novembro 28, 2022

O Passageiro (2022)

16 anos depois de “A Estrada” (2006), e agora com 89 anos, Cormac McCarthy regressa com uma "portentosa" força narrativa. No campo da história pode haver alguma desilusão porque o enredo avoluma-se, mas nunca se chega a desenrolar. Contudo para um autor que chega a esta idade no ativo, mais importante do que ter algo para dizer, será a forma de o dizer, e nesse campo Cormac impressiona. Temos uma estrutura modular que se vai afirmando por meio de pedaços soltos de exposição que aos poucos vão desdobrando o espaço e o tempo, permitindo-nos reconstruir o mundo-história. Nada disto é novo, o que é novo é a particularidade do método de exposição que é maioritariamente feito por via da conversação. Praticamente tudo o que sabemos, sabemo-lo através das infinitas conversas de Bobby Western com todos aqueles com quem se cruza. Para alguns leitores, são um excesso divagante, contudo são estas conversas o cerne do livro, sem elas não seria possível todo este fluxo narrativo a acontecer sem enredo a desvelar-se. Vamos passando de conversa para conversa, seguindo o protagonista e as suas predileções, e é nelas que a nossa atenção se foca, são elas que nos fazem virar página atrás de página, que nos fazem não só descobrir quem é Western, mas especialmente quem era a o seu pai e a sua irmã. 

Tenho visto muitas resenhas sobre o livro que optam por adjetivar com "frustrante", "ruminante", "confuso", "estranho", ou seja difícil de ler e compreender, alguns evocando Kafka e Faulkner, embora não veja aqui nada de nenhum desses autores. A narrativa modular conversacional de Cormac é original e não deve nada a nenhum dos autores anteriores. Mais ainda, porque o mundo apresentado por Cormac é dotado de um nível de erudição que não encontramos nesses autores. Impressiona o detalhe descritivo a que o autor vai quando dá conta de atividades ou ações — mergulho, aviões, carros, escavações, Física —, denotando um estudo e pesquisa imensa, sentindo-se quase que teve de conviver com muitas delas para as descrever como descreve.

Não há aqui qualquer opacidade, há sim um conjunto de blocos que precisam de ser lidos para se unirem na simulação mental que vamos construindo, e que exigem claro alguma maturidade dos leitores, assim como alguma compreensão da importância da criação da bomba nuclear, assim como sobre o funcionamento dos distúrbios psicóticos, e ainda da cultura americana. Fora isso, a escrita, alicerçada na exposição conversacional, funciona com uma enorme fluidez, exigente, mas clara, colocando-nos no interior do mundo falado, fazendo-nos experienciar esse mesmo mundo. 

A história que nos conta, não é a narração do misterioso passageiro de avião desaparecido, que serve apenas para nos agarrar, mas é antes a de um mundo particular que faz desenrolar na nossa frente, atravessado pelo nosso passageiro, a partir do qual vemos e vivemos, por algumas horas, uma experiência profundamente humana, diria no sentimento, talvez, rothiana. A experiência que produz é mais sensorial que significante, em vários momentos pensei que não estava a ler um livro, mas a deambular por uma tela impressionista feita de tons existenciais.

Uma nota sobre um elemento controverso do enredo. Apesar da insistência de muitos leitores em interpretarem os irmãos Western como um casal incestuoso, não é isso que Cormac nos apresenta. O amor entre os irmãos não tem de se resignar a fisicalidade. E ainda bem que assim é, pois senti receio que fosse de outra forma, e que me tivesse de deparar com mais um univeso canceliano.

Por fim, agradecer à excelência da tradução de Paulo Faria, sem o qual, esta experiência em português não seria o que é.

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