"The Last of Us" (2013) é uma obra-prima, constituída por brilhantes momentos de cinematografia, jogo, e interatividade, que nos oferecem uma das melhores experiências dramáticas alguma vez apresentadas no formato de videojogo. É provavelmente o videojogo mais bem desenhado até hoje em termos de storytelling, com enorme coerência e unidade criadas através dos três arcos, perfeitamente delineados, de um conjunto de personagens fortes, dimensionais e extremamente empáticos. É tudo isto, mantendo a história encerrada, não permitindo qualquer controlo por parte do jogador, que assume um lugar de testemunha da história, próximo do espectador ou leitor, mas diferentemente acedendo de modo participativo à representação dessa história.
"The Last of Us" (TLOUS), é o natural sucessor de
"Uncharted 2" (2009), e supera-o porque em termos dramáticos vai aonde
"Uncharted 2" não tinha conseguido ir. Aqui temos aventura, mas temos essencialmente um conjunto de pessoas que vive e experimenta uma situação complexa, cheia de conflitos, dilemas e contradições, sendo capaz de nos fazer sentir por eles, e com eles. Temos aquilo que sempre nos prometeram, a emoção mais pura do drama misturada com a emoção da interatividade.
É uma obra carregada de pequenos detalhes, que criam momentos de deslumbramento deliciosos, que nos tocam e ficam colados ao nosso imaginário, muito depois de termos deixado de jogar. Não vou entrar na discussão dos detalhes, porque o jogo foi já amplamente dissecado pelos restantes media. Deixarei apenas algumas notas breves sobre alguns dos momentos técnicos mais impressionantes abaixo, e centrarei a minha análise na tentativa de enquadrar o videojogo no seio dos media interativos.
A primeira grande questão que nos colocamos é, será que TLOUS vai para além da perfeição? É meramente perfeito, ou existem aqui novas conquistas para o meio dos videojogos? Uma segunda questão passa por discutir o modo como o jogo permite a participação do jogador. De que tipo de interatividade estamos a falar? É este o tipo de storytelling interativo que queremos para os videojogos? Não era suposto os videojogos irem além?
Respondendo à primeira questão, julgo que se torna inevitável relembrar o último grande jogo da PS2,
"God of War" (2005). Os discursos em redor de GoW e TLOUS assemelham-se bastante. GoW representou na altura, em termos técnicos, uma superação da tecnologia disponível, assim como TLOUS agora em relação à PS3. GoW foi aclamado, não por inovar o meio dos videojogos, mas por fazer tudo de forma perfeita, principalmente por seleccionar um conjunto de excelentes mecânicas de gameplay do género acção-aventura da época, e integrá-las de forma coesa e harmoniosa. Nesse sentido, lendo a maior parte do que se disse sobre TLOUS, julgo que se está a dizer o mesmo, embora em épocas diferentes, com diferentes tecnologias, e novas mecânicas entretanto desenvolvidas no meio. E se eu concordo com esta caracterização, tanto de GoW como agora de TLOUS, não concordo que TLOUS se tenha ficado pela mera da integração do conhecimento existente. TLOUS vai para além de GoW, vai para além de
Uncharted 2, vai para além de
Heavy Rain. TLOUS representa o atingir de um novo patamar para o meio dos videojogos. De que forma?
A inovação de TLOUS realiza-se na forma como este potencia a criação de uma experiência interativa profundamente dramática no jogador, algo que até agora só podíamos encontrar no cinema ou literatura. Não falo apenas da história, da forma como nos é contada nas
cutscenes, falo do todo. O que impressiona e surpreende em TLOUS, é a forma como os criadores conseguiram pegar em todas as dimensões do meio dos videojogos e as conseguiram unificar para trabalhar para um mesmo fim. A história, o enredo, os personagens, os diálogos, a direção de atores, o design de som, os cenários, a música, a interatividade, o gameplay, a cinematografia, a atmosfera, a IA, a modelação, a animação... Todas estas dimensões foram desenvolvidas segundo altíssimos padrões de qualidade. Mas essencialmente todas estas dimensões foram desenvolvidas com um mesmo objectivo, e integradas para atingir esse mesmo objectivo, contar uma história permitindo ao receptor que participasse na descoberta dessa história. Como é que o videojogo realiza isto?
O principal indicador da qualidade da inovação na experiência advém de um dos principais motores da linguagem dos videojogos, o sentimento de progressão, que aqui trabalha em total sincronia com a progressão dos arcos narrativos da história. Chegamos a um mundo novo, desconhecido, e ainda nem percebemos do que se trata e já nos tiraram o tapete com um prólogo devastador, a nós e ao nosso personagem, Joel. Damos assim início ao jogo a partir do zero, sem grande destreza, sem grande resistência, sem grandes competências, sem grandes armas, e tal como o nosso personagem, vamos ser obrigados a evoluir, a aprender, a crescer. Assim a história contextualiza e cria a motivação para as nossas ações, enquanto a jogabilidade condiciona e guia o nosso processo de aprendizagem e progressão. A história avança, e o nosso personagem vai-se abrindo, amadurecendo na sua relação com o companheiro, a personagem de Ellie. As nossas ações tornam o personagem mais forte, a história em seu redor adensa-se, ele cresce no jogo, e nós crescemos com ele. Ellie assume as nossas interrogações, espantos e expectativas para com Joel, dá-lhes corpo, conduzindo-nos através da dimensão psicológica de Joel. No final Joel é um homem novo, mais confiante, mais capaz, ultrapassou um vale de emoções negativas, e nós com ele. Ellie cresceu, ao tentar socorrer Joel das suas amarguras, passou de menina indefesa a mulher de armas, capaz de enfrentar as amarguras de uma vida cheia de condicionantes, como aquela que se vive nesta realidade alternativa.
Se existe algo em que TLOUS se afirma, e contribui para desenvolvimento do meio, é ao assumir que a progressão da jogabilidade deve ser síncrona com a progressão narrativa. O jogador precisa de sentir que progride nas suas competências de mestria do jogo, e precisa de sentir que estas se traduzem, de alguma forma, na progressão da narrativa. E isto só é possível, e tão efetivo em TLOUS, porque não se trata de uma mera aventura, como em "
Uncharted 2" (2009) ou
"Tomb Raider" (2013), em que é o enredo (
plot) que comanda a progressão narrativa, mas antes é um drama, em que predominam as complexidades dos personagens, sendo estas a conduzir a progressão da narrativa.
Sobre a ausência de interactividade com a história, é verdade que TLOUS ao contrário de
"The Walking Dead" (2012) não permite que o jogador participe em decisões narrativas. O jogador é muito mais testemunha do que criador da realidade narrada. Isso não torna TLOUS um videojogo menor. Um videojogo não é obrigado a proporcionar interação com a história, porque isso não o torna mais interativo
per se, e certamente não o torna mais capaz de expressar as ideias que pululam na mente dos seus criadores. O medium dos videojogos pode perfeitamente seguir uma via em que proporciona interação apenas ao nível da representação da história, que é o que aqui temos, e temos na maior parte dos videojogos narrativos. Uma história linear, inalterável, a que nós acedemos por via da representação audiovisual, participando e contribuindo para a definição do seu modo de desvelamento, aproximando-nos, dessa forma, mais da mensagem que se quer contar.
Uma das áreas em que podemos apreciar a nossa interactividade a funcionar no desvelamento audiovisual da história, é exactamente no grau de violência experienciado no jogo. A violência gráfica apresentada é bastante elevada, acredito que poderia ser mais contida, apesar de compreender que garante um outro nível de realismo, que consegue criar um nível de imersão superior. Mas esta compreende uma escolha da nossa parte. Existe a opção de passarmos a maior parte dos inimigos sem os confrontar, em modo stealth, e posso dizer que por vezes, nesse modo, a ansiedade consegue ser superior à tensão dos momentos de luta. A violência está nas mãos do jogador, apesar de não poder mudar o rumo da história, o modo como participa nela, pode ser completamente diferente.
Precisamos de nos deixar do purismo da interatividade total, da liberdade total, porque uma história é sempre algo que alguém conta a outro alguém. A essência do ato narrativo, da produção de uma obra de arte, fundamenta-se na expressividade, no facto de alguém comunicar algo a outro. Quando entramos no reino da interatividade narrativa com a história, em que as nossas ações passam a moldar a história contada, começamos a abandonar o modo de recepção, e começamos a passar para o modo de criação. Passamos a querer testar, experimentar diferentes cenários e hipóteses, e analisar os seus resultados, entramos num modo criativo. Sendo este um modo que não só se afasta da ideia de história, como se afasta da ideia de jogo, para entrar no campo do
brincar.
Não querendo dizer que é errado, de forma alguma, os videojogos são uma arte com um espectro estético muito alargado. Mas ao criarmos os nossos próprios mundos de história (ex. deambulando entre missões em
Grand Theft Auto IV, 2008) ou mesmo universos completos (ex.
Minecraft, 2011), tal como o fazíamos em criança no cantinho do nosso quarto com Playmobil ou Lego, passamos de receptores a criadores. Criamos novos sentidos, mas não podemos nunca esquecer, que o fazemos a partir do mundo de experiências que recepcionámos previamente. Por isso, para mim, a essência dos videojogos narrativos assume como principal função, o dar a experienciar novos mundos e ideias, no fundo contar uma história, de alguém para alguém. Experimentar com opções narrativas, agir sobre as motivações da história, decidir o caminho dos dilemas dos personagens, deve ser visto, não como videojogo narrativo, mas como brinquedo narrativo.
Isto não deve ser lido como algo de pejorativo, nem pouco mais ou menos, mas apenas e só como duas atividades distintas, da nossa forma de aceder ao mundo. Por um lado utilizamos as histórias dos outros, para aceder ao mundo exterior, para o compreender, para alargar a nossa compreensão do outro. Por outro lado, criamos histórias, brincando com as ideias, para nos obrigar a verbalizar o que se passa na nossa mente, e assim compreender aquilo de que somos feitos. São dois momentos distintos, receber e criar, e ambos de extrema relevância para os processos de aprendizagem e crescimento do ser.
Sobre as
cutscenes. Tal como podemos parar e ler uma carta, parar e ouvir uma conversa num gravador de audio, também podemos parar para ver uma sequência cinemática, sem interação, que tal como o texto ou áudio, nos proporciona mais informação sobre o fundamento da história em questão. Aliás, TLOUS pode ser uma experiência completamente diferente se não pararmos para sorver esses elementos de história que nos vão sendo dados nas várias formas. A experiência foi desenhada como um todo, e é verdadeiramente multimodal, espera-se que o jogador entre no jogo, e o viva, tenha curiosidade em ler as notas, em ouvir os depoimentos, assim como parar para ouvir o que os personagens têm a dizer.
No final, TLOUS é um videojogo do género drama realista, que utiliza o subgénero das realidades alternativas como figura central, para encenar a dramatização da sobrevivência. E fá-lo de um modo sóbrio e maduro, abrindo uma enorme avenida para o futuro do storytelling, e principalmente do drama, nos videojogos.
Notas soltas finais, sobre alguns dos aspectos mais impressionantes:
- No primeiro contacto com as imagens e vídeos do jogo, podemos sentir que a sua apresentação visual, detalhe, cor e luz, são de uma beleza absolutamente extasiantes. 20 anos depois do desastre, como estaria o planeta... É fácil sentir vontade de querer entrar por aquele universo adentro, em qualquer uma das estações... Mais detalhes no vídeo
The Last of Us Development: Ep. 2 "Wasteland Beautiful", e para os interessados na
concept art do jogo vejam o
EP. 6 "The Beauty of Abandonement".
- O modo como o personagem responde à nossa interação. Poderá parecer até que ele não é 100% reativo, que reage mais lentamente por exemplo que Lara Croft. Mas isso é propositado. Pela simples razão de que visualmente é muito mais realista. Enquanto que Lara Croft parece um boneco de plástico a reagir às nossas interações, Joel, reage como se se tratasse de uma pessoa real, de carne e osso, com peso e inércia. Ainda há um ano tinha referido
os problemas da animação de personagens jogáveis e agora a Naughty Dog parece estar a responder a esses problemas.
- O mesmo se pode dizer do modo como a câmara segue atrás do personagem, se coloca no lugar certo para dar indicações. A câmara aqui não está simplesmente ligada ao personagem seguindo-o para todo o lado, ela é autónoma, ela balança-se constantemente, contribuindo para o stress que o próprio jogo quer imprimir. É todo um trabalho de minúcia, cena a cena, jogando com as possibilidades dadas ao jogador, com aquilo que queremos garantir que ele vê, e com a emocionalidade que se quer passar em cada momento do jogo.
- Um outro campo em que TLOUS consegue criar alguns dos momentos de jogo mais sublimes é na Inteligência Artificial dos nossos companheiros (seja a Ellie, Tess, Bill, o irmão de Joel, ou Henry e o seu irmão Sam). Algo que me fez lembrar Yorda em
"Ico" (2001), que por acaso foi utilizado como
fonte de inspiração. Alguns desses momentos são discutidos no
The Last of Us Development: Ep. 4 "Them or Us".
- A complexidade e maturidade narrativa em TLOUS fica em total evidência quando se arrisca a realizar auto-crítica dentro do próprio jogo. Falo de uma cena inicial em que Ellie se passa com a leitura de um livro de banda desenhada porque ele termina abruptamente com a expressão “To be Continued”, e ela diz que detesta “ganchos” narrativos. Algo que naquele momento faz todo o sentido, já que atravessamos uma fase em que somos levados de gancho em gancho, na história.
- Não sendo um jogo de espaço aberto, em muitas situações ao longo do jogo são-nos dadas várias opções de caminhos a seguir, não que tenham impacto na narrativa, mas servem para criar uma maior credibilidade e realismo espacial. Não sentimos tanto o confinamento artificial natural dos jogos lineares, que nos obrigam sempre a seguir um caminho único. Comparando com
o excesso de marcas brancas largadas no espaço, para nos guiar em "Tomb Raider" (2013), só podemos concluir que o design do espaço em TLOUS é absolutamente perfeito.
- Um momento de interatividade de excelência acontece logo no início, quando passeamos pela cidade de carro à noite, e controlamos a cena a partir da filha de Joel. É brilhante, o modo como o mundo decorre à nossa volta e nós vamos passando por ele, mantendo a interatividade, decidindo o que ver, como ver e quando ver. É algo que já tínhamos visto em Uncharted, mas continua a impressionar.
- Mais perto do final temos uma outra sequência interativa, que apesar de parecer menos importante, é do melhor que o jogo tem para oferecer. Primeiro o jogo transfere-nos de um personagem jogável para outro, sem pedir licença, nem avisar, numa atitude pós-moderna em que dá por adquirido um jogador evoluído capaz de processar as descontinuidades. Aqui inicia-se a narrativa paralela que depois nos vai atirar para um espaço labiríntico, com visibilidade reduzidíssima pela neve que cai. Nesse ramo da narrativa, sentimos que estamos num espaço aberto, mas somos acossados por todo o lado, apesar de podermos ir em qualquer direção, desejamos que o jogo nos indique o caminho, nos dê alguma pista como parece ter dado até ali, mas sentimos que aqui estamos entregues a nós próprios, sentimos que o jogo nos abandonou. Estamos sós, o nosso personagem está só. À medida que avançamos, os diferentes ramos da narrativa paralela, vão-se aproximando, reunificando no final ambos os personagens jogáveis, fazendo-nos compreender que estes são o centro do nosso jogo, que são eles quem mais importa, e não o enredo.
Atualização 20.12.2013
"The Last of Us" é o jogo do ano no Top 10 Virtual Illusion,
publicado na Eurogamer Portugal. Os restantes jogos jogados este ano podem ser vistos
aqui.
Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.