecer-se entre "Tonio Kroger" e "Um Estranho Amor", já que ambas são novelas debutantes dos autores. No caso de "Indignação", sendo o oposto, porque é a 29ª obra de Roth, o seu conteúdo trata um "coming of age", aproximando-o de "Tonio Kroger".

março 21, 2021

A agência de si

As palavras não saem. Deixei passar alguns dias e mesmo assim escrevo e apago, escrevo e apago... Li-o muito rapidamente, não conseguia parar, queria saber o que aconteceria a seguir, mais do que isso, queria saber porquê, e porquê, e novamente porquê. Mas a autora não responde, lança algumas pistas para o ar, mas não se fixa nelas. No final, voltamos ao ponto de partida, só que não, porque a impressão é forte e dificilmente nos deixa. "A Vegetariana" é um livro de 2007, escrito pela autora sul-coreana, Han Kang.

março 14, 2021

O Infinito aberto pela Escrita e o Livro

O Infinito num Junco” é um livro sobre os Clássicos — cultura da Grécia e Roma antigas — focado na invenção da Escrita e do Livro, escrito num tom bastante leve, arredado do formalismo da Academia na qual a autora Irene Vallejo (1979) se doutorou, e que ninguém esperava ver tornar-se num sucesso de vendas em 2020. Em Espanha, além dos múltiplos prémios, saíram mais de 25 edições, e em menos de um ano já vai com mais 30 de traduções — português, francês, holandês, etc. O que tem esta obra para gerar tanto interesse?


fevereiro 10, 2021

Clássicos: O Livro de Jó

“O Livro de Jó” faz parte dos “Livros poéticos e sapienciais” do Antigo Testamento, e terá sido escrito entre o VII e o IV séculos a.C., sendo um dos livros da Bíblia cristã mais amplamente citados dentro e fora do contexto religioso. Santo Agostinho cita-o, Tomás Aquino declara a história verdadeira, Martinho Lutero usa-o para definir a santidade. Na literatura, cita-se como a primeira grande obra existencial servindo depois, ao longo de séculos, a múltiplos autores na evocação do significado do humano — de John Milton (“Paraíso Perdido”) a Carl Jung (“A Resposta a Jó”), passando por Dostoiévski (“Os Irmãos Karamazov”) ou Kafka (“O Processo”) ou mais recentemente Terrence Malick (“A Árvore da Vida”). O núcleo do texto assenta no questionar da justiça ou moral divinas, ou como a teologia prefere definir: “o problema do mal” que se equaciona segundo a questão: “Por que sofrem os justos?"

"Filhos e Filhas de Jó desiludidos por Satanás" (1826) gravura de William Blake 

fevereiro 04, 2021

A luta de quem o quiser ler

Estou a ler “A Minha Luta”, paro e fecho o livro, levanto-me vou à cozinha e olho pela janela, vejo a oliveira ainda jovem a querer dar ares de si. Abro o armário tiro uma caneca branca alta e esguia, encho-a com água até meio, coloco-a no micro-ondas. Abro o frigorífico tiro o leite, apanho o vidro de café, pouso ambos na mesa. O micro-ondas toca, abro a porta tiro a caneca ouço o borbulhar da água que se evapora da fervura, pouso-a na mesa. Aparece a Cookie, abana o rabo, dou-lhe uma festa na cabeça enquanto abro o vidro de café. Ela não parece satisfeita, viro o café sobre a taça batendo ligeiramente com o dedo no fundo do vidro para que entorne a quantidade certa. Olho novamente para ela, ela olha para mim, quer dizer-me algo. Vou até à janela ela segue-me contente, abro-a e ela sai a correr, ladra para a árvore alta do vizinho de onde saem chilreios. Está frio, volto a fechar a janela bebo um gole de café, sinto o calor da taça nas mãos, volto ao escritório. Sento-me no sofá, duas almofadas de cada lado, olho para a capa de “A Minha Luta” volto a pegar-lhe leio mais algumas páginas volto a parar e a fechar. Olho pela janela e interrogo-me, "porque continuo a ler-te?"

janeiro 23, 2021

“Retrato de Uma Senhora” (1881) de Henry James

“Retrato de Uma Senhora” (1881) é considerada a obra central do legado de Henry James. A mim serviu de porta de entrada, ficando a conhecer o mesmo, mas apesar de alguma admiração suscitada, deixou-me sem motivação para o continuar a ler. James realiza um trabalho soberbo de análise dos processos da consciência humana, na senda do que já nos tinha dado Balzac e Dostoiévski, capturando a nossa atenção ao longo de páginas e páginas de escalpelização dos mundos interiores dos seus personagens. Diga-se que James era irmão de William James, um dos grandes pioneiros da psicologia. O problema surge no conteúdo, nos personagens trabalhados, pela pertença à aristocracia, ou a uma burguesia muito próxima, que torna aquilo que se conta muito pouco interessante.