junho 10, 2022

O Cérebro em Busca de Si Mesmo (2022)

O livro "The Brain in Search of Itself" (2022) presta uma necessária homenagem a uma importante figura da ciência do início do século passado, o espanhol Santiago Ramón Y Cajal (1852-1934), responsável pela descoberta da célula base do nosso cérebro, o neurónio. Considerado um dos pais da disciplina das neurociências, foi agraciado com o Nobel em 1906, com o que contribuiu para uma revolução no reconhecimento das ciências espanholas. Ao longo das curtas 450 páginas, Benjamin Ehrlich dá-nos a conhecer não apenas a vida de Cajal, o seu amor pela ciência e arte, mas também a vida em Espanha — de Zaragoza a Madrid, passando por Valencia e Barcelona — no fim do século XIX e início do século XX, assim como as principais teorias que conduziram à descoberta da fisiologia do nosso sistema nervoso. 

"When I was about eight or nine years old [early 1860s], I suppose, I already had an irresistible mania for scribbling on paper, drawing ornaments in books, daubing on walls, gates, doors, and recently painted facades, all sorts of de­signs, warlike scenes, and incidents of the bull ring. A smooth white wall exercised upon me an irresistible fascination.

Whenever I got hold of a few cents I bought paper or pencils; but, as I could not draw at home because my parents considered painting a sinful amusement, I went out into the country, and sitting upon a bank at the side of the road, drew carts, horses, villagers, and whatever objects of the countryside interested me. Of all these I made a great collection, which I guarded like a treasure of gold. I took pleasure also in adorning my drawings with colors, which I obtained by scraping the paint from the walls or by soaking the bright red or dark blue bindings of the little books of cigarette paper, which at that time were painted with soluble colors. I remember that I attained great skill in extracting the dye from colored papers, which I employed also in place of brushes damped and rolled up in the shape of a stump; an occupation which was forced upon me by the lack of a box of paints and of money to buy them." 

-- Santiago Ramón y Cajal em "Recuerdos de mi vida" (1901), excerto da tradução inglesa da MIT Press

Cajal começou a desenhar em criança, e sempre preferiu a arte à ciência enquanto estudante. Mas teve um pai que obsessivamente o conduziu ao amor pelas ciências médicas. Desde o ensino de línguas ao assalto a cemitérios em busca de ossadas para ensinar o filho sobre anatomia, muito do que Cajal viria a ser deve-o a ele, já que as escolas por onde passou não fizeram qualquer esforço por acarinhar a sua curiosidade. Mais tarde, as sua competências artística e científica viriam a permitir-lhe criar as primeiras representações visíveis do neurónio. Não apenas criando métodos para elaborar tintas que permitiam distinguir as células no microcópio, mas depois nos esboços que criava, simplificando a complexidade que visualizava no microscópio. Isto era possível também graças à sua extraordinária memória visual, que lhe permitia "manter imagens de seis ou sete secções de uma só vez na sua mente e sintetizá-las num modelo à escala real".

"Fases de desenvolvimento do neurónio" (Foto e texto do livro Ehrlich)

Um dos elementos mais fascinantes no trabalho de Cajal assenta na sua defesa da teoria da autonomia dos neurónios contra a teoria "reticular". Esta segunda, defendida pelo seu rival, nobelizado no mesmo ano, Camillo Golgi, dizia que as células do sistema nervoso estavam todas interligadas, com Golgi a recusar-se mesmo adotar a designação de neurónio. Cajal, com as suas técnicas de corte e coloração, a chamada histologia, demonstrou como as células nervosas se apresentavam completamente isoladas umas das outras, comunicando por impulsos entre si e em grupos, permitindo assim que quando uma área do cérebro se danifica o resto do cérebro pode continuar a funcionar normalmente.

"Comunicações sensório-motoras de acordo com Golgi (I) e Cajal (II); note-se como as fibras em I são contínuas, enquanto as fibras em II nunca se tocam." (Foto e texto do livro Ehrlich)
"In the late nineteenth century, most scientists believed that the brain was composed of a continuous tangle of fibers, as serpentine as a labyrinth. Cajal produced the first clear evidence that the brain is composed of individual cells, later termed neurons, fundamentally the same as those that make up the rest of the living world. He believed that neurons served as storage units for mental impressions, such as thoughts and sensations, which combined to form our experience of being alive: “To know the brain is equivalent to ascertaining the material course of thought and will,” he wrote. The highest ideal for a biologist, he declared, is to clarify the enigma of the self. In the structure of neurons, Cajal thought he had found the home of consciousness itself (...) “The mysterious butterflies of the soul,” Cajal called them, “whose beating of wings may one day reveal to us the secrets of the mind.”" 
-- Excerto do livro de Ehrlich
"Células neurogliais sobre matéria branca do cérebro" (Foto e texto do livro Ehrlich)

A excelência do trabalho de Ehrlich assenta no esforço que fez ao cruzar a grande quantidade de memórias deixadas por Cajal (2 livros de memórias com quase mil páginas, e muitos cadernos de diários e notas) com muitas outras referências (de jornais da época a diários de outras personalidades que com Cajal conviveram) que lhe permitiu criar um olhar bastante mais neutro sobre os feitos e defeitos de Cajal. A título de exemplo, Cajal gostava de não dar valor ao Nobel recebido, mas 5 anos antes de o receber obrigou a universidade em que trabalhava a produzir todo um pequeno livro com fotografias suas e principais publicações e enviar para todos os outros centros e universidades internacionais. Este caso em particular não mostra só um pouco mais sobre Cajal, mostra também como funciona a sociedade e o reconhecimento pela mesma, não existem acasos, é preciso trabalhar para o reconhecimento porque este não cai do céu.

Não menos interessante é perceber a angústia em que vivia Cajal no final do século XIX com a discriminação a que o Sul da Europa era votada no domínio da ciência. E no entanto, quando em 1906 se atribuiu o Nobel da Medicina para a descoberta do neurónio, são eleitos dois médicos dessa geografia, um de Espanha e outro de Itália. Melhor só mesmo a sua principal obra, "Textura do Sistema Nervoso do Homem e dos Vertebrados" (1899-1904), publicada em 3 volumes, ser considerada o texto fundacional das neurociências, tal como "A Origem das Espécies" de Darwin é para a biologia evolutiva. 

Ao longo da sua vida Cajal, e particularmente depois do Nobel e reconhecimento que lhe permitiu lançar uma quantidade enorme de atividades e institutos científicos em Espanha, confraternizaria com muitos dos grandes nomes internacionais da sua época como Paul Valéry, Igor Stravinsky, John Keynes, Alexander Calder, Henri Bergson, Le Corbusier, e ainda Marie Curie e Einstein, e em Espanha com nomes como Federico García Lorca, Salvador Dalí e Luis Buñuel, estes último trabalharia nos laboratórios de Cajal, e  haveria de criar a cena icónica do corte do olho em "Un Perro Andaluz" (1929) seguindo os mesmos métodos usados no laboratório de Cajal para seccionar córneas.

Para fechar, o livro é documental, não-ficcional, mas a escrita de Benjamin Ehrlich é tão conseguida, no modo como descobre e enfatiza cada conquista e facto da vida de Cajal, sem nunca esquecer nos casos mais problemáticos de nos oferecer perspectivas complementares, que a leitura acaba diferindo pouco, em prazer, do tradicional romance. Ajuda muito que a personagem de Cajal seja uma figura com tanta história, e acima de tudo um apaixonado pela descoberta científica.

5/5

Atualização 22.6.2022: na passada quarta-feira, o novelista Benjamín Labatut fez uma recensão do livro para o NYT, "The Picaresque Life of the Man Who Modernized Neuroscience".

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