novembro 19, 2022

Imersão, literatura e videojogos

"A Oeste Nada de Novo" (1928) é uma leitura obrigatória sobre a I Grande Guerra (1914-1918), é um clássico. A particularidade do livro assenta numa escrita direta, a partir de uma primeira pessoa no interior da guerra; num tom quase confessional e em jeito de memórias que  apesar da passagem pela guerra do autor não o são; ao que se junta por fim uma perspectiva imparcial sobre o conflito. Esta abordagem oferece-nos assim uma experiência extremamente imersiva, pelo modo como se relata a partir do teatro de guerra, mas sem nos guiar ou procurar conduzir a qualquer tomada de posição sobre os diferentes lados do conflito. Em nenhum momento Erich Maria Remarque dá conta do que conduziu ao conflito, não fala das razões nem motivações de qualquer lado das trincheiras, nem se queixa ou culpa quem para ali o atirou. A imersão produzida coloca-nos em plena guerra, oferecendo-nos um olhar, o mais natural e inocente possível, sobre o estado das coisas por forma a obrigar-nos a questionar o fundamento de tudo aquilo que se vive na Guerra, algo que é profundamente contaminado pela força emocional contida em vários dos episódios experienciados pelo narrador.

A adaptação alemã da Netflix, por Edward Berger em 2022, aproxima-se apenas em parte deste feito. Segue bastante de perto os eventos originais do livro, mas paradoxalmente, apesar do narrador ser muito menos definido interiormente, nunca o ouvimos pensar, o seu lado exterior, os seus trejeitos e comportamentos, conferem-lhe uma particularidade pessoal que o distancia mais de nós. Paul Bäumer é aqui uma pessoa concreta, na qual não nos conseguimos imiscuir. Porque é singular na sua aparência, mas também porque nunca acedemos ao seu pensar. Apenas o podemos intuir pelo seu olhar, que é seu, sem nunca chegar a ser nosso. No livro, o pensar de Bäumer, porque contaminado de uma inocência, facilmente se universaliza e permite-nos entrar dentro de si, e em muitos momentos estar a ver pelos seus olhos e a sentir por si. No filme, Bäumer é alguém concreto, real na nossa frente, criando uma distância e impedindo que possamos ocupar a sua concha. No final, não ficamos indiferentes, mas não conseguimos deixar de sentir uma certa segurança a partir da distância a que claramente estivemos a assistir ao desfilar da guerra. Aquilo que nos devia fazer sofrer interiormente passa por vezes por deleite visual criado pelo espetáculo da guerra.

Diria talvez que a obra de Remarque presta-se pouco à adaptação a filme, pelo modo como o cinema nos obriga a empatizar com o narrador, sempre presente, e que funcionaria muito melhor numa adaptação a videojogo em primeira-pessoa, em que o narrador se deixa substituir totalmente pelas ações do jogador. Por outro lado, o videojogo teria dificuldade, tal como tem o filme, em lidar com o interior de Bäumer, em particular, os vários rasgos filosóficos sobre a condição humana na guerra.

"Uma ordem transformou estas figuras silenciosas em nossos inimigos, e uma ordem poderia voltar a transformá-los em amigos! Pessoas que nenhum de nós conhece assinam um documento numa mesa qualquer e, durante anos a fio, o nosso principal objetivo na vida passa a ser a única coisa que, normalmente, acarreta a condenação do resto do mundo e as penas mais pesadas perante a lei. Como é possível alguém fazer distinções deste tipo ao olhar para estes homens emudecidos, com caras de criança e barbas de apóstolo?! Qualquer cabo é mais inimigo dos recrutas, qualquer mestre-escola mais inimigo dos seus alunos do que estes prisioneiros o são em relação a nós! No entanto, voltaríamos a disparar sobre eles — se fossem libertados — e eles sobre nós."

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