março 24, 2020

“O Mar, o Mar” de Iris Murdoch

“O Mar, o Mar” (1978) é um romance feito de múltiplas camadas concebidas num entrosamento de modos, o explícito, ocupado com as necessidades narrativas de manter a história viva e apelativa ao longo de centenas de páginas, e o implícito, de questionamento reflexivo inerente à veia filosófica da autora. Murdoch foi professora de filosofia na Universidade de Oxford, sendo reconhecida tanto pela sua ficção como pelo seu trabalho filosófico. Dito isto, o livro não é nenhum tratado de filosofia, mas não deixa de ser uma obra imensamente densa, talvez até mais pela profundidade descritiva do que propriamente pelas argumentações. Nesse sentido, a escrita de Murdoch recorda Proust através do modo como descreve cenas interiores, pensamentos e memórias, na sua miríade de detalhes, como avança e recua dentro dos personagens, pondo a nu a diferença liminar entre o real exterior e alegadamente objetivo, e o mundo subjetivo criado na cabeça de cada um de nós.
O protagonista é um encenador de teatro, célebre, que na entrada da idade de reforma se retira de Londres para habitar sozinho, numa casa à beira-mar completamente isolada, sem eletricidade nem água. Apesar de desejar estar sozinho, Charles Arrowby acaba por encontrar muitos dos principais personagens da sua vida, tanto recente, como da sua infância, o que vai provocar enormes tumultos interiores, que tornarão evidente o tipo de pessoa que temos em cena, dando a entender que existe ali pouco que se possa qualificar de boa pessoa, mas no entanto vamos avançando e compreendendo que má pessoa também não é, porque no fundo é apenas um humano. Murdoch penetra pelo pensamento de Arrowby adentro e dá-nos a ver e a sentir o mundo da indecisão, da incerteza, da dúvida, do questionamento e ao mesmo tempo o da certeza, do autoritarismo, do desprezo e da discriminação. A leitura senta-nos no ombro do personagem e deixa-nos ouvir e sentir tudo o que ele pensa, o que acaba por inevitavelmente se colar a nós, às nossas próprias incertezas e desejos. Não admira que Murdoch seja comparada a Dostoiévski ou Tolstói, ou nutra grande amor por Shakespeare.

A escrita apesar de apresentar um vocabulário acessível é bastante densa, mas é exatamente por meio dessa densidade que se produz uma aura reflexiva que nos transporta continuamente para o domínio do pensar. Apesar de toda a ação se passar numa casa junto a uma praia de rochedos em que os personagens podem banhar-se, passamos a maior parte do tempo dentro de ideias, quase desligados da realidade espacial-temporal, com muitas cenas a fazer-nos recordar os mundos-história dos filmes de Ingmar Bergman.

Existem algumas partes que me parecem interessantes reter, nomeadamente o modo como olham para a arte, no caso particular do teatro, mas também como discutem a nossa ilusão de realidade, ou ainda como nos introduz à discussão dos nossos anseios e desejos. Aliás, para mim, todo o livro acaba sendo isso, uma introdução aos problemas da crença no desejo de Ser. Porque passamos vidas inteiras em busca do nosso próprio eu, de uma suposta felicidade, sem considerar que essa mesma busca, ou essa mesma felicidade, pode não corresponder àquilo que verdadeiramente queremos, mas apenas àquilo que nos parece que verdadeiramente desejamos. É daqui que emergem as maiores incertezas sobre nós mesmos, somos alguém, mas não sabemos que alguém é esse que somos, temos intuições, fazemos inferências e lançamos suspeitas, mas ao longo das nossas vidas vamos aprendendo que muito daquilo porque tanto ansiámos e acabámos por conseguir afinal não era assim tão importante...

Deixo alguns excertos em inglês, a única versão digital que tenho, apesar de ter lido o livro na edição da Relógio d'Água numa tradução para português de José Miguel Silva.

Sobre o teatro:
“The theatre is an attack on mankind carried on by magic: to victimize an audience every night, to make them laugh and cry and suffer and miss their trains. Of course actors regard audiences as enemies, to be deceived, drugged, incarcerated, stupefied. This is partly because the audience is also a court against which there is no appeal. Art’s relation with its client is here at its closest and most immediate. Drama must create a factitious spell-binding present moment and imprison the spectator in it. The theatre apes the profound truth that we are extended beings who yet can only exist in the present. It is a factitious present because it lacks the free aura of personal reflection and contains its own secret limits and conclusions. Thus life is comic, but though it may be terrible it is not tragic: tragedy belongs to the cunning of the stage. Of course most theatre is gross ephemeral rot; and only plays by great poets can be read, except as directors’ notes. I say ‘great poets’ but I suppose I really mean Shakespeare. It is a paradox that the most essentially frivolous and rootless of all the serious arts has produced the greatest of all writers.”
Nós e a realidade
“We are such inward secret creatures, that inwardness is the most amazing thing about us, even more amazing than our reason. But we cannot just walk into the cavern and look around. Most of what we think we know about our minds is pseudo-knowledge. We are all such shocking poseurs, so good at inflating the importance of what we think we value.”
“Time can divorce us from the reality of people, it can separate us from people and turn them into ghosts. Or rather it is we who turn them into ghosts or demons. Some kinds of fruitless preoccupations with the past can create such simulacra, and they can exercise power, like those heroes at Troy fighting for a phantom Helen.”
“in a few weeks or a few months you’ll have run through it all, looked at it all again and felt it all again and got rid of it. It’s not an eternal thing, nothing human is eternal. For us, eternity is an illusion. It’s like in a fairy tale. When the clock strikes twelve it will all crumble to pieces and vanish.”
“The worshipper endows the worshipped object with power, real power not imaginary power, that is the sense of the ontological proof, one of the most ambiguous ideas clever men ever thought of. But this power is dreadful stuff. Our lusts and attachments compose our god. And when one attachment is cast off another arrives by way of consolation. We never give up a pleasure absolutely, we only barter it for another.”

Nota quantitativa no GoodReads.

março 14, 2020

COVID-19: comunicação de ciência

Nos últimos dias, quase todos vimos o diagrama animado "Flatten the Curve" (alisamento da curva), que relaciona o número de doentes com COVID-19 com o capacidade de resposta dos hospitais em cada momento. A razão porque o temos visto tantas vezes tem mais que ver com comunicação de ciência do que com ciência. Ou seja, o gráfico foi um dos melhores elementos de comunicação multimédia elaborados nas últimas semanas para o combate preventivo requerido por médicos e investigadores.
Gráfico 1, baseado numa proposta preventiva para evitar o que aconteceu em Itália e Wuhan

O diagrama surgiu pela primeira vez no dia 8 de março na revista online, The SpinOff, da Nova Zelândia, num artigo escrito pela professora de microbiologia Siouxsie Wiles, no qual dava inicialmente conta do surto na cidade de Wuhan, recorrendo a gráficos científicos, como os abaixo. Após essa discussão, propunha uma resposta comunitária, baseada num artigo de Anderson et a. (2020), publicado na Lancet, mas também em práticas que vêm sendo propostas há décadas, e que consistia na ideia de todos contribuirem, aumentando os cuidados de higiene, para assim se conseguir baixar ou alisar a curva de casos, para que os hospitais conseguissem dar resposta a todos os doentes graves em tempo útil. Essa solução foi então trabalhada pelo ilustrador Toby Morris, acabando no gráfico que hoje todos conhecemos como "Flatten the Curve" (no topo).
Gráfico com os dados do surto do vírus em Wuhan. Para consumo de especialistas.
Gráfico criado a partir das ações de controlo do surto em Itália. Para consumo de especialistas. [Fonte]

Da análise do diagrama animado e comparativo com os gráficos criados exclusivamente por investigadores para consumo da comunidade científica, temos vários pontos a salientar:
  1. Simplicidade: diminuição da quantidade de informação presente em redor das curvas do gráfico.
  2. Movimento: a animação torna realista o efeito no tempo da mensagem, produzindo evidência e eficácia comunicativa.
  3. Forma gráfica: uso de traço e cor cartoonescos, criam proximidade e reconhecimento de formas, levando a crer que é algo que podemos compreender.
  4. Empatia - Por fim, não se limitaram a apresentar as duas curvas, introduzirem dois personagens que servem para dar indicações, mas mais do que isso, servem para criar empatia com algo que é profundamente abstracto, os diagramas e números.
O gráfico tornou-se representativo das políticas de ataque e prevenção sendo hoje usado como ilustração das mesmas pela Wikipedia, na página que reune toda a informação sobre a pandemia. Entretanto, como surgiram vários questionamentos sobre esta resposta preventiva, nomeadamente sobre a intensidade de ação e efeitos no tempo, Wiles voltou a trabalhar com Morris, agora baseados nos modelos usados por Singapura, Coreia do Sul e defendidos por movimentos internacionais como #StayTheFuckHome. Para tal, adaptaram o primeiro gráfico para ilustrar o impacto de diferentes medidas no tempo, intitulado Stop The Spread (ver abaixo), que foi publicado hoje no TheSpinOff.
Gráfico 2, baseado em modelos preventivos implementados por Singapura e Coreia do Sul.

março 08, 2020

Da Natureza das Coisas

De Rerum Natura” é a obra-prima do poeta-filósofo Tito Lucrécio Caro (94-55 a.C). Se quiserem saber mais sobre a história e relevância deste texto que quase se perdeu nos meandros das parcas bibliotecas da Idade Média, aconselho vivamente a leitura de “The Swerve: How the World Became Modern” (2011) de Stephen Greenblatt. Mas se foi por meio de Greenblatt que me iniciei na leitura de Lucrécio, a quem agradeço, foi por meio da belíssima tradução de Agostinho da Silva (1962), para prosa em português, que cheguei ao conhecimento das palavras e pensamento de Lucrécio. Dizer ainda que se a obra se apresenta como poema, ele é mais porque é também ensaio, não apenas filosófico, mas também científico, e por isso não admira todo o ardor que Montaigne sentia por Lucrécio, explicando também o facto de se ter passado a designar a obra como poema-didático. Em suma, podemos dizer que a obra de Lucrécio é talvez o primeiro trabalho de sempre de Comunicação de Ciência. Mais do que filosofar, argumentar ou calcular, Lucrécio estava focado em dar a conhecer as ideias dos seus mestres — Demócrito (460-370 a.C.) e Epicuro (341-270 a.C.) — não se tendo poupado em esforços de comunicação, nomeadamente de persuasão, o que explicará o facto de ter sido escrito em verso.
Ilustração de Jennifer Luxton

Para além do impacto desta obra nas ideias dos períodos da Renascença e do Iluminismo, discutido por Greenblatt, é talvez ainda mais importante, porque responsável por esse impacto, o facto de ser o meio que permitiu que o pensamento de Demócrito e Epicuro tivesse chegado até nós. Ambos os pensadores são hoje imensamente reconhecidos no modo como anteciparam uma visão do mundo pós-religião, humanista, centrado no pensamento científico, nomeadamente pelo atomismo e o materialismo. Contudo, a maior parte dos seus escritos perderam-se, tendo restado o trabalho de Lucrécio como portador. Antes de avançar sobre o livro em si, a escrita e estrutura, devo realizar uma breve discussão destas correntes de pensamento, não apenas por serem o núcleo do poema de Lucrécio, mas por serem o núcleo daquilo que hoje assumimos como modo humanista de compreender o mundo que nos rodeia.

Comecemos por compreender que Demócrito estava nas antípodas de muitos dos que se dedicavam a compreender a realidade, entre os quais, Platão e Aristóteles. Para estes últimos, a realidade requeria explicações, sentido e significado. O mundo não poderia simplesmente existir, não se pode ser sem um propósito, uma razão ou uma causa última. Daí que os Deuses nunca tenham abandonado o Olimpo, nem Roma, tendo apenas se monoteisado e aguardado quase dois milénios para que a ciência os começasse a retirar da equação. Vale a pena releitura de “História da Filosofia Ocidental” (1945) de Russell.

Demócrito defendia um mundo constituído por pequenas e indivisíveis partículas, a que deu o nome de átomos. Nestes residiria a componente última e explicativa da realidade. Não adianta procurar além do mundo físico, pelo menos sem antes compreender esse mundo. Neste sentido, Demócrito propõe o materialismo por meio do mecanicismo, questionando: que causas dão origem a cada evento? Se nos centrarmos em saber como acontecem as coisas, como estão interligadas, e compreendermos como a sua interdependência faz o mundo avançar, deixaremos de procurar causas externas sem qualquer sustentação empírica.

Claro que podemos sempre questionar: porquê átomos indivisíveis? E é aqui que Lucrécio faz a sua melhor investida, oferecendo uma argumentação sólida na defesa do atomismo de Demócrito, sustentado no materialismo de Epicuro. Assim, temos que tudo no mundo se desmorona, tudo decai, nem mesmo as pedras mais duras resistem à força da erosão da água e da passagem do tempo. As coisas tendem a misturar-se, tal como acontece com a lama que surge da mistura entre terra com água, que depois nos garante os adobes e tijolos, até que tudo volta a desintegrar-se. No entanto, tudo aquilo que se desintegra tende a dar novamente origem a coisas iguais a si. Existe um ciclo que se mantém inalterado, de decadência e renascimento, que contrasta com a expectável ideia de tudo decair no tempo até ao infinito. Porque não temos um universo constituído por mero caldo de grãos? Para Lucrécio, porque coisas nascem de outras iguais a si, tal qual sementes, as coisas possuem em si determinadas configurações capazes de oferecer futuras e concretas estruturas. São essas configurações últimas, não divisíveis que preservam a ordem da realidade, e permitem que esta se mantenha em pé. De certo modo, Lucrécio antecipava aqui as propriedades químicas, ou aquilo que hoje aceitamos como Tabela Periódica de elementos químicos. Lucrécio discute ainda a necessidade do vazio, ou seja, a existência de espaço entre átomos que garantiria diferentes uniões entre os mesmos e proporcionaria a criação de infinita variação, oferecendo o sólido, mas também o fluído o e o gasoso. Do mesmo modo, oferecia, por via da teoria da declinação (declínio na trajetória dos átomos entre colisões) a impossibilidade da permanência das condições de geração do totalmente igual ou idêntico ao anterior, explicando a incerteza e o livre-arbítrio do elementos, do ser-humano e do universo.

Repare-se como tudo isto suporta o materialismo, que nada tem que ver com as ideias que os antagonistas, na generalidade religiosos, continuam a colar-lhe do hedonismo. Ser materialista, nada tem que ver com o desejo de coisas. O materialismo conduz-se pela simples crença nas coisas enquanto entidades próprias, sem explicações exteriores. Por esta razão o epicurismo defende a procura pela satisfação do prazer, como modo de dar resposta à condição natural dessas coisas. Para o efeito, Lucrécio convoca então o estoicismo, juntando dois sistemas de pensamento, que para muitos parecem inconciliáveis, para criar as bases do que viria a ser o Humanismo (ver “Sapiens” de Harari). Ou seja, o materialismo funciona com base na virtude, o seguimento das leis naturais, que segundo Lucrécio seriam providenciadas por uma Vénus, deusa do Amor, que guia o sentido daquilo que somos enquanto parte da natureza. Buscamos o prazer, não pelo prazer, mas pelo amor pelo outro, para que da nossa semente, nova semente continue aquilo que somos. É esta combinação teórica que permite a Lucrécio tornar a alma material, perecível, defender que depois de morrer nada mais há, deixamos de existir, restando-nos aqueles que ficam, aqueles que deixamos. Lucrécio mata assim o medo da morte que suportava, e suporta ainda, o grande fundamento das religiões no agrilhoar da liberdade do Ser, e prepara o terreno para Darwin.
À esquerda, a edição da Globo de 1962, traduzida por Agostinho da Silva, em prosa. À direita, a edição da Relógio d'Água de 2015, traduzida por Manuel Cerqueira, em verso e bilingue.

Sobre a escrita e mesmo o conteúdo, é preciso ter em atenção que tem mais de dois mil anos, e muito do que se escreve e modo como se escreve está bastante ultrapassado. Não estamos a ler um livro de divulgação científica de hoje, nem sequer do século passado. A nossa admiração faz-se mais pela sua relevância histórica, pela visão e antecipação, e acima de tudo pela liberdade de espírito na concepção de ideias desligadas do poder vigente. Não foi por mero acaso que o livro quase "se perdeu" durante 1500 anos. Por outro lado, como diz Greenblatt no final da sua obra de homenagem a Lucrécio, o trabalho deste foi concluído, os seus escritos deram frutos, os seus sucessores criaram todo um novo mundo, as ideias deram novas ideias, o seu livro foi ultrapassado e pode agora regressar a meros átomos.

Para finalizar. O livro está dividido em seis grandes capítulos, denominados de Livros, que alguns estudiosos intitulam da seguinte forma :

  1. Os constituintes permanentes do universo: átomos e vazio
  2. Como os átomos explicam os fenómenos
  3. A natureza e mortalidade da alma
  4. Fenómenos da alma
  5. O cosmos e a sua mortalidade
  6. Fenómenos cósmicos

Desta listagem facilmente se depreendem três grandes partes — os átomos; a alma; e o Cosmos — que por sua vez se dividem entre dois grandes focos ou abordagens: o que lhes dá vida e o que os conduz à morte. Tudo é feito de vida e morte, constituindo o ciclo que sustenta tudo aquilo que somos, aquilo que nos dá vida, e aquilo que constitui o Universo.

março 07, 2020

Dos pais orfãos

"O Filho" (2011) de Michel Rostain é um livro sobre a quebra irreversível, por via da morte, do mais importante laço humano — entre pais e filhos — visto a partir dos olhos de um filho que parte deixando os pais vivos. A natureza pressupõe a quebra e prepara-nos para ela por via de um ciclo de envelhecimento, contudo esse ciclo pressupõe apenas um cenário: primeiro partem os pais. Quando os filhos partem primeiro, dá-se um choque insuportável porque contra-natura, que impede o humano de dar significado ao sucedido, o que acaba por bloquear e coartar o seu próprio ciclo natural.

Editado em Portugal pela Sextante

Vivemos num mundo completamente diferente do de todos os nossos antepassados. Até meio do século XX, os dados mundiais demonstram que 50% das crianças morriam antes dos 15 anos (ver gráfico), ora isto diz-nos que praticamente todos os nossos antepassados passaram por esta “maldade”. Cheguei a ponderar a ideia de que no passado o facto de a morte de crianças ser comum, o ser-humano, pai e mãe, suportariam melhor essa dor. Contudo quando olhamos para os dados, e quando lemos alguns relatos do passado e os de hoje percebemos que não. Na verdade, a natureza não mudou, o vínculo mãe-filho e pai-filho é muito mais antigo que um par de milénios, ou mesmo uma dezena, pela simples razão de que ele é o sustentáculo da espécie. Ou seja, se a natureza não forçasse a dependência emocional dos pais face aos filhos, os filhos não morreriam em taxas de 50%, mas antes se aproximariam dos 100%, já que enquanto bebés e crianças somos completamente dependentes dos nossos cuidadores.
Por outro lado, apesar das taxas de mortalidade infantil terem baixado drasticamente, a perda de um filho é algo muito mais comum do que temos noção, ou gostaríamos de admitir. Repare-se nesta pequena lista de pessoas conhecidas que perdeu filhos, ainda jovens — Eric Clapton, Prince, John Travolta, Keanu Reeves, Marlon Brando, Robert Plant, Roald Dahl, Roy Orbinson, Shakespeare, Victor Hugo, Abraham Lincoln (sobre o qual escreveu George Saunders recentemente). Contudo, se passarmos a uma análise macro, o cenário agrava-se e impacta fortemente já que nos dias de hoje morrem ainda, todos os dias, 15 mil crianças (até aos 5 anos) (ver gráfico). Um número que se traduz, no final de cada ano, em quase 6 milhões de filhos mortos, algo que enquanto sociedade tendemos a ignorar, apesar de ser um número apenas superado por aqueles que morrem com mais de 75 anos.

E assim, mais uma vez me dou conta do facto de que não é relevante existirem ao lado pessoas que também perderam os filhos, isso não torna as pessoas imunes à dor, alivia, mas apenas superficialmente. Torna mais suportável, mas continua a não oferecer sentido. O facto de os outros sentirem o mesmo, cria novos laços pela relação de proximidade na igualdade de circunstâncias, nomeadamente pela mútua compreensão que produz afinidade, mas o significado continua ausente. Mas talvez por isso, mais do que saber que existem outros, seja preciso ouvir esses outros, conhecer aquilo que sentem, seja num livro, filme ou relato, porque se está sedento de sentido, restando a esperança de que esses outros possam ter-se aproximado, de algum modo, desse sentido, podendo oferecer parte da sua luz. E é aqui que reside parte da enorme relevância de livros como "O Filho" (2011) de Michel Rostain, que ao discutir abertamente o assunto, sem pudores, gera um efeito balsâmico, quase terapêutico, a quem ainda busca por sentido.

No campo da forma, a escrita de Rostain é ligeiramente poética, com uma estrutura dotada de bom fluxo, mas é um primeiro romance. O relato não é totalmente ficcional, nem totalmente documental (desde logo impossível por termos um narrador que está morto), Rostain pegou no seu próprio trauma e resolveu escrever sobre ele, ficcionar a sua dor. Mas mais importante do que tudo isso, ao fazê-lo, ao criar sobre algo que não compreendia e carregava dentro de si, conseguiu produzir novos significados sobre aquilo que não tinha sentido e isso inevitavelmente trouxe-lhe alguma paz interior. Não é por acaso que as práticas terapêuticas tendem a sugerir atos de criação para aliviar o luto. Do mesmo modo não é por acaso que Rostain termina o livro com a seguinte frase: "Consegue-se viver com isto".


GoodReads: 4/5

março 01, 2020

Viajando com Daytripper

Acabo de reservar um lugar para "Daytripper” (2010) ao lado de "Blankets" (2003), "Fun Home" (2006), "Arrival" (2007) e "Portugal" (2010). Em termos narrativos, é o mais pós-moderno de todos, pela enorme fragmentação do contar de histórias, contudo no sentimento qualifica-se do mesmo modo: humanamente intenso. Mas se é pós-moderno não o deve à literatura do movimento, mas antes ao génio inventivo de Machado Assis que em 1881 nos dava Brás Cubas, o personagem, autor-defunto, que escreve a sua biografia e serve aqui de mote ao personagem principal, Brás, de "Daytripper” que escreve obituários para o jornal.
Ao longo do livro assistimos a múltiplos nascimentos, mortes e renascimentos de Brás, viajando no tempo, para frente e para trás, a ponto de nos começarmos a questionar sobre o que é afinal a vida, o que representa ela para nós, se num momento estamos vivos e no seguinte deixamos de existir. Somos uma espécie que conseguiu chegar a ponto de se reconhecer, de se indagar e por vários meios tentar compreender a realidade, mas continuamos sem compreender o essencial, continuamos sem resposta para a questão principal, mas talvez por isso mesmo continuemos a produzir arte, arte que é relevante tanto para quem a cria como para quem a experiencia.
"O ponto de partida do Daytripper? Olhe… A história real, sem explicação mais excêntrica, é assim: a gente morava num apartamento e a um quarteirão do apartamento tinha uma favelinha. Não era assim um negócio super violento como se ouve no Brasil mas era uma favelinha. Do meio da janela do meu banheiro, era a vista para a favelinha. Uma vez, eu estava no banheiro e pensei: “Imagina se um dia acontece uma coisa ali e vem uma bala perdida e pega em mim”. E aí, eu pensei nessa coisa de que você pode morrer a qualquer momento, de qualquer jeito, e que a gente podia um dia fazer uma história onde o mesmo personagem morre, várias vezes, de jeitos diferentes, em momentos diferentes. E foi isso." Gabriel Bá, em entrevista, 2010.
"A Vida é como um Livro..."

É um livro curto, 256 pranchas passam demasiado rápido, mas o sentir instilado nos personagens é tão intenso que muito depois de o terminar continuamos a sentir que estamos ainda imersos no mundo de "Daytripper" de Fábio Moon e Gabriel Bá. Não consigo explicar propriamente como o conseguem, existe algo relacionado com o familiar, a família e a familiaridade que se vai criando ao longos das páginas, que torna fácil ligarmo-nos aos personagens, para com eles sentir o fundo da tristeza quando um deles parte, e ao mesmo tempo a alegria do virar de página para o voltar a reencontrar, como se a vida pudesse ser feita de continuas novas chances.