O meu imaginário do Holocausto era até agora estruturado a partir dos relatos de Primo Levi, Viktor Frankl e das imagens de Claude Lanzmann. Três obras não-ficcionais, dois relatos na primeira-pessoa da experiência vivida em Auschwitz, e uma visita, 40 anos depois, retratada por múltiplas vozes que por lá passaram e assistiram, dentro e fora, em primeira pessoa ao morticínio. "Son of Saul" (2015) é ficção, tal como "Come and See" (1985) de Klimov, mas diferentemente desse, não o parece. São ambos obras de grande intensidade visceral, talvez das mais viscerais a que assisti, mas "Son of Saul" distingue-se pelo naturalismo utilizado que impregna a obra de um caráter quase documental, tornando tudo ainda mais intenso, se é que tal é possível... posso, contudo, dizer que vai além da camada emocional, as opções de câmara implementadas para dar a ver obriga a uma racionalização do espectador, o que torna a experiência particularmente perfurante.
Já me tinha interrogado sobre o como se "passaram as coisas", e o filme de Lanzmann é ainda mais instigador ao mostrar tudo muito depois, mas de modo estático obrigando-nos a imaginar. Aliás essa foi uma opção propositada de Lanzmann, o mesmo que depois de ver “A Lista de Schindler" disse:
"The Holocaust is above all unique in that it erects a ring of fire around itself, a boundary that you cannot cross, because it is impossible to convey a certain absolute horror; claiming to do so is to be guilty of the gravest transgression. Fiction is a transgression; I am deeply convinced that there is a prohibition on representation." Claude Lanzmann
Podemos assim dizer que optar pelo modo de Spielberg é como mostrar a dor humana à distância, a partir do conforto de um camarim. Mas Nemes quebra o tabu, atira o pudor janela fora e coloca-nos dentro da maior Fábrica de Morte alguma vez criada, colados à carne de um simples trabalhador judeu, obrigando-nos a ver tudo, ainda que pelas franjas do enquadramento. Claro que para tal foi preciso a performance brutal de Géza Röhrig.
Tenho pouco a acrescentar às imensas leituras que já foram feitas de “Se Isto é um Homem” (1947). Já Primo Levi, e Viktor Frankl em “Em Busca de Sentido” (1946), diziam ambos nada terem para acrescentar ao horror já conhecido dos campos de extermínio Nazi, mas isso não era verdade. As suas palavras foram importantes, e tenderão a ser cada vez mais importantes. À medida que vamos avançando no tempo, a tendência será para esquecer, como se vai vendo (ex. relato de viagem à Polónia de um grupo de judeus americanos em 2017). Estas obras devem figurar como leitura obrigatória, nem que seja parcial, nas escolas de toda a Europa.
Frankl e Levi escreveram as primeiras memórias publicadas de Auschwitz, com tons totalmente diferentes. Não por um ser austríaco e outro italiano, mas por um ser psicólogo e o outro engenheiro químico. O modo como olham o mundo, os detalhes em que se fixam, que analisam e escolhem discutir vai de encontro aos modos epistemológicos com que avaliam o real. Frankl, é só humano, só emoção e sentimento, tentativa de compreender a si e aos outros. Levi, é só estrutura, só análise e detalhe, tentativa de dar conta do funcionamento do sistema que regulava os campos internamente. Diferentes, mas imensamente relevantes, porque se complementam completamente.
Já li e vi muita coisa sobre os campos de concentração, mas ao ler Levi, percebi que ainda não tinha compreendido nada sobre a realidade dos campos de concentração Nazi, e mesmo sobre a governação Nazi. Pode parecer fastidioso o detalhe apresentado — sobre as regras, os hábitos, rotinas, afazeres, limitações, diferenças, imposições, condições, repetições, esperas, etc. — mas é esse mesmo detalhe que nos faz entrar pelo campo adentro e vê-lo, senti-lo como ele foi. Não porque me interesse senti-lo, mas porque esta descrição de Levi me mostra de forma efetiva a “Máquina” e o “Método” alemães. Neste registo não se fala dos fornos, nem das câmaras de gás, fala-se do funcionamento específico de um campo de concentração, do seu dia-a-dia, das divisórias sociais internas e da organização sistemática de tudo.
Aquilo que distingue o Holocausto de outros genocídios é o método. Nunca antes, nem depois, o ser humano construiu uma tal “máquina” de matar, e isso só foi possível pela força do método imposto ao estado, governo e militares. A ideia de raça pura e perfeita terá servido para conduzir os governantes alemães à obsessão com o método, tudo em busca da organização perfeita, impermeável a falhas, impermeável ao acaso e ao orgânico. Tudo era controlado, tudo era repetidamente controlado, para que nada falhasse. A organização era feita por humanos, mas de humano nada existia ali, apenas máquina, apenas sistema salvaguardado com redundância para eliminar o erro. Perfeitamente implementado, uma transposição perfeita do papel para o terreno. Insanamente perfeita.
Existia ainda um outro factor, responsável pela elevação da “máquina” a níveis de matança inauditos, o Ódio. Levi disse mais tarde, quando compararam a sua obra com o “Arquipélago Gulag” de Solzhenitsyn, que este se diferenciava do Lager de Auschwitz pela percentagem de mortos, 30% contra 90-98%. Esta diferença deve à máquina montada, sem dúvida, mas essa precisava de ser alimentada para chegar a estas percentagens, e a única forma de o fazer foi pelo ódio. Era preciso manter todos os envolvidos na estrutura motivados, com objetivos claros e concretos, com sensação de progresso e de contributo para o bem dos seus. Para tal todas as diferenças fisiológicas e culturais foram usadas como armas de lavagem cerebral — pelo cinema, jornais, livros, panfletos, às mãos de um dos mais maquiavélicos Ministros da Propaganda de sempre, Goebbels — para gerar o mais profundo Ódio aos judeus. Criou-se na mente dos militares e cidadãos a visão de estarem acima na escala social, e de os outros nem sequer pertencerem a tal escala. Por isso, havia um trabalho a fazer, e cada um precisava de dar o seu melhor para o levar até ao Final...
Viktor Frankl nasceu em Viena, 1905, de uma família de judeus. Com apenas 16 anos escreveu um ensaio sobre Freud, que lhe enviou, e este considerou digno de publicação no Journal of Psychoanalysis. Tendo estudado com Freud e Adler, deixaria de os seguir mais tarde. De 1933 a 1937 fez a sua residência em neurologia e psiquiatria, centrado nos tópicos da depressão e suicídio, tendo sido responsável pelo "Selbstmörderpavillon", o "pavilhão dos suicidas" onde tratou milhares de pacientes com tendências suicidas. Em 1942 foi deportado para o gueto de Theresienstadt na antiga Checoslováquia, uma espécie de ante-câmara dos campos de exterminação e ao mesmo tempo fachada modelo para enganar as autoridades internacionais do tratamento que estava a ser dado aos judeus. Chega a Auschwitz em Outubro 1944, levando consigo a sua única posse, um manuscrito em que traçava os primeiros princípios de uma teoria por si desenvolvida, a Logoterapia. É transportado para o campo de Türkheim em Março 1945, e é libertado em Abril 1945. Esposa, pai, mãe e irmão morrem nos campos, sobrevive a sua irmã.
Frankl tornou-se piscoterapeuta, tendo para o seu trabalho desenvolvido a teorização que denominou de Logoterapia, como tal considerada a "Terceira Escola Vienesa de Psicoterapia", sendo as outras duas, a psicanálise de Freud, e a psicologia de Adler. Como explica Frankl, enquanto a psicanálise se centra na avaliação do passado, no questionamento das razões traumáticas, a logoterapia centra-se no futuro, na busca de razões para continuar a viver. A denominação surge pelo "logos", razão em grego, já que Frankl definia como cerne da sua teoria a busca da razão, ou seja, de "um sentido para a vida". O "sentido da vida" de Frankl diz respeito a cada sujeito individual, não se defendendo qualquer sentido generalizável a todos os sujeitos. A teorização surge agregada a um conceito de Nietzsche, "Will to Power" (vontade de poder), e à máxima "Aquele que tem um motivo para viver pode suportar quase tudo." Este conceito de Nietszche que era usado por Adler, foi transformado por Freud como "Will to Pleasure" (vontade de prazer), e por Frankl "Will to Mean" (vontade de sentido).
A logoterapia assenta em três grandes princípios: a) existe sempre um sentido para a vida, mesmo a mais miserável; b) a motivação principal assenta na vontade de descobrir o sentido da vida; c) nós temos liberdade de encontrar sentido naquilo que fazemos e experienciamos, mesmo aquando duma situação de enorme sofrimento. Deste modo, Frankl defende na Logoterapia, três métodos para podermos encontrar o sentido das nossas vidas:
(1) criar uma obra ou realizar uma ação; (2) experimentar algo ou encontrar alguém; (3) atitude face ao sofrimento inevitável, em que mesmo tudo nos sendo retirado, continuamos a ter a última liberdade humana: a escolha da atitude em cada momento.
Frankl seguiu estes princípios enquanto preso nos campos de concentração, que acabariam por o salvar em momentos de encruzilhada e dilema. Muitos pereceram e ele sairia vivo dos campos, embora como diz, por sorte do acaso. Ainda assim, se as decisões que tomou o levaram a ter sorte, o mais importante não é ter tido essa sorte, mas antes ter decidido por si como fazer, e não se ter deixado condicionar pelas pressões e aparências em cada momento. O livro divide-se numa primeira parte que relata a sua passagem pelos campos, e uma segunda que dá conta destes princípios. Na primeira parte, Frankl não nos dá nada de muito novo, o que ele próprio admite, e se refreia mesmo de detalhar, mas reflete sobre alguns dos comportamentos no campo, que acabam dirigindo-se ao âmago desta teorização, e de que deixo aqui algumas passagens:
“On entering camp a change took place in the minds of the men. With the end of uncertainty there came the uncertainty of the end. It was impossible to foresee whether or when, if at all, this form of existence would end.”
“Former prisoners, when writing or relating their experiences, agree that the most depressing influence of all was that a prisoner could not know how long his term of imprisonment would be (..) A well-known research psychologist has pointed out that life in a concentration camp could be called a “provisional existence.”
“A man who could not see the end of his “provisional existence” was not able to aim at an ultimate goal in life. He ceased living for the future, in contrast to a man in normal life. Therefore the whole structure of his inner life changed; signs of decay set in which we know from other areas of life. The unemployed worker, for example, is in a similar position. His existence has become provisional and in a certain sense he cannot live for the future or aim at a goal. Research work done on unemployed miners has shown that they suffer from a peculiar sort of deformed time—inner time—which is a result of their unemployed state. Prisoners, too, suffered from this strange “time-experience.” In camp, a small time unit, a day, for example, filled with hourly tortures and fatigue, appeared endless.”
“In this connection we are reminded of Thomas Mann’s The Magic Mountain, which contains some very pointed psychological remarks. Mann studies the spiritual development of people who are in an analogous psychological position, i.e., tuberculosis patients in a sanatorium who also know no date for their release. They experience a similar existence—without a future and without a goal.”
“One of the prisoners, who on his arrival marched with a long column of new inmates from the station to the camp, told me later that he had felt as though he were marching at his own funeral. His life had seemed to him absolutely without future. He regarded it as over and done, as if he had already died. This feeling of lifelessness was intensified by other causes: in time, it was the limitlessness of the term of imprisonment which was most acutely felt; in space, the narrow limits of the prison. Anything outside the barbed wire became remote—out of reach and, in a way, unreal. The events and the people outside, all the normal life there, had a ghostly aspect for the prisoner.”
“The prisoner who had lost faith in the future—his future—was doomed. With his loss of belief in the future, he also lost his spiritual hold; he let himself decline and became subject to mental and physical decay.”
Um último ponto sobre a logoterapia, e diferença face aos sistemas de auto-ajuda, é que esta se afasta completamente da ideia de se objetivar à felicidade. Na logoterapia, o sofrimento é visto como algo inevitável no ato de estar vivo, e a felicidade deve ser vista apenas como consequência do encontrar de um sentido ou significado da vida, não devendo ser procurada per se, já que o simples ato de a procurar implica a infelicidade de a não conseguir atingir. Encontrar uma razão, conduz a uma felicidade que logo termina para se iniciar nova busca de sentido. O significado não existe como absoluto, mas como etapas. O que verdadeiramente importa é o caminho, o processo, a busca pelo sentido, a tentativa de definir o sentido, e não o fim. Frankl definiu o significado da sua vida como, "ajudar os outros a encontrarem o sentido das suas vidas".
O livro é bastante curto, o relato de memórias rápido ainda que bastante atmosférico. A segunda parte mais teórica é ainda mais curta. Fica alguma sensação de falta, de aprofundamento, mas o contacto com o livro e a logoterapia é per se suficienente para justificar o contacto com o livro e a vida de Frankl.
"Doutor Fausto" (1947) pode ser lido como romance, e foi assim que o li, mas requer todo um enquadramento que deveria preceder qualquer edição do mesmo, para que não se torne em algo completamente incompreensível. Ainda que as obras se devam valer per se, obras com a densidade de "Doutor Fausto" requerem contexto, não apenas sobre o autor, mas especialmente sobre a sua génese. Sem isso, corremos o risco de nos colocar na posição de Italo Calvino aquando da sua leitura: "Eu passo as tardes aqui deitado nas pedras, de barriga ao sol, a ler Thomas Mann, que escreve muito bem sobre muitas coisas que são completamente incompreensíveis para mim” (1950).
Mann tinha 72 anos, tendo iniciado a sua carreira 50 anos antes, com a publicação de uma obra que para muitos escritores seria o derradeiro pináculo do virtuosismo de escrita, "Os Buddenbrook" (1901) (é a esta sua primeira obra que o Nobel faz referência, e não à "A Montanha Mágica" (1924), como esperaríamos). 50 anos depois, sempre a escrever livros, crónicas, cartas, peças, manifestos e discursos políticos, não transformariam o virtuosismo dessa escrita, mas transformariam completamente o seu intelecto, a sua capacidade para ler e descrever as entrelinhas do real. "A Montanha Mágica" tinha sido um demonstrativo disto mesmo, um partir da descrição das relações humanas dos seus personagens para a discussão dos motivos filosóficos subjacentes. "Fausto" vai muito para lá da "Montanha", já que deixa para trás completamente o foco dos elementos base do romance, os personagens e suas intrigas, para se entregar totalmente à discussão de conceitos e fundamentos teóricos de suporte à constituição da realidade.
Para compreender "Doutor Fausto", não basta enquadrar Mann como exilado na Califórnia pelo nazismo, e toda a destruição humana de um povo que grassava na Europa Central. É preciso situar nesse lugar de exílio duas outras pessoas, alemães também exilados, Theodor Adorno, crítico e filósofo de estética, e Arnold Schoenberg, compositor e teórico musical. Os três homens representam, nas suas áreas, pináculos da arte e cultura germânica, o que de certo modo pode explicar a sua relação, pois se se aproximaram no exílio, logo acabariam por se separar, desavindos os três. E no entanto, na exata mesma altura, em 1947, produziram os três, obras maiores das suas carreiras:
Thomas Mann (1875), "Doutor Fausto" (1947)
Theodor Adorno (1903), "Dialética do Iluminismo" (1947) (co-escrito com Max Horkheimer)
Arnold Schoenberg (1874), "Sobrevivente de Varsóvia" (1947)
Se destaco aqui estas três obras não é por terem apenas sido criadas por artistas alemães no exílio americano, e no mesmo ano, ou ainda porque as três obras são respostas à emergência, impacto e efeitos do Nacional Socialismo de Adolf Hitler na Europa, mas também porque as três estão ligadas na sua criação, relação dialógica estabelecida entre os três criadores, antes e depois da publicação das obras. E por isso para compreender qualquer uma destas obras em toda a sua extensão, é necessário compreender o que subjaz a cada uma delas individualmente.
"Doutor Fausto" apresenta-nos um personagem, Adrian Leverkühn, como um prodígio à nascença, sempre na frente dos seus pares e professores, que acabaria por desembocar tarde na música, e que por isso não poderia tornar-se um virtuoso do instrumento, mas tornar-se-ia num virtuoso da composição e por isso mesmo ansioso por inovar e transcender o status quo musical. Mann leva Adrian a conhecer o Diabo e a estabelecer o pacto faustiano, a partir do que então Adrian acaba a produzir a sua grande inovação musical (a que é dedicado todo o capítulo 22), na forma do sistema atonal ou dodecafonismo (invenção real de Schoenberg). Esta síntese é o núcleo de todo o livro, e ao mesmo tempo o que une Mann, Adorno e Schoenberg, e também o que os separará.
Para Mann, Adrian, personagem decalcado de Nietszche, é o representante do super homem: puro, inteligente e perfeito. Para quem os demais existem apenas para o seguir. Os seus ideais estão acima das necessidades e prazeres mundanos, interessa-lhe apenas atingir o zénite da perfeição, da eleição supra-humana. O mal estaria na Natureza que tudo corrói com a sua organicidade, incerteza, e imperfeição. Cabe ao Homem desenhar, delinear e construir a perfeição. Mann dá assim corpo ao mundo professado pelo Nacional Socialismo de Hitler.
Adorno, vinha trabalhando ideias relacionando o Iluminismo e a catástrofe alemã, tendo uma primeira versão de "Dialética do Iluminismo" surgido em 1944. Para Adorno (e Max Horkheimer com quem co-escreve a obra), a intervenção do Estado, tanto na forma do comunismo que grassava na URSS, como na forma do nacional socialismo que abraçava a Alemanha, ditava o fim Iluminista, apesar de paradoxalmente defenderem uma racionalização da produção artística, como se vê em Adrian. Segundo Adorno, a modernidade com toda a sua racionalidade e avanços científicos, não tinha sido capaz de libertar a sociedade, antes estava a fazer o seu contrário, daí o ataque à razão, por ter chegado ao estado de irracionalidade. O problema apresentava-se pela imposição do modelo de massas dessas ideologias, que levavam ao desaparecimento da individualidade e a liberdade humanas. Como Mann diz em "Doutor Fausto", “a liberdade é apenas outro termo para designar a subjetividade”, ou seja, é a partir da subjectividade que se pode elevar a inovação e transcendência artística e estética. Para Adorno, a produção cultural massificada pelo estado, base do seu conceito "indústrias culturais", não ofereceria "a revolução social" professada por Marx, mas antes o totalitarismo, capaz de pela homogeneização cultural adormecer a individuação e tornar as massas passivas. (Diga-se em abono da realidade de hoje, que o capitalismo não se diferencia muito destes modelos culturais, podendo nós ver essa mesma homogeneização a grassar nas playlists das rádios, nas tabelas de livros mais vendidos e nos filmes mais vistos, todos de Hollywood. A grande diferença é que a liberdade permitida pelo capitalismo abre espaço a nichos e franjas, acabando por paradoxalmente serem estas as responsáveis pelos avanços na estética da cultura dita de massas).
Assim, e se Mann e Adorno parecem sintonizar-se na crítica, o terceiro elemento da equação, Arnold Schoenberg, parece ter surgido nas mãos destes como ovelha a levar ao altar do sacrifício. Repare-se que Mann, ao seguir esta linha, apresenta o dodecafonismo, a invenção da vida de Schoenberg, não apenas como fruto de um pacto com o Diabo, mas como a encarnação do ideal Nazi. Nem Mann nem Adorno eram entusiastas do modernismo que para eles era apenas um sinal da racionalização na busca de uma suposta perfeição contra a imperfeição oferecida pela natureza.
Para entrar dentro da discussão e não apenas compreender mas sentir, já que de arte se trata, é necessário parar e voltar à produção artística do modernismo. Colocar como música de fundo, "Erwartung" (1909) de Arnold Schoenberg, o exemplo maior das suas composições atonais, fugindo ao sistema tonal, o modo mais harmónico e natural como ouvimos a música. Enquanto ouvimos, podemos pousar o nosso olhar sobre "Les demoiselles d'Avignon" (1907) de Picasso, em que o primeiro exemplar do cubismo, transfigura o modo como vemos e concebemos a representação tridimensional do real. E por fim, abrir "Ulisses" (1924), no seu capítulo final, e seguir o fluxo de consciência de James Joyce que foge a todo e qualquer modelo narrativo.
"Erwartung" (1909) de Arnold Schoenberg, Audio e Partitura
"Les demoiselles d'Avignon" (1907) de Picasso
"(...) I love flowers Id love to have the whole place swimming in roses God of heaven theres nothing like nature the wild mountains then the sea and the waves rushing then the beautiful country with the fields of oats and wheat and all kinds of things and all the fine cattle going about that would do your heart good to see rivers and lakes and flowers all sorts of shapes and smells and colours springing up even out of the ditches primroses and violets nature it is as for them saying theres no God I wouldnt give a snap of my two fingers for all their learning why dont they go and create something I often asked him atheists or whatever they call themselves go and wash the cobbles off themselves first then they go howling for the priest and they dying and why why because theyre afraid of hell on account of their bad conscience ah yes I know them well who was the first person in the universe before there was anybody that made it all who ah that they dont know neither do I so there you are they might as well try to stop the sun from rising tomorrow the sun shines for you he said the day we were lying among the rhododendrons on Howth head in the grey tweed suit and his straw hat the day I got him to propose to me yes first I gave him the bit of seedcake out of my mouth and it was leapyear like now yes 16 years ago my God after that long kiss I near lost my breath yes he said I was a flower of the mountain yes so we are flowers all a womans body yes that was one true thing he said in his life and the sun shines for you today yes that was why I liked him because I saw he understood or felt what a woman is and I knew I could always get round him and I gave him all the pleasure I could leading him on till he asked me to say yes and I wouldnt answer first only looked out over the sea and the sky I was thinking of so many things he didnt know of Mulvey and Mr Stanhope and Hester and father and old captain Groves and the sailors playing all birds fly and I say stoop and washing up dishes they called it on the pier and the sentry in front of the governors house with the thing round his white helmet poor devil half roasted and the Spanish girls laughing in their shawls and their tall combs and the auctions in the morning the Greeks and the jews and the Arabs and the devil knows who else from all the ends of Europe and Duke street and the fowl market all clucking outside Larby Sharons and the poor donkeys slipping half asleep and the vague fellows in the cloaks asleep in the shade on the steps and the big wheels of the carts of the bulls and the old castle thousands of years old yes and those handsome Moors all in white and turbans like kings asking you to sit down in their little bit of a shop and Ronda with the old windows of the posadas 2 glancing eyes a lattice hid for her lover to kiss the iron and the wineshops half open at night and the castanets and the night we missed the boat at Algeciras the watchman going about serene with his lamp and O that awful deepdown torrent O and the sea the sea crimson sometimes like fire and the glorious sunsets and the figtrees in the Alameda gardens yes and all the queer little streets and the pink and blue and yellow houses and the rosegardens and the jessamine and geraniums and cactuses and Gibraltar as a girl where I was a Flower of the mountain yes when I put the rose in my hair like the Andalusian girls used or shall I wear a red yes and how he kissed me under the Moorish wall and I thought well as well him as another and then I asked him with my eyes to ask again yes and then he asked me would I yes to say yes my mountain flower and first I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes."
Podemos questionar porque Mann atacou a música e não as letras, o seu domínio artístico. Aliás, Mann não era músico, daí que todas as discussões sobre composição musical tenham sido completamente trabalhadas pelo próprio Adorno no livro. Mas a meio de "Doutor Fausto", Mann explica que a literatura era a arte dos franceses, sendo a música a verdadeira arte de tradição alemã, evocando-se continuamente os seus grandes representantes Bach e Beethoven. Temos assim o classicismo, o belo rítmico e tonal, contra o modernismo, niilista e atonal. Mann vê neste modernismo, tal qual professado por Adorno, todos os traços que definiriam a emergência do barbarismo na Alemanha. O racionalismo do humano voltando-se contra si próprio.
O primeiro problema surge pelo facto de Mann ter utilizado a invenção dos doze-tons de Arnold Schoenberg, como fundamento do seu personagem, usando de toda a retórica de Adorno para a explicitar aos comuns leitores, sem nunca, em parte alguma do texto admitir que a invenção pertencia a Schoenberg (problema colmatado mais tarde com uma nota no final do livro). Mas vai mais longe, já que Schoenberg era ele próprio judeu, e exilado na Califórnia, onde convivia com Mann e Adorno. Schoenberg, talvez por ser judeu e ter sentido na pele a força do anti-semitismo, tentou por meio da sua influência defender a separação e criação do Estado-judeu. Schoenberg temia o Holocausto, bastante antes deste ter acontecido. Contudo Mann recusou-se a aceitar tal, para Mann isso seria a aceitação dos princípios do fascismo, e daí a sua desavinda com Schoenberg.
"A Survivor from Warsaw, Op. 46" (1947) de Arnold Schoenberg
Mas talvez o maior questionamento de toda a obra, não só de Mann mas também de Adorno, e que começa com Schoenberg, mas se estende a todo o modernismo, sejam os fundamentos das suas interpretações. Olhar para o modernismo como mera racionalidade da forma, como objeto formal incapaz de produção de sentido é de um reducionismo extremo. Se podemos dizer que "Les demoiselles d'Avignon" são mais forma, poderemos dizer o mesmo de "Guernica"? E se podemos atacar o formalismo da atonalidade de Schoenberg, o que podemos dizer do dodecafónico "Survivor from Warsaw" de Schoenberg? No fundo, Mann deixou-se seduzir por uma excelente narrativa criada por Adorno, que não era mais do que uma interpretação, uma das muitas teorias explicativas da arte e realidade, e no caso concreto do Holocausto não têm faltado grandes teorias sobre o sucedido.
Quanto à experiência de leitura de "Doutor Fausto", não posso dizer que se compare com o trabalho apresentado em "Os BuddenBrook" nem em "A Montanha Mágica". A escrita continua magnificente, o tema como visto acima é poderoso e altamente instigante, mas Mann falha na construção de um romance. O que temos é um livro de não-ficção disfarçado de romance, Mann fala num trabalho de "montagem" em que foi cosendo "dados factuais, históricos, pessoais e literários" [1], que acaba por fazer dos personagens do romance meros peões ao serviço de tudo aquilo de que se quer verdadeiramente falar. É uma leitura que se alonga, porque não se percebe para onde nos quer levar, criando por vezes enfado, perdendo amiúde a atenção do leitor, mantendo no entanto a chama acesa por graça da elevação e beleza da escrita assim como pelo mundo de ideias que envolvem o romance.
Choque. É o que sentimos quando pela primeira vez nos vemos confrontados com negacionistas. Porque se passámos toda uma vida a acreditar em algo, não é fácil convencermo-nos que esse algo poderá ter sempre sido uma falácia. Kahneman fala de viés cognitivo, algo que nos faz tender para acreditar naquilo em que sempre acreditámos, mas fala também de um problema de autoridade. Se todas as autoridades dizem algo da mesma forma, como é que podemos acreditar em algo distinto? E então como devemos proceder? Juntar-nos à turba e manter a ideia que todos defendem, ou fazer o quê? O filme “Denial” (2016) mostra um possível caminho.
O negacionismo do Holocausto tem algumas décadas começou por volta dos anos 1970 e foi-se afirmando com o tempo, e nomeadamente com o esquecimento. Em 1985, Claude Lanzmann estreou um dos filmes mais relevantes da história do cinema, “Shoah” com um objetivo único, responder aos negacionistas. Não deixou pedra sobre pedra, ouviu todas as vozes, em todos lados, e respondeu cabalmente (ao longo de mais de 9 horas de filme) a quem quer que pretendesse continuar a negar. Contudo, como fica também demonstrado no final de “Denial”, um negacionista nunca se verga, uma rápida pesquisa no Google retorna vários textos de análise de "Shoah" denegando as suas demonstrações.
Em 1994 um desses negacionistas do Holocausto, o inglês David Irving, resolveu processar a professora americana de História, Deborah Lipstadt, pelo que tinha dito no seu livro, "Denying the Holocaust" (1993), a propósito das suas negações. A Penguin e a autora, não aceitaram retirar as declarações do livro, e foram para tribunal defender o livro. Para o efeito, foram confrontados com a obrigatoriedade de demonstrar que os trabalhos de negação do holocausto apresentados por Irving mais não eram que mentiras.
Precisamos de treinar a sociedade para questionar a informação que lhe chega, venha por que fonte venha. Precisamos de educar as crianças para questionarem as imagens que lhes entram em casa pela televisão ou internet. Uma sociedade que questiona é uma sociedade mais preparada para o desconhecido, é uma sociedade mais consciente. Do nosso lado, enquanto investigadores, somos treinados para questionar até às últimas consequências; para desde o início assumir que a verdade simplesmente não existe; que tudo o que hoje parece ser, amanhã pode já não o ser. Mas, quando em nada se acredita, como é que construímos a realidade que nos rodeia?
É preciso estabelecer diferenças, duvidar não é o mesmo que negar. Duvidar é o que todos devemos fazer, cientistas, crianças ou simples cidadãos. Duvidar é manter a mente aberta para a possibilidade de rebate daquilo que nos foi apresentado, mas implica aceitar enquanto não existir prova em contrário. Negar é distinto, porque não aceita a dúvida, defende a certeza. Por isso a negação vai contra si própria, já que ao apresentar-se sob a capa de dúvida da verdade da maioria, afirmando-se como alternativa factual, exige a crença.
Os cientistas têm sido atacados por defenderem esta postura de questionamento inequívoco. Porque ao fazê-lo instigam a sociedade a duvidar de tudo, principalmente dos especialistas, da imprensa e da ciência. Mas adotar uma posição de questionamento não pode de forma alguma ser comparado a uma postura de negação. O que falta é literacia. É verdade que não ajuda termos académicos nas televisões a quebrar estas linhas, como ainda recentemente pudemos ver na televisão portuguesa, uma académica nacional arrogar-se, a partir do preceito de dúvida, na negação das alterações climáticas em curso. Menos ajuda ainda quando no momento atual, temos um dos países mais influentes na cultura ocidental, a ser governado por pessoas que defendem a existência de “factos alternativos” e vivem num mundo de negação de tudo o que não lhes interessa.
Filme monumento, no qual a palavra é elevada a estatuto indiferente ao meio, fazendo de “Shoah” um artefacto que está para além do cinema e da literatura. 9h26m de vozes ilustradas por caras e espaços que nos contam o que os olhos viram e recriam para o espectador um mundo que inacreditavelmente existiu.
Shoah é a palavra hebraica usada para referenciar o Holocausto
Claude Lanzmann passou 11 anos a trabalhar para este documentário, tendo definido algumas linhas de partida, de que não se afastou, e que serviram na acentuação de uma estética documental naturalista: não foram usadas quaisquer imagens de arquivo, não foi usada música, nem foi usado qualquer efeito sonoro ou gráfico, nem sequer na etiquetagem dos espaços ou pessoas. Aquilo que vemos são apenas os espaços que a câmara capta nos locais em que os eventos aconteceram, e as caras de quem fala sobre o que aconteceu nesses locais.
“Shoah” é um testemunho polifónico vivo e irrepetível. Grande parte das pessoas entrevistadas e sobreviventes do Holocausto, passados 76 anos sobre o acontecido, já desapareceram. O que nos é dito aqui, fica para a memória da espécie humana, e é por tal um documento de valor inestimável. “Shoah” dá-nos a experienciar o horror, mas de uma forma racional, sem estilhaçar as nossas emoções, sem nos obrigar a virar a cara, o impacto dá-se dentro de nós, por meio das palavras que evocam ideias e experiências que despoletam sentimentos.
“The greatness of Claude Lanzmann's art is in making places speak, in reviving them through voices and, over and above words, conveying the unspeakable through peoples' facial expressions.” Simone de Beauvior
Não é um filme sobre o qual valha muito dissertar sobre as qualidades estéticas, apesar de presentes e imensamente poderosas, desde a cinematografia ao ritmo da montagem, que tornam a obra uma experiência intensa. Por outro lado, são muitas as evidências apresentadas que nos surpreendem, apesar de a maioria de nós ter visto e lido centenas de obras sobre o sucedido. Da simplicidade aberrante, do uso de um camião e o seu próprio monóxido de carbono para matar dezenas de pessoas de uma vez, às técnicas de propaganda psicológica para domesticar e adormecer as populações, não existem adjetivos que qualifiquem.
No final ficam algumas certezas: a espécie humana é capaz do melhor e do pior; a nossa essência assenta na sobrevivência e essa está biologicamente ligada à discriminação do outro, do que é diferente. Os Judeus foram perseguidos desde sempre pela sua diferença, e passados 2000 anos o melhor que conseguimos fazer foi ditar o seu total extermínio. A diferença corrompe-nos, temos de ser melhores, temos de ser capazes de controlar os nossos instintos ou acabaremos por nos eliminar a nós mesmos enquanto espécie deste planeta.