O livro, "Herança" de Vigdis Hjorth, abre com um casal, nos seus 80, que resolve proceder às partilhas, deixando as duas casas de verão às duas filhas mais novas, criando assim a impressão clara de favoritismo nos dois filhos mais velhos. A partir daqui, enquanto leitores, só queremos saber porquê, e isso mantém-nos agarrados a virar páginas. Mas se fosse só isto, seria apenas uma história interessante. O que temos é a narrativa em primeira-pessoa a partir da filha mais velha, que nos dá acesso ao seu mundo interior, e como a partir desse concebe o tear de relações e implicações familiares para construir sentido desta decisão.
A primeira parte do livro é particularmente intensa na exploração interior, desconstruindo a definição do que somos e do como nos edificamos, e como tudo isso se relaciona com o que identificamos como família. Hjorth usa bastante psicanálise, mas é melhor quando se abstém de o fazer, quando se limita a deixar falar a protagonista em discurso direto sobre o que sente, como sente, quando sente, e em particular transpõe toda a intensidade desse sentir para a escrita. Não sendo propriamente revolucionário, Hjorth usa de forma muito hábil uma técnica de repetição de frases/eventos na boca da protagonista que nos consegue fazer sentir com particular intensidade toda a agitação interior.
A meio do livro desvela-se a potencial causa do favoritismo, que acaba por atirar a história noutra direção mais profunda e grotesca, e que inevitavelmente me atirou de volta a "La familia grande" de Camille Kouchner. Algo aconteceu com a irmã mais velha quando era pequena, algo que a marcou, mas que toda a sua família recusa acreditar. É aqui que o livro começa a exigir muito mais de nós. Até onde conseguimos acompanhar quem fala? De que lado podemos estar? Em quem acreditar? Porque a história é contada na primeira-pessoa, logo a partir de um único ponto-de- vista, o que inevitavelmente nos faz ansiar pelos outros pontos de vista para tentar compreender mais além. De certo modo, sentimo-nos como que presos dentro do mundo da irmã mais velha, sentido a sua dor, mas sem nunca conseguir sair daí, para tentar chegar a uma "verdade".
A intensidade, de certo modo visceral, da obra não é alheia à imensidade de factos autobiográficos o que causou uma série de problemas à autora, muito na senda do seu conterrâneo Karl Ove Knausgård, o que parece dar conta de um movimento norueguês centrado no romancear de vidas reais.
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