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julho 13, 2019

O Quarto de Marte (2018)

Foi o Segundo livro de Kushner, o primeiro tinha sido “Os Lança-Chamas” (análise), do qual tinha adorado a forma mas não me tinha ligado com o conteúdo, agora aconteceu em parte o contrário, já que a forma sendo boa não me impressionou, mas sendo fluída acabou gerando uma excelente plataforma para as histórias contadas e o universo criado. O tema de fundo é a prisão perpétua, como se chega a ela e como se lida com ela, quem são as pessoas (nos EUA) sujeitas a ela. Kushner faz um bom trabalho, não se liga à defesa nem à provocação, plana antes sobre os diferentes lados da questão, dá-a ver e a sentir, mas deixa na consciência do leitor o labor crítico de formação de opinião.


O mais evidente desta abstenção de exercício da sua posição e propaganda é desde logo o modo como Kushner evita as emoções que seriam fáceis tendo como pano de fundo condenadas à vida, e mesmo à morte. Seria fácil fazer chorar o leitor, ou logo a seguir enraivecer o mesmo. Temos momentos em que Kushner quase roça a defesa, em que dá conta dos problemas que vivem e atravessam as condenadas, mas é tudo suficientemente balançado para não nos levar pelo coração. As descrições do dia-a-dia, das relações entre prisioneiras, suas conquistas e escapes, vão preenchendo o espaço-tempo de algum normalidade que nos retira dos pensamentos de fins ou injustiças do sistema.

Ainda assim, mais perto do final, torna-se praticamente inevitável questionar a razão, o objetivo, o fundamento, e as evidências que suportam tais penas. Não é apenas pela gravidade, ou pela idade em que se cometem, ou pelo efeito de estupefacientes, ou desespero social ou humano, mas é mesmo pela desproporção da pena que não deveria nunca ser vista como vingança mas antes como reabilitadora. É isso que aqui se levanta, ainda que Kushner não o discuta, apenas aflore, ainda que Kusnher nem sequer dê exemplos ou comparações com outros estados americanos, ou com a Europa. Por exemplo em Portugal a pena máxima é de 25 anos, e essa raramente é cumprida na totalidade se a pessoa demonstrar arrependimento e tiver bom comportamento. Que buscamos demonstrar à sociedade quando penalizamos alguém com uma pena, ou no caso, duas penas perpétuas seguidas? Não é isto completamente desprovido de senso? Sim, eu sei que qualquer ser humano quando agredido, ou agredido um dos seus, reage vingativamente, existe uma necessidade interior de expiar a dor, de sentir que o universo se regula por uma justiça com pesos iguais. Mas se inventámos um edifício social de Justiça foi para findar com essa vingança, para pôr cobro a um sentimento que de nada serve, e que se seguido pelo sistema penal dá como exemplo a toda a sociedade a lógica dessa vingança, em nada então se diferenciado do animalesco desse sentir. Veja-se a história da condenada a três perpétuas que Obama indultou, compare-se os seus crimes com as aberrações dos casos OJ Simpson ou o mais recente caso de Jeffrey Epstein, em que o dinheiro e acesso ao sistema fazem toda a diferença.

Neste livro Kushner está completamente focada nas penas e nas prisões, nos seus personagens, e nunca abandona o tema, teve claramente muito trabalho para conseguir chegar a algumas das descrições apresentadas, ainda assim senti-o menos elaborado do que “Os Lança-Chamas”, menos rico em detalhe, talvez menos ornamentado, mas como disse, mais instigante em termos de mensagem.

setembro 08, 2018

Forma e sentido na construção narrativa

“Os Lança-Chamas” (2013) de Raquel Kushner dificultou-me tanto o processo de resenha que resolvi criar uma nova categoria no GoodReads para o mesmo que denominei “Sem Avaliação” (no-rating), e no qual acabei inserindo outros livros que, como este, me tinham sido difíceis de avaliar. As dificuldades levantadas por estas obras têm principalmente que ver com os elementos de avaliação que uso para aferir o valor das mesmas que nestes casos se me oferecem com pesos que os colocam em polos opostos. Ou seja, num desses elementos a obra obtém o valor máximo enquanto noutro o valor mínimo. Nestes casos não é possível fazer média, que é aquilo que vamos fazendo subjetivamente ainda que com grandes margens de flexibilidade. Aliás, só mesmo por toda esta flexibilidade subjetiva é que aceito avaliar quantitativamente as obras, pois se quisesse ser completamente rigoroso não daria quaisquer estrelas. Mas o que está por detrás desta obra, ou melhor da minha experiência da leitura desta?


“Os Lança-Chamas” é o segundo livro de Kushner, tendo a autora lançado este ano o seu terceiro livro, já traduzido pela Relógio d’Água também — “O Quarto de Marte”. Falo deste último porque foram alguns dos aplausos recebidos pela obra, da parte de autores e críticos que costumo levar em conta — Jonathan Franzen, George Saunders e James Wood — que despertaram o meu interesse na autora, fazendo assim com que comprasse este segundo livro de Kushner.

Ao fim de poucas páginas percebe-se porque Franzen gosta tanto de Kushner, as suas formas de escrita aproximam-se imenso, encaixando muito bem num grupo de autores — Jonathan Franzen, Zadie Smith, David Foster Wallace, DeLillo e Pynchon — que Wood usa para delimitar o rótulo, por si criado, do "realismo histérico" (a definição foi apresentada pela primeira vez na resenha de Wood do livro "White Teeth" em 2000). Este modelo de contar histórias define-se, segundo Wood, pelo "excesso" e "exaustão" de realidade, criando uma espécie de "realidade evasiva enquanto assume os contornos do realismo". Os autores forjam conexões, ligações, enredos e paralelos entre múltiplas histórias e linhas de ação, que obrigam a um detalhar continuo de descrição de ações que tornam o texto num fluxo contínuo e imparável, disparando em todas as direções de sentido.

Franzen foi o primeiro escritor em que me apercebi deste modo de narrar, o seu detalhar contínuo de ações e micro-ações que mudam de espaço e tempo e nos levam atrás com enormes ânsias por descobrir mais e mais sobre o que se irá passar a seguir, que no fundo fazem com que se crie uma espécie de histerismo, uma urgência sem propósito. Li algures, uma comparação com o estado atual do audiovisual, com a necessidade de fazer montagens cada vez mais rápidas para agarrar os espectadores, e nomeadamente com as séries e os seus múltiplos enredos que asseguram o interesse ao longo de horas e horas. Pode ser, embora na escrita isto resulte mais complexo porque a retenção de tanta informação, se não muito bem urdida, pode destruir toda a experiência de leitura pelo excesso de demanda cognitiva. Por outro lado, não me parece que falemos aqui de excesso de linhas de enredo, o que temos é antes um excesso de detalhamento de ação interna ao enredo. Como se o olhar destes escritores conseguisse colocar em pausa a realidade, e assim detalhar ao pormenor o que se passa e porque se passa.

Este modo resulta bem diferente daquelas torrentes descritivas que Balzac ou Eça nos ofereciam no início do realismo, já que não descrevem o estático (espaços e personagens) mas o dinâmico (os eventos), que pela sua imprevisibilidade, dotada pela transformação e mudança, aumentem a curiosidade do leitor, o despertam e instigam a correr atrás. Na descrição do estático, temos de realizar um esforço para reconstruir em nós o que o autor está a ver e a descrever, enquanto na dinâmica, no enredo, estamos apenas presos ao fio dos acontecimentos, totalmente focados no que se irá suceder a seguir, e por isso mais atentos, interessados e claro curiosos. Não é por acaso que em narrativas mais centradas nos personagens, as pessoas se queixem de falta de ação, porque falta enredo, ou seja grandes ações e transformações a acontecer em que se focar e deixar-se levar. Nas narrativas centradas no personagem, temos de trabalhar mais internamente para ver e sentir de que são feitos esses personagens.
"Quando eu tinha doze anos, Flip foi a Reno e deu autógrafos num casino. Eu não tinha uma fotografia boa para ele assinar, por isso ele assinou na minha mão. Durante semanas tomei banho com um saco de plástico a cobrir essa mão, preso com um elástico no pulso. Não era uma paixão romântica. A disponibilidade tem os seus níveis. As meninas não alimentam ideias de sexo, o seu corpo e outro juntos. Isso vem mais tarde, mas alguma coisa haverá antes disso. Há algum devaneio inocente, um sonho, e os ídolos são perfeitos para os sonhos de uma rapariguinha. Os ídolos não são reais. Não são o homem de serviço na bomba de gasolina que tenta levar-te para as traseiras do posto, nem um ardina que tenta levar-te a entrar numa barraca de ferramentas, nem o amigo do pai que tenta levar-te a entrar no seu carro. Eles não tentam levar-te. Chamam, mas como pequenas miragens no deserto. Flip Farmer era inofensivamente inalcançável. Era uma coisa especial. Escolhi-o entre todos os homens do mundo e ele assinou as costas da minha mão e sorriu com uns dentes muito brancos, muito alinhados. Ofereceu esse sorriso a cada de um nós, crianças e adultos que estivemos na bicha para o Harrah's. Não éramos indivíduos, éramos a superfície onde ele se movia, sorridente e distante. O caso é que, se ele me tivesse devolvido o olhar, eu talvez tivesse lavado da mão o seu autógrafo." (Os Lança-Chamas, p. 29)
Ora Kushner enquadra-se belissimamente neste registo. O modo como exacerba o detalhe da ação agarra-nos totalmente, suga-nos para dentro do livro, e as páginas passam a voar. Contudo temos um problema, e agora voltando ao histerismo de Wood, os autores deste estilo caracterizam-se por apresentar temas e tópicos bastante diversos, mesmo extravagantes ou exóticos (ex. DFW usa uma parafernália de personagens estranhos tais como os Assassinos de Cadeiras de Rodas ou a divisão em anos definidos e promovidos por marcas como os hambúrgueres Whopper ou as fraldas para adultos Depend; DeLillo fala de artistas que pintam bombardeiros no deserto; enquanto Zadie junta bombistas islâmicos com Jeovás, com defensores dos animais e cientistas judeus que fazem experiências genéticas). Kushner não se fica atrás e fala-nos de motociclistas e automobilistas que vão para os desertos de sal americanos bater recordes, contrapostos com os artistas da cena nova-iorquina dos anos 1970, ao que junta resquícios de famílias da nobreza italiana contrapondo-as com as Brigadas Vermelhas, para no final nos levar através do grande Blackout de 1977. Se os cenários de Kushner encaixam bem, seguindo o tal histerismo, apresentam algo de distinto face aos restante escritores, é que parecem, pelo menos eu não consegui descortinar, que quando se juntam não resultam em algo mais, ou tão só não parecem ter nada para dizer.

Quebra de recorde de velocidade em Bonnieville Salt Flats por Roland Free em 1948. Fotografia de Peter Stackpole para a revista Life.

Foto símbolo de 1977 dos Anos de Chumbo em Itália

As pilhagens durante o Apagão de NY, em 1977

Se olharmos para "Piada Infinita", ou "Dentes Brancos" ou "Submundo", todas estas obras se constroem na base de múltiplas histórias e historietas, umas mais outras menos loucas, mas todas trabalham para um objeto, o seu entrelaçar vai desvendando esse objeto, o seu conjunto significa, aponta para a construção de significante, ainda que ele possa ser subjetivo ou abstrato. No caso de "Os Lança-Chamas" as histórias vão-se sucedendo, a escrita é belíssima, mas tudo parece apenas servir o desígnio de entreter a nossa mente, uma leitura rica mas que parece estar apenas ao serviço do passatempo. Reconstituído o puzzle final da leitura, não retiro dele nada. Este foi o problema que encontrei em "Purity" de Franzen, por oposição ao que nos tinha dado nas suas duas anteriores obras "Correções" e "Liberdade"  Talvez não por acaso tenhamos visto Kushner dar entrevistas tentando explicar o que queria dizer com o livro, assim como tenha escrito todo um artigo de desconstrução do processo criativo da obra para a Paris Review. Mas essas explicações só acabaram a reforçar as minhas conclusões iniciais, de que realmente nada havia aqui além do imensamente sofisticado tricot de palavras. Falo em sofisticação, porque não está ao alcance de qualquer um escrever e descrever desta forma, requer virtuosismo que por sua vez requer muito estudo e trabalho.

Tendo mais a defender obras pela excelência da forma do que do sentido, ou melhor, tendia, mais ainda no cinema. Talvez por um excesso de adulação que fui lendo em alguma crítica aos sentidos de algum cinema mais artístico, habituado a codificar ideias em símbolos na esperança de ampliar o seus sentidos, sem contudo se ter de obrigar a dizer algo em concreto. Muito desse cinema era, e ainda existe algum, muito básico na forma, porque muitas vezes era feito por pessoas com muito pouco traquejo da arte. Supostos artistas, que tendo algo supostamente tão importante para dizer, podiam prescindir de desenvolver conhecimento do métier, considerando-o mesmo secundário na arte. Nunca suportei tal postura, ainda hoje lido mal com a chamada Arte Contemporânea por causa desta sua tendência, a defesa do artista que não precisa de sujar as mãos. Por outro lado, não posso aceitar o contrário, que o brilho da execução, o virtuosismo, sejam suficientes para elevar uma obra e fazer esquecer que ela é, numa grande parte de si, um ato de comunicação. Se não há nada para comunicar, então mais vale não escrever ou não filmar.

Termino dizendo que a obra de Kushner tem momentos muito altos, não apenas na forma mas também no conteúdo. Existe muita pesquisa aqui envolvida, somos brindados com imenso conhecimento à medida que vamos lendo, e no fundo aprendendo. Contudo falta-lhe um propósito, a capacidade de tudo enlaçar e dar a ver por um novo olhar seu, pessoal, sobre o mundo que decidiu nos apresentar. Sei que isto não é obrigatório numa obra, já que se trata de romance e não de uma obra de não-ficção ou uma tese. Contudo, olhando aos grandes clássicos, os livros que se eternizam são os que são capazes de jogar tanto na forma como no significado. Não fosse a obra tão instigadora de diferentes opiniões, e não teríamos tido críticos a criticarem-se na praça pública (Miriello responde a Seidel, com Tracy a tentar explicar o que os separa). De qualquer modo, conto ler o último livro, para tentar definir melhor a minha posição face à autora.