Os
supercuts (montagem acelerada de pequenos trechos audiovisuais que procura isolar elementos visuais ou sonoros de forma encadeada) massificaram-se com a distribuição facilitada pela internet, mas foi um processo que se iniciou com o processo de digitalização do cinema, que veio criar novos meios de acesso aos artefactos fílmicos. A facilidade com que hoje podemos aceder a dezenas de filmes, e rapidamente podemos cortar, colar, comparar, integrar, reinterpretar mudou radicalmente o modo como podemos atuar sobre a imagem em movimento. Além disto o conhecimento colectivo gerado pela rede facilita o processo de busca, identificação, e recordação. Assim como facilita os processos colaborativos de discussão e partilha dos trechos a trabalhar.
Tendo em conta a enorme quantidade de
supercuts que foram aparecendo nos últimos anos, podemos dividir os mesmos em dois grandes tipos, os informativos / educativos e os de forma / entretenimento. Sobre os segundos pode-se encontrar muita coisa no sítio
supercuts.org, tal como
The End,
Apocalipse,
Twin Towers. Sobre os primeiros discutirei agora em maior detalhe.
Supercut do IMDB Top 250
Alguns criadores têm surgido e têm captado a nossa atenção, não apenas pela minúcia e qualidade técnica do seu trabalho, mas também pelo lado conceptual do mesmo. De um lado temos
supercuts informativos como aqueles que é hábito aparecerem no final de cada ano, que resumem em
5 ou 6 minutos um ano inteiro de cinema ou o recente exemplo do
IMDB Top 250. No campo mais educativo temos trabalhos de muito maior alcance, como são os
supercuts criados por Kogonada, que trabalham sobre um determinado aspecto estético cinematográfico, e o colocam em evidência, levando-nos a ver para além da mera crítica textual, realizando um trabalho verdadeiramente pedagógico. Kogonada é um ex-estudante de doutoramento, na área de estudos fílmicos mais em concreto sobre Yasujiro Ozu, mas que decidiu abandonar para se dedicar a fazer os seus próprios filmes. Numa
entrevista dada ao Creators Project, Kogonada refere que aquilo que busca nos seus trechos, são as marcas autorais de cada criador,
Well, I’ve been a cinéphile for some time, and I still believe in the auteur. So I’ve noted tendencies in certain filmmakers for a while. The truth is, there are not a lot of filmmakers, certainly in the US, that have a particular aesthetic. I own a lot of the works from directors that, I think, have a distinct voice and style. For me, it’s been a matter of contemplating which particular technique from these directors would cut nicely together (with many of these auteurs, it’s not just one technique you could highlight, but a number of them). I’m less interested in documenting every example of a particular technique in the work of a director, then I am putting together something that is both attuning and visually interesting.
O que é relevante no trabalho de Kogonada é a forma como este consegue desenvolver um olhar clínico para extrair as semelhanças estéticas dentro das obras de cada autor, e dá-las a ver com tanta clareza. O trabalho sobre a perspectiva,
One-point Perspective, em Kubrick é absolutamente magistral. Apesar daquilo que Kogonada nos traz não ser propriamente surpreendente, já que ainda recentemente aqui tínhamos falado sobre
movimentos e espaços impossíveis na obra de Kubrick. Este supercut consegue ainda assim trazer nova luz sobre a obra de Kubrick, plasmando na nossa frente a realidade desconstruída do seu trabalho obsessivamente estilístico. Exatamente o mesmo podemos ver no trecho sobre design de som nas obras de Aronofky.
Kubrick // One-Point Perspective (2012) de Kogonada
O que estes vídeo-ensaios fazem é chamar a atenção para motivos e detalhes que só quem estuda os autores se apercebe. Alguns podem até nem passar completamente desapercebidos, mas a vantagem de um
supercut é poder ver o elemento dissecado em vários obras do mesmo autor, e assim poder conceptualizar mais detalhadamente o alcance estilístico de um determinado efeito num autor. Isto permite-nos perceber melhor as obsessões e manias dos criadores, para assim conseguirmos compreender as suas motivações criativas.
Sounds of Aronofsky (2012) de Kogonada
Finalmente julgo que estes
supercuts colocam a nu algumas questões que me incomodam desde sempre na academia no seio dos Estudo Fílmicos, e que passa por analisar o meio cinematográfico através do mero texto. Como podemos ver aqui, estes dois artefactos de Kogonada assumem um valor que supera intensamente qualquer texto que tenha até hoje procurado dissecar estas propriedades em ambos os criadores - Kubrick e Aronofsky - porque usa exatamente a mesma linguagem da obra analisada. Nesse sentido o seu discurso está muito mais próximo da “realidade” do artefacto analisado, cometendo muito menos “erros” de tradução na análise do audiovisual para o mero textual.