dezembro 24, 2022

A Torre dos Segredos (2022)

O título original — "A History of Water" — não faz muito sentido, porque não explicando do que trata, também não aproxima o leitor do sentimento geral da obra. Ainda que se possa dizer que a obra se foca em dois viajantes da era dourada das descobertas marítimas portuguesas: Luís de Camões (1524 - 1580) e Damião de Góis (1502-1574). Mas o sentimento é claramente melhor captado pelo título português — "A Torre dos Segredos" —, que não só evoca o relato das particularidades das vidas desses dois viajantes, mas denota também a presença central da Torre do Tombo, a torre onde desde 1378 a história de Portugal foi sendo escrita.

O livro é extremamente interessante por nos apresentar um olhar de fora, o de Edward Wilson-Lee, um académico de Cambridge, recordando um outro livro de outro britânico, "A Primeira Aldeia Global – Como Portugal mudou o Mundo" (2008) de Martin Page, também sobre o renascentismo português. Contudo, o trabalho de Wilson-Lee destaca-se por se focar em dois personagens muito particulares da nossa história raramente antes colocados lado a lado.

Camões na prisão de Goa (1556) de autor anónimo

Dos dois, Camões é o mais popular, Damião é o mais académico. Ambos lidaram com o mundo exterior, com as novas e distintas culturas, e cada um à sua maneira teve de aprender a lidar com o embate das diferenças, sendo sobre esse embate que este livro se foca. Damião bateu de frente com o reformismo da igreja pela Europa e África afora. Camões encontrou todo um novo mundo de deuses e morais, da India à China. Ambos acabariam por se aproximar na forma como iriam interiorizar esse novo mundo com as visões ditadas no seu país, fazendo-o de forma profundamente dissimulada para evitar represálias ao voltar a Portugal.

Retrato de Damião de Góis (séc. XVI) por Albrecht Dürer

O livro apresenta algumas fragilidades na escrita, com frases que por vezes nos perdem, porque iniciam a falar de algo que só será detalhado mais à frente. Funcionaria bem se o contexto apresentado fosse suficiente, mas não o é, também porque se trata de um livro pequeno para descrever tanto mundo. Ainda assim, o essencial da mensagem é não só extremamente relevante para compreender melhor aqueles tempos, mas também para compreender como se constrói a verdade que vamos encontrando nos livros de história que vamos lendo. 

Não posso deixar de dizer que me surpreendeu, em parte, a descrição da pessoa de Camões, alguém que raramente é apresentado em Portugal como rufia, mas que tornou mais claro para mim o modo como surgiu a audácia para criar uma obra tão arrojada. Por outro lado, Damião sai um pouco menos bem tratado, ainda que imensamente respeitado pela elite intelectual europeia, falta algo sobre a sua dimensão criativa, parecendo não ter conseguido nunca sair de baixo dessa elite.

3 comentários:

  1. Obrigado Nelson pelas suas resenhas, quando versam livros, procuro não perder uma.

    1) Acho que já lhe tinha dado conta da minha admiração sobre a sua capacidade de leitura. E da velocidade com que lê. O Nelson já me disse que aproveita muito o tempo dispendido em transportes, para ouvir audio-books. Em tom de brincadeira, acho que à noite quando se deita, põe os auscultadores e o seu cérebro ou o subconsciente processa os livros durante o sono :)

    2) É gratificante ver intelectuais estrangeiros produzirem obras e dissertarem sobre vultos portugueses da nossa história. Sobre Pessoa, então, há imensos. E interrogo-me se os nossos vultos da actualidade também serão objeto de semelhantes trabalhos e interesse no futuro. Tenho dúvidas... mas vai-me dizer que há exceções. Em que temáticas? Neurociência? Literatura? Talvez.

    Desejo-lhe um Bom Natal, para si e família.

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    1. Vou lendo, não tanto como queria. Não tem muito que ver com velocidade, tem mais que ver com planeamento e gestão de tempo.

      Sim temos o António Damásio que é um desses vultos nas Neurociências. Temos o Saramago na literatura. O Guterres na ONU. A Paula Rego nas artes. A atual ministra da Ciênca, a Elvira Fortunato. Etc. etc.

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