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setembro 24, 2015

A história da Naughty Dog

Não teria sido possível a existência de “The Last of Us” (2013) sem “Uncharted 2” (2009). Esta é uma realidade por vezes pouco evidente, mas que fica bem clara neste documentário, "Naughty Dog 30th Anniversary" (2014) que retrata a história do nascimento, em 1984, de uma pequena empresa independente, que se aliou a Electronic Arts e foi entretanto adquirida pela Sony, mas que sempre funcionou com grande grau de autonomia.


Por mais fantástica que tenha sido a história da Naughty Dog, por vezes com boas doses de sorte, outras com muito empenho e dedicação, existem três ingredientes nesta história que fundaram a base que permitiu a criação da singular obra que é "The Last of Us":

"Naughty Dog 30th Anniversary" (2014)



1 - Desejo de ir além,

Ao longo deste documentário, podemos ver como isto esteve sempre presente na cultura dos fundadores, fazendo parte do DNA da empresa até hoje. Só isso justifica que a empresa tenha aguentado 30 anos ininterruptos de produção e criação de videojogos. A vontade por criar algo novo, melhor, diferente e não apenas mais do mesmo, foi o que permitiu manter o efeito de surpresa, projeto a projeto, e assim elevar e manter a motivação de todos.

Isto fica por demais evidente quando em 2009, depois do gigantesco sucesso de “Uncharted 2” a Naughty Dog em vez de se limitar a investir tudo em “Uncharted 3”, avançou com um projecto completamente novo, um projecto não meramente secundário. A equipa que nos tinha dado “Uncharted 2” (Diretores: Bruce Straley e Amy Hennig; Designers: Richard Lemarchand e Neil Druckmann) foi dividida em duas, e cada uma seguiu com o seu projecto, Amy Hennig e Richard Lemarchand asseguraram a continuação da saga Uncharted; já Bruce Straley e Neil Druckmann foi-lhes dado carta branca para lançar um universo de jogo completamente novo. Ou seja, ao contrário da ideia de que em equipa vencedora não se mexe, aqui arriscou-se, porque se queria mais, se queria fazer diferente, se queria ir além: “It’s never good enough!”


2 - Conhecimento colaborativo, 

Jason Rubin refere no final do filme, mas nunca é demais repetir, uma equipa colectiva para criar videojogos, não se cria simplesmente juntando meia-dúzia de pessoas, por muito competentes que sejam, são precisos anos de colaboração para criar rotinas, para que as pessoas conheçam o que cada um sabe melhor, e consigam verdadeiramente interagir. Isto é tanto mais fundamental quando está em causa criatividade e inovação, que depende totalmente da interação e cruzamento de ideias entre vários seres humanos no tempo, até que surjam coisas verdadeiramente novas, distintas: “You have to trust the people around you. On your own your is no way.”


3 - Almofada “Uncharted 2”,

Almofada financeira, mas também de auto-estima, e essencialmente de conhecimento acumulado. “Uncharted 2” foi um enorme sucesso tendo garantido à empresa enorme estabilidade e potencial económico para investir e falhar, tendo tornado mais fácil não apenas lançar-se na criação da terceira parte, mas ao mesmo tempo lançar todo um segundo pipeline, em paralelo, de produção à mesma escala para criar “The Last of Us”. Além da componente financeira, todo os envolvidos sentiram forte recompensa pelo trabalho desenvolvido, por meio não apenas das vendas mas também das excelentes críticas e análises que foram lendo ao seu trabalho. Sabiam que agora existia a pressão para ir além do 2, mas sabiam que tinham sido capazes de surpreender toda uma audiência imensamente exigente, isso garantiu altos níveis de rendimento criativo a toda a equipa.

Por fim, “Uncharted 2” não foi um mero sucesso de vendas ou de crítica, foi mais que tudo, a conquista de um pináculo de realização técnica no campo da criação e linguagem dos videojogos. Na componente técnica a criação da base que ficou conhecida como “active cinematic experiences”, responsável por colocar a narrativa a dominar a acção e jogabilidade, mas também pelas espetaculares sequências em que a dinâmica cinematográfica se cruza totalmente com a dinâmica de jogo, criando inovadoras cutscenes de acção jogáveis (sendo o melhor exemplo a sequência do comboio).

setembro 17, 2013

Porque é inovador, "The Last of Us"?

"The Last of Us" (2013) é uma obra-prima, constituída por brilhantes momentos de cinematografia, jogo, e interatividade, que nos oferecem uma das melhores experiências dramáticas alguma vez apresentadas no formato de videojogo. É provavelmente o videojogo mais bem desenhado até hoje em termos de storytelling, com enorme coerência e unidade criadas através dos três arcos, perfeitamente delineados, de um conjunto de personagens fortes, dimensionais e extremamente empáticos. É tudo isto, mantendo a história encerrada, não permitindo qualquer controlo por parte do jogador, que assume um lugar de testemunha da história, próximo do espectador ou leitor, mas diferentemente acedendo de modo participativo à representação dessa história.

"The Last of Us" (TLOUS), é o natural sucessor de "Uncharted 2" (2009), e supera-o porque em termos dramáticos vai aonde "Uncharted 2" não tinha conseguido ir. Aqui temos aventura, mas temos essencialmente um conjunto de pessoas que vive e experimenta uma situação complexa, cheia de conflitos, dilemas e contradições, sendo capaz de nos fazer sentir por eles, e com eles. Temos aquilo que sempre nos prometeram, a emoção mais pura do drama misturada com a emoção da interatividade.

É uma obra carregada de pequenos detalhes, que criam momentos de deslumbramento deliciosos, que nos tocam e ficam colados ao nosso imaginário, muito depois de termos deixado de jogar. Não vou entrar na discussão dos detalhes, porque o jogo foi já amplamente dissecado pelos restantes media. Deixarei apenas algumas notas breves sobre alguns dos momentos técnicos mais impressionantes abaixo, e centrarei a minha análise na tentativa de enquadrar o videojogo no seio dos media interativos.

A primeira grande questão que nos colocamos é, será que TLOUS vai para além da perfeição? É meramente perfeito, ou existem aqui novas conquistas para o meio dos videojogos? Uma segunda questão passa por discutir o modo como o jogo permite a participação do jogador. De que tipo de interatividade estamos a falar? É este o tipo de storytelling interativo que queremos para os videojogos? Não era suposto os videojogos irem além?

Respondendo à primeira questão, julgo que se torna inevitável relembrar o último grande jogo da PS2, "God of War" (2005). Os discursos em redor de GoW e TLOUS assemelham-se bastante. GoW representou na altura, em termos técnicos, uma superação da tecnologia disponível, assim como TLOUS agora em relação à PS3. GoW foi aclamado, não por inovar o meio dos videojogos, mas por fazer tudo de forma perfeita, principalmente por seleccionar um conjunto de excelentes mecânicas de gameplay do género acção-aventura da época, e integrá-las de forma coesa e harmoniosa. Nesse sentido, lendo a maior parte do que se disse sobre TLOUS, julgo que se está a dizer o mesmo, embora em épocas diferentes, com diferentes tecnologias, e novas mecânicas entretanto desenvolvidas no meio. E se eu concordo com esta caracterização, tanto de GoW como agora de TLOUS, não concordo que TLOUS se tenha ficado pela mera da integração do conhecimento existente. TLOUS vai para além de GoW, vai para além de Uncharted 2, vai para além de Heavy Rain. TLOUS representa o atingir de um novo patamar para o meio dos videojogos. De que forma?

A inovação de TLOUS realiza-se na forma como este potencia a criação de uma experiência interativa profundamente dramática no jogador, algo que até agora só podíamos encontrar no cinema ou literatura. Não falo apenas da história, da forma como nos é contada nas cutscenes, falo do todo. O que impressiona e surpreende em TLOUS, é a forma como os criadores conseguiram pegar em todas as dimensões do meio dos videojogos e as conseguiram unificar para trabalhar para um mesmo fim. A história, o enredo, os personagens, os diálogos, a direção de atores, o design de som, os cenários, a música, a interatividade, o gameplay, a cinematografia, a atmosfera, a IA, a modelação, a animação... Todas estas dimensões foram desenvolvidas segundo altíssimos padrões de qualidade. Mas essencialmente todas estas dimensões foram desenvolvidas com um mesmo objectivo, e integradas para atingir esse mesmo objectivo, contar uma história permitindo ao receptor que participasse na descoberta dessa história. Como é que o videojogo realiza isto?

O principal indicador da qualidade da inovação na experiência advém de um dos principais motores da linguagem dos videojogos, o sentimento de progressão, que aqui trabalha em total sincronia com a progressão dos arcos narrativos da história. Chegamos a um mundo novo, desconhecido, e ainda nem percebemos do que se trata e já nos tiraram o tapete com um prólogo devastador, a nós e ao nosso personagem, Joel. Damos assim início ao jogo a partir do zero, sem grande destreza, sem grande resistência, sem grandes competências, sem grandes armas, e tal como o nosso personagem, vamos ser obrigados a evoluir, a aprender, a crescer. Assim a história contextualiza e cria a motivação para as nossas ações, enquanto a jogabilidade condiciona e guia o nosso processo de aprendizagem e progressão. A história avança, e o nosso personagem vai-se abrindo, amadurecendo na sua relação com o companheiro, a personagem de Ellie. As nossas ações tornam o personagem mais forte, a história em seu redor adensa-se, ele cresce no jogo, e nós crescemos com ele. Ellie assume as nossas interrogações, espantos e expectativas para com Joel, dá-lhes corpo, conduzindo-nos através da dimensão psicológica de Joel. No final Joel é um homem novo, mais confiante, mais capaz, ultrapassou um vale de emoções negativas, e nós com ele. Ellie cresceu, ao tentar socorrer Joel das suas amarguras, passou de menina indefesa a mulher de armas, capaz de enfrentar as amarguras de uma vida cheia de condicionantes, como aquela que se vive nesta realidade alternativa.

Se existe algo em que TLOUS se afirma, e contribui para desenvolvimento do meio, é ao assumir que a progressão da jogabilidade deve ser síncrona com a progressão narrativa. O jogador precisa de sentir que progride nas suas competências de mestria do jogo, e precisa de sentir que estas se traduzem, de alguma forma, na progressão da narrativa. E isto só é possível, e tão efetivo em TLOUS, porque não se trata de uma mera aventura, como em "Uncharted 2" (2009) ou "Tomb Raider" (2013), em que é o enredo (plot) que comanda a progressão narrativa, mas antes é um drama, em que predominam as complexidades dos personagens, sendo estas a conduzir a progressão da narrativa.

Sobre a ausência de interactividade com a história, é verdade que TLOUS ao contrário de "The Walking Dead" (2012) não permite que o jogador participe em decisões narrativas. O jogador é muito mais testemunha do que criador da realidade narrada. Isso não torna TLOUS um videojogo menor. Um videojogo não é obrigado a proporcionar interação com a história, porque isso não o torna mais interativo per se, e certamente não o torna mais capaz de expressar as ideias que pululam na mente dos seus criadores. O medium dos videojogos pode perfeitamente seguir uma via em que proporciona interação apenas ao nível da representação da história, que é o que aqui temos, e temos na maior parte dos videojogos narrativos. Uma história linear, inalterável, a que nós acedemos por via da representação audiovisual, participando e contribuindo para a definição do seu modo de desvelamento, aproximando-nos, dessa forma, mais da mensagem que se quer contar.

Uma das áreas em que podemos apreciar a nossa interactividade a funcionar no desvelamento audiovisual da história, é exactamente no grau de violência experienciado no jogo. A violência gráfica apresentada é bastante elevada, acredito que poderia ser mais contida, apesar de compreender que garante um outro nível de realismo, que consegue criar um nível de imersão superior. Mas esta compreende uma escolha da nossa parte. Existe a opção de passarmos a maior parte dos inimigos sem os confrontar, em modo stealth, e posso dizer que por vezes, nesse modo, a ansiedade consegue ser superior à tensão dos momentos de luta. A violência está nas mãos do jogador, apesar de não poder mudar o rumo da história, o modo como participa nela, pode ser completamente diferente.

Precisamos de nos deixar do purismo da interatividade total, da liberdade total, porque uma história é sempre algo que alguém conta a outro alguém. A essência do ato narrativo, da produção de uma obra de arte, fundamenta-se na expressividade, no facto de alguém comunicar algo a outro. Quando entramos no reino da interatividade narrativa com a história, em que as nossas ações passam a moldar a história contada, começamos a abandonar o modo de recepção, e começamos a passar para o modo de criação. Passamos a querer testar, experimentar diferentes cenários e hipóteses, e analisar os seus resultados, entramos num modo criativo. Sendo este um modo que não só se afasta da ideia de história, como se afasta da ideia de jogo, para entrar no campo do brincar.

Não querendo dizer que é errado, de forma alguma, os videojogos são uma arte com um espectro estético muito alargado. Mas ao criarmos os nossos próprios mundos de história (ex. deambulando entre missões em Grand Theft Auto IV, 2008) ou mesmo universos completos (ex. Minecraft, 2011), tal como o fazíamos em criança no cantinho do nosso quarto com Playmobil ou Lego, passamos de receptores a criadores. Criamos novos sentidos, mas não podemos nunca esquecer, que o fazemos a partir do mundo de experiências que recepcionámos previamente. Por isso, para mim, a essência dos videojogos narrativos assume como principal função, o dar a experienciar novos mundos e ideias, no fundo contar uma história, de alguém para alguém. Experimentar com opções narrativas, agir sobre as motivações da história, decidir o caminho dos dilemas dos personagens, deve ser visto, não como videojogo narrativo, mas como brinquedo narrativo.

Isto não deve ser lido como algo de pejorativo, nem pouco mais ou menos, mas apenas e só como duas atividades distintas, da nossa forma de aceder ao mundo. Por um lado utilizamos as histórias dos outros, para aceder ao mundo exterior, para o compreender, para alargar a nossa compreensão do outro. Por outro lado, criamos histórias, brincando com as ideias, para nos obrigar a verbalizar o que se passa na nossa mente, e assim compreender aquilo de que somos feitos. São dois momentos distintos, receber e criar, e ambos de extrema relevância para os processos de aprendizagem e crescimento do ser.

Sobre as cutscenes. Tal como podemos parar e ler uma carta, parar e ouvir uma conversa num gravador de audio, também podemos parar para ver uma sequência cinemática, sem interação, que tal como o texto ou áudio, nos proporciona mais informação sobre o fundamento da história em questão. Aliás, TLOUS pode ser uma experiência completamente diferente se não pararmos para sorver esses elementos de história que nos vão sendo dados nas várias formas. A experiência foi desenhada como um todo, e é verdadeiramente multimodal, espera-se que o jogador entre no jogo, e o viva, tenha curiosidade em ler as notas, em ouvir os depoimentos, assim como parar para ouvir o que os personagens têm a dizer.

No final, TLOUS é um videojogo do género drama realista, que utiliza o subgénero das realidades alternativas como figura central, para encenar a dramatização da sobrevivência. E fá-lo de um modo sóbrio e maduro, abrindo uma enorme avenida para o futuro do storytelling, e principalmente do drama, nos videojogos.



Notas soltas finais, sobre alguns dos aspectos mais impressionantes: 

- No primeiro contacto com as imagens e vídeos do jogo, podemos sentir que a sua apresentação visual, detalhe, cor e luz, são de uma beleza absolutamente extasiantes. 20 anos depois do desastre, como estaria o planeta... É fácil sentir vontade de querer entrar por aquele universo adentro, em qualquer uma das estações... Mais detalhes no vídeo The Last of Us Development: Ep. 2 "Wasteland Beautiful", e para os interessados na concept art do jogo vejam o EP. 6 "The Beauty of Abandonement".

- O modo como o personagem responde à nossa interação. Poderá parecer até que ele não é 100% reativo, que reage mais lentamente por exemplo que Lara Croft. Mas isso é propositado. Pela simples razão de que visualmente é muito mais realista. Enquanto que Lara Croft parece um boneco de plástico a reagir às nossas interações, Joel, reage como se se tratasse de uma pessoa real, de carne e osso, com peso e inércia. Ainda há um ano tinha referido os problemas da animação de personagens jogáveis e agora a Naughty Dog parece estar a responder a esses problemas.

- O mesmo se pode dizer do modo como a câmara segue atrás do personagem, se coloca no lugar certo para dar indicações. A câmara aqui não está simplesmente ligada ao personagem seguindo-o para todo o lado, ela é autónoma, ela balança-se constantemente, contribuindo para o stress que o próprio jogo quer imprimir. É todo um trabalho de minúcia, cena a cena, jogando com as possibilidades dadas ao jogador, com aquilo que queremos garantir que ele vê, e com a emocionalidade que se quer passar em cada momento do jogo.

- Um outro campo em que TLOUS consegue criar alguns dos momentos de jogo mais sublimes é na Inteligência Artificial dos nossos companheiros (seja a Ellie, Tess, Bill, o irmão de Joel, ou Henry e o seu irmão Sam). Algo que me fez lembrar Yorda em "Ico" (2001), que por acaso foi utilizado como fonte de inspiração. Alguns desses momentos são discutidos no The Last of Us Development: Ep. 4 "Them or Us".

- A complexidade e maturidade narrativa em TLOUS fica em total evidência quando se arrisca a realizar auto-crítica dentro do próprio jogo. Falo de uma cena inicial em que Ellie se passa com a leitura de um livro de banda desenhada porque ele termina abruptamente com a expressão “To be Continued”, e ela diz que detesta “ganchos” narrativos. Algo que naquele momento faz todo o sentido, já que atravessamos uma fase em que somos levados de gancho em gancho, na história.

- Não sendo um jogo de espaço aberto, em muitas situações ao longo do jogo são-nos dadas várias opções de caminhos a seguir, não que tenham impacto na narrativa, mas servem para criar uma maior credibilidade e realismo espacial. Não sentimos tanto o confinamento artificial natural dos jogos lineares, que nos obrigam sempre a seguir um caminho único. Comparando com o excesso de marcas brancas largadas no espaço, para nos guiar em "Tomb Raider" (2013), só podemos concluir que o design do espaço em TLOUS é absolutamente perfeito.

- Um momento de interatividade de excelência acontece logo no início, quando passeamos pela cidade de carro à noite, e controlamos a cena a partir da filha de Joel. É brilhante, o modo como o mundo decorre à nossa volta e nós vamos passando por ele, mantendo a interatividade, decidindo o que ver, como ver e quando ver. É algo que já tínhamos visto em Uncharted, mas continua a impressionar.

- Mais perto do final temos uma outra sequência interativa, que apesar de parecer menos importante, é do melhor que o jogo tem para oferecer. Primeiro o jogo transfere-nos de um personagem jogável para outro, sem pedir licença, nem avisar, numa atitude pós-moderna em que dá por adquirido um jogador evoluído capaz de processar as descontinuidades. Aqui inicia-se a narrativa paralela que depois nos vai atirar para um espaço labiríntico, com visibilidade reduzidíssima pela neve que cai. Nesse ramo da narrativa, sentimos que estamos num espaço aberto, mas somos acossados por todo o lado, apesar de podermos ir em qualquer direção, desejamos que o jogo nos indique o caminho, nos dê alguma pista como parece ter dado até ali, mas sentimos que aqui estamos entregues a nós próprios, sentimos que o jogo nos abandonou. Estamos sós, o nosso personagem está só. À medida que avançamos, os diferentes ramos da narrativa paralela, vão-se aproximando, reunificando no final ambos os personagens jogáveis, fazendo-nos compreender que estes são o centro do nosso jogo, que são eles quem mais importa, e não o enredo.


Atualização 20.12.2013
"The Last of Us" é o jogo do ano no Top 10 Virtual Illusion, publicado na Eurogamer Portugal. Os restantes jogos jogados este ano podem ser vistos aqui.

Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

dezembro 24, 2009

Uncharted 2, o jogo ou filme


Uncharted 2, Among Thieves (2009) representa uma verdadeira aventura fílmica interactiva. A equipa de design estabeleceu como objectivo de partida recriar uma experiência visual ao nível do típico blockbuster de Hollywood, um filme de grande acção no qual o espectador pudesse controlar o personagem principal e participar no desfilar do filme. O objectivo da Naughty Dog foi conseguido, diria que em 90%. Falo do objectivo enunciado, porque como jogo, o portal Metacritic atribui-lhe a marca impressionante de 96 em 100, o que tendo em conta o modo de cálculo realizado pelo Metacritic implica uma maioria de notas máximas atribuídas pelas revistas da especialidade.

Uncharted 2 é uma mistura explosiva entre os elementos narrativos de aventura de Indiana Jones e os elementos de alta acção de filmes como Bourne The Ultimatum (2007). Fornece uma aventura do género "em busca de" e ao mesmo tempo recheia-a de acção electrizante colocando o jogador bem no centro nevrálgico de cada momento climático de explosões, corridas, perseguições e destruições. É um jogo tipicamente masculino, dada a dose de acção que contém, contudo pode facilmente apelar ao feminino pela beleza e detalhe que possui. Alguns excertos de críticas da Metacritic:
"A sumptuous adventure that enthrals from start to finish, a cast that you’ll fall in love with and a tale that’s better scripted, directed and paced than most Hollywood blockbusters." Telegraph (100)

"The spectacular combination of generation-defining visuals, high adventure and cinematic intensity makes Uncharted 2 absolutely essential." Playstation Official Magazine Australia (100)

"Uncharted 2 is a magnificent example of how this generation can infuse movie production quality with enjoyable gameplay and maintain a sense of fluidity throughout the feature presentation." Total Video Games (100)
Vejamos agora em detalhe os elementos do jogo:

a) Forma

a.1. Destaca-se o ambiente pela sua:
- Profundidade de campo, o constante trabalho de layering da focagem da zona de interesse expressivo em profundidade.
- Dimensão e detalhe dos cenários, são verdadeiramente impressionantes, cada zona nova onde chegamos dá vontade de rodar a câmara e apreciar a beleza e a dimensão do que nos rodeia em tempo real. Desde as selvas esverdeadas, ao urbano hiper-destruído, aos Himalaias a perder de vista e as cores vibrantes dos costumes do Tibete.
- A quase ausência de HUD é também muito importante, embora por vezes gostássemos ter um GPS, a experiência é no entanto diferente sem o mesmo.



a.2 Destaca-se a acção pelo:
- Movimento em grande velocidade de toda acção enquanto interagimos com a mesma (ex. cena do comboio, ou a dos saltos entre camiões).
- A imensidão de opções de acção, traduzida por exemplo nos tiroteios que podem ser realizadas a partir de qualquer zona do ambiente, podendo nós rodar e correr em várias direcções em busca do melhor local de tiro.
- Variedade de gameplay com plataformas, puzzles, combate corpo a corpo, stealth, third-person shooter.
- Música contemporânea com cheiro a Hollywood capaz de guiar a dramatização dos cenários e enfatizar as emoções correctas. Uma mistura entre Indiana Jones e 007.


b) Narrativa
Posso dizer que a narrativa de Uncharted2, suporta muito do que temos andado a defender nos últimos anos no modo de construção de uma narrativa mais emocional, contudo alguns dos problemas continuam por cá. Vamos analisar algumas dessas questões e lançar novas interrogações.


b.1 Com vários personagens “amigos” a suportarem o desenvolvimento do protagonista. 
O jogo apresenta cerca de 7 personagens à volta de Drake que se vão revelando ao longo do jogo, como amigos e inimigos, cometendo traições e ajudando-o em outras ocasiões. Todas as desventuras destes personagens ajudam a construir uma imagem da personalidade de Drake a traçar o seu perfil e a criar em nós uma empatia para com o mesmo. Sem dúvida que os personagens são um dos melhores elementos de Uncharted2 e por si só justificam já alguns objectivos conseguidos na arte dos videojogos.

b.2 Enredo rico e complexo o suficiente para manter o nosso interesse ao longo do jogo. 
Julgo que no âmbito da fábula teria sido interessante inserir um pouco mais de background sobre Marco Pólo, mas nada de grave, a viagem pelo Tibete compensa essa falta em certa medida. Em relação aos personagens a narrativa tem uma eficácia menor não por incapacidade intrínseca mas por razões que se prendem com um velho problema dos videojogos a “extensibilidade da experiência”. Ou seja a necessidade de fazer durar a narrativa para aguentar uma experiência maior, mais duradoura, faz com que esta comece a perder o seu potencial, fragmentando o seu poder e perdendo o encanto da coerência progressiva. Ou seja Uncharted 2 é uma experiência de storytelling quasi-perfeita até cerca de 75% do jogo, cerca das 10 horas, a partir daí começa a repetir-se, e começamos a sentir um claro alongar forçado da experiência. O atrasar do objectivo final é conseguido através da inserção de obstáculos e níveis que são desnecessários do ponto de vista da história podendo até gerar no jogador o entusiasmo da continuidade da jogabilidade. Contudo este retardamento que é feito sentir ao espectador não é devidamente recompensado pelo clímax final. Este funciona bem e justifica os tais 75%, mas não suporta os 25% enxertados no final da narrativa.


b.3 Do ponto de vista emocional
Em grande medida podemos ver aqui muitas das receitas de "emotioneering" de David Freeman algumas até algo exageradas pela repetição, nomeadamente os saltos para o precipício salvos in extremis pelo mão do colega que nos salva. Por outro lado a malha de personagens é perfeita e permite desenhar um grande leque de estímulos emocionais em Drake.


b.4 A narrativa desenvolve-se graças a inúmeras cenas não interactivas. 
Começo a indagar-me sobre esta minha fixação e obsessão com a interactividade plena. Pondero e questiono se a inserção de cenas não-interactivas pode ser aceite apenas como mais um elemento do artefacto interactivo. Em lado algum nos é dito que a interactividade tem de ser total, e se pensarmos mais uma vez nas regras de comportamento social muitas são as situações em que temos de nos manter parados, em que não podemos agir ou intervir para alterar o que se nos apresenta (ex. filas de espera, assistir a aulas ou conferências, viajar em transportes públicos). Agora isto também não pode servir como desculpa. Deve continuar-se a trabalhar no sentido de maximizar a interacção contínua, mas acima de tudo que as cenas não interactivas façam sentido, sejam sentidas como necessárias e contribuam efectivamente para a progressão da história assim como do enriquecimento da experiência do jogador. Neste sentido, é exactamente isso que Uncharted 2 faz na grande maioria das cutscenes. Estas servem de ponto de chegada ou partida em cada nó de acção. Servem ainda para introduzir cenas de grande complexidade e acção preparando assim o jogador. Servem para intensificar emocionalmente certas cenas, ao retirar o nosso poder de intervenção e colocando-nos em situações intensas. E servem fortemente para ajudar à progressão da narrativa e na criação desse sentimento no jogador.


Para fechar esta análise alguns detalhes sobre o objecto em concreto: o modo de jogo; a duração e localização; e o HD. Começando pela localização, esta é terrível, fiquei chocado. Tenho a dizer que esta é uma opinião formada apesar de ter iniciado o jogo na versão portuguesa. E isto quer dizer que por norma a primeira versão que vemos (ouvimos) torna-se naturalmente a preferida, tenho experiência disto com o cinema visto em Espanhol e Francês dobrado. A consola fez a escolha e joguei vários capítulos em Português. Até que fui rever alguns trailers e me pareceu que os personagens falavam num tom mais dramático dando uma maior profundidade à história e atmosfera. Foi então que passei para inglês e vi a grande diferença. Sinceramente não consigo perceber, apesar de existir uma clara vontade de ter um Drake bem-humorado “à la” Indiana Jones, não quer dizer que ele se torne num Conan O’Brian. E as personagens femininas perderam toda e qualquer sensualidade na voz o que altera e muito a narrativa, uma vez que elas representam a parte mais íntima da personalidade de Drake.


Sobre a duração e o modo de jogo. O jogo tem entre 13 a 15 horas dependendo da forma e do modo como se joga. O jogo é-nos apresentado com cinco modos possíveis: muito fácil, fácil, normal, difícil e hard-core. Esta é para mim uma decisão sempre difícil quando inicio um jogo. Por um lado a vontade de jogar sem perder demasiado tempo e sem ter de andar sempre em busca de dicas na Web. Mas por outro lado saber que se corre o risco de não aproveitar o jogo na sua integralidade, como por exemplo no nível de AI dos oponentes. Optei então pela 2ª opção, fácil, que o que faz é acima de tudo diminuir a duração dos combates, número de oponentes e activa um modo de dicas ao longo do jogo que nos vai fornecendo pistas sempre que o sistema detecta que estamos há demasiado tempo no mesmo local. Assim posso dizer que o modo “fácil” foi uma boa experiência, porque continuamos a ter bons níveis de AI, mas os personagens mais difíceis não precisam de horas infinitas para serem derrotados, assim como as dicas disponibilizadas em certos puzzles, e porque só disponibilizadas depois de várias tentativas falhadas da nossa parte, evitaram por completo a necessidade de walktroughs ou cheats.

Sobre a questão do HD, comecei por jogar numa TV standard de 32' e poucos níveis depois passei para uma 40' Full HD, a diferença é verdadeiramente impressionante. Só posso dizer que este jogo não pode ou não deve ser jogado em resolução standard (720x576). Perde-se toda uma riqueza de detalhe que potencia o nosso envolvimento e fica-se claramente a perder na experiência. Já agora o jogo é apenas 720p (1280X720) ou seja, não precisam de uma televisão Full HD, o simples HD Ready é suficiente.