Foi o primeiro livro que li de Teolinda Gersão e fiquei imensamente agradado pela competência da sua escrita. Elaborada, descritiva mas imaginativa. Quanto a este livro em concreto, não é um livro, mas um conto que foi expandido por via de duas cartas que o precedem e ajudam a introduzir e caracterizar o universo do conto. Quanto ao conto, é belo, apesar da sua tendência excessivamente descritiva, os laivos de realismo mágico elevam o historicismo biográfico a novela e criam uma experiência que termina com intensidade psicológica.
"The Magician", publicado no passado dia 7 de setembro, não foi o livro que esperava ler sobre Thomas Mann. A meio senti mesmo uma enorme desilusão, senti falta do que tinha imaginado que este livro seria. Tinha criado expectativas muito concretas. Mas Colm Tóibín surpreendeu-me. A partir desse meio, por via de toda a construção até ali, comecei a sentir cada vez mais Mann e o seu mundo. Continuo a sentir falta daquilo que eram as minhas expectativas, mas tenho de conceder que Tóibín criou uma obra admirável. Mann foi uma pessoa que viveu intensamente, mas interiormente, a ponto de nem a si mesmo (nos seus diários) se revelar. Alguém que passou pela vida, procurando sempre não perturbar nada nem ninguém, porque muito determinado em seguir o seu próprio caminho. Esta forma de estar levanta muitas objeções morais, mais ainda quando passou pela vida, mesmo nos momentos mais terríveis da guerra, com grande conforto. Mas o retrato oferecido por Tóibín é feito sem julgamentos nem endeusamentos, e talvez por isso mesmo, capaz de nos aproximar do que terá sido conviver com Mann.
Trago 3 pequenos livros — "Tonio Kroger" (118p), "Um Estranho Amor" (176p), "Indignação" (176p) —, 3 novelas aparentemente desconexas, mas que fui lendo e colocando na pilha de lidos sem me dar ao trabalho de parar para refletir e escrever. Tendo resolvido colmatar essa falta, percebi que faria sentido juntar a conversa sobre os 3 num texto único, desafiando-me a mim próprio em busca de relações. Desde logo, podem estabelecer-se entre "Tonio Kroger" e "Um Estranho Amor", já que ambas são novelas debutantes dos autores. No caso de "Indignação", sendo o oposto, porque é a 29ª obra de Roth, o seu conteúdo trata um "coming of age", aproximando-o de "Tonio Kroger".
“A Casa de Mr Biswas” (1961) parece, à primeira vista, uma regular saga familiar que extrapoladas as devidas distâncias culturais podemos aproximar do quadro criado por Mann com “Buddenbrooks” (1901), acrescendo o facto de ambas as obras se inspirarem em dados autobiográficos. A escrita de Naipaul difere bastante de Mann, menos rebuscada e bela, mas mais eficiente. Dito assim pode parecer que se ganhará com esta leitura apenas o acesso a um historial de costumes situado numa geografia distinta, Trindade e Tobago, contudo existe aqui algo mais. A longa tradição familiar, sustentáculo do romance de Mann, sofre aqui um enorme revés pelo enquadramento histórico da emigração que suporta as famílias do romance de Naipaul e dá conta do seu desenraizamento.
A capital de Trindade e Tobago, Port of Spain, nos anos 1940
Trindade e Tobago é um país formado por duas pequenas ilhas — Trindade, a maior, e Tobago — ao largo da costa da Venezuela. Com pouco mais de um milhão de habitantes, mas detentora de petróleo, apresenta hoje um nível de vida, em termos de PIB per capita, três vezes superior à Venezuela, sendo mesmo ligeiramente superior a Portugal. A ilha foi descoberta por Colombo no século XVI tendo estado sob controlo Espanhol até ao século XVIII quando passou para as mãos de Inglaterra. Mais importante para a compreensão do cenário da obra de Naipaul é o facto de em 1831 ter sido abolida a escravatura na ilha, libertando os escravos provenientes de África que acabariam por abandonar a agricultura. Para dar resposta ao problema, os ingleses lançaram um sistema de incentivo à emigração de habitantes da Índia para Trindade que duraria até 1917, consistindo na introdução de cerca de 150 mil indianos na ilha. VS Naipaul era descente dessa corrente migratória, que representa hoje cerca de 50% do total do país. Este enquadramento não surge no livro, mas é requerido para o contextualizar.
Seepersad Naipaul (1906–1953), com o seu Ford Perfect, pai de VS Naipaul e que serviu de base para criar Mr. Biswas.
Naipaul abre o romance de forma a criar uma elipse narrativa, dando conta do facto de Mr. Biswas, personagem principal, estar com 46 anos e a 10 semanas do dia da sua morte. Viajamos depois até ao dia do seu nascimento, para ao longo das mais de 500 páginas o acompanhar a si, à sua família, a da esposa e depois os seus filhos. A saga inicia-se com um tom humorístico forte, inclinado à ironia e sarcasmo, mas vai evoluindo, como que amadurecendo, para se tornar cada vez mais melancólica. Tal como o próprio título indica o foco é a casa, mas essa só aparecerá no final, até lá Mr. Biswas terá de penar, chegando a viver com toda a sua família — mulher e 4 filhos — enfiados num único quarto.
Mas a casa serve mais do que isso, ela é a alegoria da emancipação, da libertação final. Ao longo de todo o livro vemos Mr. Biswas progredir mas sempre debaixo da alçada de alguém, nomeadamente a partir do momento em que casa e entra no seio de uma família alargada, com algumas posses e que preserva tradições do país de origem, a Índia. Mr. Biswas vive dependente, buscando as mais diversas formas de fazer frente à opressão de que é alvo pela família da mulher. Tudo parece resumir-se sempre às casas onde vai vivendo, sempre sob os comandos da família da esposa, nas quais se torna difícil compreender quantas pessoas lá vivem e como cabem lá. O excesso de pessoas confere dinâmica, mas confere também um sentido de caos. As tradições pairam, mas apenas isso, o caos é dominante e tudo é volátil, faltam âncoras, tudo é demais e esgota quem ali vive. A possibilidade de viver em casa própria, com a família, é miragem libertadora mas vão ser precisas várias tentativas goradas para lá chegar. Aliás, podemos ver estas tentativas de libertação metáfora dos contratos que os ingleses faziam com as famílias da índia que os obrigavam a trabalhar durante anos em Trindade e Tobago para pagar as viagens e os alugueres dos espaços em que moravam quando chegavam.
A casa que serviu de base à Hanuman House onde vivia a família da esposa de Mr. Biswas com todas as suas irmãs.
A família Capildeo que serviu de base à família Tulsi, as 9 irmãs e os dois "deuses", da mulher de Mr. Biswas
Mas o que é mais interessante é o modo como Naipaul consegue levar-nos a sentir essa mesma libertação no final. Após centenas de páginas de andar para frente e para trás, de felicidade misturada com tristezas, de parecer impossível sair do mesmo lugar, e quando se sai apesar da casa não ser nenhuma cama de ouro, mas sendo deles, sendo daquela família que claramente a merece, é chegada a hora do fim de Mr Biswas. Batemos no início do livro e sentimos as páginas fecharem-se, como se nenhum outro final fosse possível. A casa e a libertação de Mr Biswas não representam apenas o crescimento, o deixar para trás, mas representam a criação de um verdadeiro porto seguro que provém de um sentimento telúrico que se liga intimamente com a responsabilidade de velar pela família. É por isso que Mr Biswas pode finalmente partir, é esse reconhecimento que produz em nós a sensação de libertação pelo dever cumprido, de luta encerrada.
Vale a pena ler também, de VS Naipaul, "A Curva do Rio" (1979).
"Doutor Fausto" (1947) pode ser lido como romance, e foi assim que o li, mas requer todo um enquadramento que deveria preceder qualquer edição do mesmo, para que não se torne em algo completamente incompreensível. Ainda que as obras se devam valer per se, obras com a densidade de "Doutor Fausto" requerem contexto, não apenas sobre o autor, mas especialmente sobre a sua génese. Sem isso, corremos o risco de nos colocar na posição de Italo Calvino aquando da sua leitura: "Eu passo as tardes aqui deitado nas pedras, de barriga ao sol, a ler Thomas Mann, que escreve muito bem sobre muitas coisas que são completamente incompreensíveis para mim” (1950).
Mann tinha 72 anos, tendo iniciado a sua carreira 50 anos antes, com a publicação de uma obra que para muitos escritores seria o derradeiro pináculo do virtuosismo de escrita, "Os Buddenbrook" (1901) (é a esta sua primeira obra que o Nobel faz referência, e não à "A Montanha Mágica" (1924), como esperaríamos). 50 anos depois, sempre a escrever livros, crónicas, cartas, peças, manifestos e discursos políticos, não transformariam o virtuosismo dessa escrita, mas transformariam completamente o seu intelecto, a sua capacidade para ler e descrever as entrelinhas do real. "A Montanha Mágica" tinha sido um demonstrativo disto mesmo, um partir da descrição das relações humanas dos seus personagens para a discussão dos motivos filosóficos subjacentes. "Fausto" vai muito para lá da "Montanha", já que deixa para trás completamente o foco dos elementos base do romance, os personagens e suas intrigas, para se entregar totalmente à discussão de conceitos e fundamentos teóricos de suporte à constituição da realidade.
Para compreender "Doutor Fausto", não basta enquadrar Mann como exilado na Califórnia pelo nazismo, e toda a destruição humana de um povo que grassava na Europa Central. É preciso situar nesse lugar de exílio duas outras pessoas, alemães também exilados, Theodor Adorno, crítico e filósofo de estética, e Arnold Schoenberg, compositor e teórico musical. Os três homens representam, nas suas áreas, pináculos da arte e cultura germânica, o que de certo modo pode explicar a sua relação, pois se se aproximaram no exílio, logo acabariam por se separar, desavindos os três. E no entanto, na exata mesma altura, em 1947, produziram os três, obras maiores das suas carreiras:
Thomas Mann (1875), "Doutor Fausto" (1947)
Theodor Adorno (1903), "Dialética do Iluminismo" (1947) (co-escrito com Max Horkheimer)
Arnold Schoenberg (1874), "Sobrevivente de Varsóvia" (1947)
Se destaco aqui estas três obras não é por terem apenas sido criadas por artistas alemães no exílio americano, e no mesmo ano, ou ainda porque as três obras são respostas à emergência, impacto e efeitos do Nacional Socialismo de Adolf Hitler na Europa, mas também porque as três estão ligadas na sua criação, relação dialógica estabelecida entre os três criadores, antes e depois da publicação das obras. E por isso para compreender qualquer uma destas obras em toda a sua extensão, é necessário compreender o que subjaz a cada uma delas individualmente.
"Doutor Fausto" apresenta-nos um personagem, Adrian Leverkühn, como um prodígio à nascença, sempre na frente dos seus pares e professores, que acabaria por desembocar tarde na música, e que por isso não poderia tornar-se um virtuoso do instrumento, mas tornar-se-ia num virtuoso da composição e por isso mesmo ansioso por inovar e transcender o status quo musical. Mann leva Adrian a conhecer o Diabo e a estabelecer o pacto faustiano, a partir do que então Adrian acaba a produzir a sua grande inovação musical (a que é dedicado todo o capítulo 22), na forma do sistema atonal ou dodecafonismo (invenção real de Schoenberg). Esta síntese é o núcleo de todo o livro, e ao mesmo tempo o que une Mann, Adorno e Schoenberg, e também o que os separará.
Para Mann, Adrian, personagem decalcado de Nietszche, é o representante do super homem: puro, inteligente e perfeito. Para quem os demais existem apenas para o seguir. Os seus ideais estão acima das necessidades e prazeres mundanos, interessa-lhe apenas atingir o zénite da perfeição, da eleição supra-humana. O mal estaria na Natureza que tudo corrói com a sua organicidade, incerteza, e imperfeição. Cabe ao Homem desenhar, delinear e construir a perfeição. Mann dá assim corpo ao mundo professado pelo Nacional Socialismo de Hitler.
Adorno, vinha trabalhando ideias relacionando o Iluminismo e a catástrofe alemã, tendo uma primeira versão de "Dialética do Iluminismo" surgido em 1944. Para Adorno (e Max Horkheimer com quem co-escreve a obra), a intervenção do Estado, tanto na forma do comunismo que grassava na URSS, como na forma do nacional socialismo que abraçava a Alemanha, ditava o fim Iluminista, apesar de paradoxalmente defenderem uma racionalização da produção artística, como se vê em Adrian. Segundo Adorno, a modernidade com toda a sua racionalidade e avanços científicos, não tinha sido capaz de libertar a sociedade, antes estava a fazer o seu contrário, daí o ataque à razão, por ter chegado ao estado de irracionalidade. O problema apresentava-se pela imposição do modelo de massas dessas ideologias, que levavam ao desaparecimento da individualidade e a liberdade humanas. Como Mann diz em "Doutor Fausto", “a liberdade é apenas outro termo para designar a subjetividade”, ou seja, é a partir da subjectividade que se pode elevar a inovação e transcendência artística e estética. Para Adorno, a produção cultural massificada pelo estado, base do seu conceito "indústrias culturais", não ofereceria "a revolução social" professada por Marx, mas antes o totalitarismo, capaz de pela homogeneização cultural adormecer a individuação e tornar as massas passivas. (Diga-se em abono da realidade de hoje, que o capitalismo não se diferencia muito destes modelos culturais, podendo nós ver essa mesma homogeneização a grassar nas playlists das rádios, nas tabelas de livros mais vendidos e nos filmes mais vistos, todos de Hollywood. A grande diferença é que a liberdade permitida pelo capitalismo abre espaço a nichos e franjas, acabando por paradoxalmente serem estas as responsáveis pelos avanços na estética da cultura dita de massas).
Assim, e se Mann e Adorno parecem sintonizar-se na crítica, o terceiro elemento da equação, Arnold Schoenberg, parece ter surgido nas mãos destes como ovelha a levar ao altar do sacrifício. Repare-se que Mann, ao seguir esta linha, apresenta o dodecafonismo, a invenção da vida de Schoenberg, não apenas como fruto de um pacto com o Diabo, mas como a encarnação do ideal Nazi. Nem Mann nem Adorno eram entusiastas do modernismo que para eles era apenas um sinal da racionalização na busca de uma suposta perfeição contra a imperfeição oferecida pela natureza.
Para entrar dentro da discussão e não apenas compreender mas sentir, já que de arte se trata, é necessário parar e voltar à produção artística do modernismo. Colocar como música de fundo, "Erwartung" (1909) de Arnold Schoenberg, o exemplo maior das suas composições atonais, fugindo ao sistema tonal, o modo mais harmónico e natural como ouvimos a música. Enquanto ouvimos, podemos pousar o nosso olhar sobre "Les demoiselles d'Avignon" (1907) de Picasso, em que o primeiro exemplar do cubismo, transfigura o modo como vemos e concebemos a representação tridimensional do real. E por fim, abrir "Ulisses" (1924), no seu capítulo final, e seguir o fluxo de consciência de James Joyce que foge a todo e qualquer modelo narrativo.
"Erwartung" (1909) de Arnold Schoenberg, Audio e Partitura
"Les demoiselles d'Avignon" (1907) de Picasso
"(...) I love flowers Id love to have the whole place swimming in roses God of heaven theres nothing like nature the wild mountains then the sea and the waves rushing then the beautiful country with the fields of oats and wheat and all kinds of things and all the fine cattle going about that would do your heart good to see rivers and lakes and flowers all sorts of shapes and smells and colours springing up even out of the ditches primroses and violets nature it is as for them saying theres no God I wouldnt give a snap of my two fingers for all their learning why dont they go and create something I often asked him atheists or whatever they call themselves go and wash the cobbles off themselves first then they go howling for the priest and they dying and why why because theyre afraid of hell on account of their bad conscience ah yes I know them well who was the first person in the universe before there was anybody that made it all who ah that they dont know neither do I so there you are they might as well try to stop the sun from rising tomorrow the sun shines for you he said the day we were lying among the rhododendrons on Howth head in the grey tweed suit and his straw hat the day I got him to propose to me yes first I gave him the bit of seedcake out of my mouth and it was leapyear like now yes 16 years ago my God after that long kiss I near lost my breath yes he said I was a flower of the mountain yes so we are flowers all a womans body yes that was one true thing he said in his life and the sun shines for you today yes that was why I liked him because I saw he understood or felt what a woman is and I knew I could always get round him and I gave him all the pleasure I could leading him on till he asked me to say yes and I wouldnt answer first only looked out over the sea and the sky I was thinking of so many things he didnt know of Mulvey and Mr Stanhope and Hester and father and old captain Groves and the sailors playing all birds fly and I say stoop and washing up dishes they called it on the pier and the sentry in front of the governors house with the thing round his white helmet poor devil half roasted and the Spanish girls laughing in their shawls and their tall combs and the auctions in the morning the Greeks and the jews and the Arabs and the devil knows who else from all the ends of Europe and Duke street and the fowl market all clucking outside Larby Sharons and the poor donkeys slipping half asleep and the vague fellows in the cloaks asleep in the shade on the steps and the big wheels of the carts of the bulls and the old castle thousands of years old yes and those handsome Moors all in white and turbans like kings asking you to sit down in their little bit of a shop and Ronda with the old windows of the posadas 2 glancing eyes a lattice hid for her lover to kiss the iron and the wineshops half open at night and the castanets and the night we missed the boat at Algeciras the watchman going about serene with his lamp and O that awful deepdown torrent O and the sea the sea crimson sometimes like fire and the glorious sunsets and the figtrees in the Alameda gardens yes and all the queer little streets and the pink and blue and yellow houses and the rosegardens and the jessamine and geraniums and cactuses and Gibraltar as a girl where I was a Flower of the mountain yes when I put the rose in my hair like the Andalusian girls used or shall I wear a red yes and how he kissed me under the Moorish wall and I thought well as well him as another and then I asked him with my eyes to ask again yes and then he asked me would I yes to say yes my mountain flower and first I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes."
Podemos questionar porque Mann atacou a música e não as letras, o seu domínio artístico. Aliás, Mann não era músico, daí que todas as discussões sobre composição musical tenham sido completamente trabalhadas pelo próprio Adorno no livro. Mas a meio de "Doutor Fausto", Mann explica que a literatura era a arte dos franceses, sendo a música a verdadeira arte de tradição alemã, evocando-se continuamente os seus grandes representantes Bach e Beethoven. Temos assim o classicismo, o belo rítmico e tonal, contra o modernismo, niilista e atonal. Mann vê neste modernismo, tal qual professado por Adorno, todos os traços que definiriam a emergência do barbarismo na Alemanha. O racionalismo do humano voltando-se contra si próprio.
O primeiro problema surge pelo facto de Mann ter utilizado a invenção dos doze-tons de Arnold Schoenberg, como fundamento do seu personagem, usando de toda a retórica de Adorno para a explicitar aos comuns leitores, sem nunca, em parte alguma do texto admitir que a invenção pertencia a Schoenberg (problema colmatado mais tarde com uma nota no final do livro). Mas vai mais longe, já que Schoenberg era ele próprio judeu, e exilado na Califórnia, onde convivia com Mann e Adorno. Schoenberg, talvez por ser judeu e ter sentido na pele a força do anti-semitismo, tentou por meio da sua influência defender a separação e criação do Estado-judeu. Schoenberg temia o Holocausto, bastante antes deste ter acontecido. Contudo Mann recusou-se a aceitar tal, para Mann isso seria a aceitação dos princípios do fascismo, e daí a sua desavinda com Schoenberg.
"A Survivor from Warsaw, Op. 46" (1947) de Arnold Schoenberg
Mas talvez o maior questionamento de toda a obra, não só de Mann mas também de Adorno, e que começa com Schoenberg, mas se estende a todo o modernismo, sejam os fundamentos das suas interpretações. Olhar para o modernismo como mera racionalidade da forma, como objeto formal incapaz de produção de sentido é de um reducionismo extremo. Se podemos dizer que "Les demoiselles d'Avignon" são mais forma, poderemos dizer o mesmo de "Guernica"? E se podemos atacar o formalismo da atonalidade de Schoenberg, o que podemos dizer do dodecafónico "Survivor from Warsaw" de Schoenberg? No fundo, Mann deixou-se seduzir por uma excelente narrativa criada por Adorno, que não era mais do que uma interpretação, uma das muitas teorias explicativas da arte e realidade, e no caso concreto do Holocausto não têm faltado grandes teorias sobre o sucedido.
Quanto à experiência de leitura de "Doutor Fausto", não posso dizer que se compare com o trabalho apresentado em "Os BuddenBrook" nem em "A Montanha Mágica". A escrita continua magnificente, o tema como visto acima é poderoso e altamente instigante, mas Mann falha na construção de um romance. O que temos é um livro de não-ficção disfarçado de romance, Mann fala num trabalho de "montagem" em que foi cosendo "dados factuais, históricos, pessoais e literários" [1], que acaba por fazer dos personagens do romance meros peões ao serviço de tudo aquilo de que se quer verdadeiramente falar. É uma leitura que se alonga, porque não se percebe para onde nos quer levar, criando por vezes enfado, perdendo amiúde a atenção do leitor, mantendo no entanto a chama acesa por graça da elevação e beleza da escrita assim como pelo mundo de ideias que envolvem o romance.
Mann é um dos representantes literários da grande erudição e riqueza lexical — a par com Proust, Pessoa e Nabokov — capaz de comunicar o que tem para dizer de forma não apenas imensamente acessível, mas ao mesmo tempo envolvente e sedutora. A elevação do seu registo, apesar de complexo nunca se enreda em palavreado desnecessário ou meramente exibicionista. A construção do texto, por mais trabalhada que surja, parece nunca dizer de mais, nem de menos, como se tocasse sempre o acorde harmonicamente correto, permitindo-nos seguir o desenrolar da narrativa sem notar qualquer dissonância entre forma e conteúdo.
“Os Buddenbrook” é antes de mais a primeira obra de Mann, publicada com apenas 25 anos, mas iniciada com 22 anos, o que só por si é verdadeiramente impressionante. Custa a perceber como é que alguém, tão novo, consegue o registo de elevação acima identificado, mas também como é que consegue o grau de amadurecimento para chegar às análises sociais e psicológicas apresentadas. Lobo Antunes estava claramente errado, quando criticou o prémio Leya 2014 dado a "O Meu Irmão" de Afonso Reis Cabral, com apenas 24 anos. São idades tenras para se criar com fôlego, mais ainda em literatura, mas as excepções existem, e Mann foi único. Não é por acaso, que apesar do Nobel (1929) lhe ter sido atribuído já depois de publicado “A Montanha Mágica” (1924), que o texto da Academia Sueca faça menção explícita ao seu primeiro livro, dizendo que o prémio lhe era atribuído, “principalmente pelo seu grande romance “Os Buddenbrook”, que conquistou crescente reconhecimento como um das obras clássicas da literatura contemporânea”.
"E o resto do dia obedecia a um ritmo livre e despreocupado, seguindo o rumo de uma vida maravilhosa dedicada ao ócio e ao bem-estar, sem sobressaltos nem preocupações: de manhã, enquanto lá em cima a banda executava o seu programa matinal, Hanno permanecia à beira-mar, deitado ou sentado aos pés da cadeira de praia, entretido, no seu jeito sonhador e distraído, com a areia fina e pura, os olhos, sem esforço ou dificuldade, vagueando e perdendo-se na imensidão verde e azul, os ouvidos envoltos num doce rumor que se desprendia, com liberdade e desembaraço, das ondas infinitas, uma brisa poderosa, fresca, selvagem, portadora de um perfume divino, apta a aturdir, a inebriar suave e subtilmente os sentidos, produzindo um mudo e aprazível esbatimento da noção do tempo, do espaço e de todas as fronteiras…" (p.528)
“Os Buddenbrook” é como poderão saber das sinopses, um épico familiar, seguindo uma influência de final do século XIX, à semelhança do nosso “Os Maias” (1888). Mann por sua vez, mais do que concentrar-se sobre as relações de amor, concentra-se especificamente sobre as relações que unem a família — avô, pai, irmãos, e laços de casamento — analisando a sucessão geracional, começando pelo auge do bem estar e terminando na perda de tudo. A obra é muitas vezes definida simplesmente pela história de decadência da família Buddenbrook, uma decadência que ultrapassou as fronteiras da literatura, e serve hoje áreas como a história e a economia, para identificar o que ficou conhecido por “efeito Buddenbrook”, ou seja, o facto de que a riqueza acumulada através dos negócios tende a declinar ao longo de um período de três gerações.
Mann procura alguma neutralidade no modo como apresenta a família e sociedade que a envolve, não tomando partido pela religião ou política, deixando no entanto emergir aquilo que em sua opinião marca as nossas vidas, opondo o materialismo ao espiritualismo, nomeadamente a oposição entre a vida burguesa (Thomas, pai e avô) e a vida de artista (o irmão Christian, e o filho Hanno). A primeira com as suas regras e rituais que obrigam a casamentos combinados em função do bem de toda a família, ao respeito das normas e complacência com o funcionar da sociedade. A segunda que a nada obedece, a ninguém segue, e tudo rechaça, baseada na frugalidade material, buscando apenas a imaterialidade das ideias. O momento que marca esta clivagem acontece quando Hanno toma contato com o diário da família, uma espécie de jornal-diário das várias gerações de Buddenbrook, e resolve deixar ali o seu testemunho, é algo tão simples mas tão poderosamente significante que nos arrepia e obriga à reflexão e aprofundamento do choque entre estas duas visões do mundo.
Aliás, não fica claro até que ponto Mann não tende para a culpabilização dessa componente artística pelo fim da família. Digo que não fica claro, porque existem outras variáveis em campo, nomeadamente o ponto em que o senador Thomas Buddenbrook se deixa levar pela leitura de “O Mundo como Vontade e Representação” (1819) de Schopenhauer. Mas essencialmente, e como acaba discutindo recentemente Riemen em "Nobreza de Espírito" (2008), baseado em Mann, existe algo que não é propriamente de neutralidade, mas antes de busca de uma certa integralidade humana, de essência humanista, que apoquenta Mann e que o conduz à aceitação da divergência da norma, da subversão artística, reconhecendo-a como própria do humano, mas que apesar disso deve ocorrer por meio de um paradigma de elevação, de respeito pelos demais, acima tudo de diálogo construtivo.
Dito tudo isto, pergunto, como se pergunta a responsável pela belíssima tradução no posfácio, Gilda Lopes Encarnação, porquê ler “Os Buddenbrook” mais de 100 anos depois? A realidade retratada é-nos distante, em nacionalidade e mesmo mecanismos sociais ou negociais. Julgo que a resposta está exatamente na forma, na beleza da obra, no brilhantismo do seu criador, na recompensa pela boa progressão da narrativa, e que não poucas vezes nos surpreende, mesmo sendo tão regrada. Mas essencialmente porque ler duas páginas de Mann, mesmo que pouco avance na história, é como insuflar ar em estado puro, faz-nos sentir vivos, ajuda-nos a compreender a força e relevância da arte literária, verdadeiramente estruturante para o modo como pensamos e nos edificamos enquanto seres conscientes.
Adoro Thomas Mann, mas esta obra, que vinha sobejamente bem recomendada, apesar de muito interessante, não me tocou. “Morte em Veneza” (1912) é um pequeno conto escrito por Mann, exactamente a meio caminho entre o seu primeiro livro “Buddenbrooks” (1901) e a sua obra-prima “Montanha Mágica” (1924). Deste modo podemos encontrar uma escrita notável, mas ainda assim longe do que nos viria a oferecer mais tarde.
Mann parece ter querido fazer desta história um momento de pausa e reflexão sobre o seu trabalho artístico, enquanto escritor, daí que se tenha dedicado a dissecar um episódio passado consigo próprio numa visita a Veneza (mais tarde confirmado pela própria esposa). Para o fazer vai chamar à discussão a mitologia grega, e assim tentar desconstruir os seus desejos, as suas obsessões. Desta discussão emergem momentos imensamente belos, nomeadamente na discussão do belo, mas que vão sendo entrecortados com momentos de menor interesse, sendo que o tamanho da obra acaba por não permitir o aprofundamento e adensamento que seria de esperar deste tema.
Não podemos deixar de assumir a data em que foi escrito, ainda assim o que mais me incomodou foi o tratamento dado por Mann à homosexualidade, se assumirmos a interpretação da cidade de Veneza como metáfora do jovem belo. Assim, temos constantes descrições do mau cheiro das águas da cidade, que apesar de verdadeiras são no final elevadas à condição de epidemia e mortais, dando conta de um conflito, provavelmente sentido interiormente por Mann. Ou seja, como que para afagar dentro de si o desejo, Mann opta por enlamear a relação, opondo a atração pelo belo à aversão pelo mesmo sexo, rotulando a potencial relação como doentia, e com um único fim expectável, a morte.
A magia da palavra, é daqui que brota o poder alienante a que sucumbimos ao longo das mais de 30 horas de leitura (832p) da obra-prima de Thomas Mann. "A Montanha Mágica" (1924) comumente citado como um dos mais relevantes romances do século XX, é mais do que isso, é um legado humanista.
“serei um amante de música, o que não quer dizer ainda que a preze de forma especial – como prezo e venero a palavra, o suporte do espírito, o instrumento, o arado fulgurante do progresso… a música… a música é o semiarticulado, o dúbio, o irresponsável, o indiferente...
...a música é de um valor inestimável como meio supremo de arrebatamento, como força que nos faz avançar e voar mais alto quando o espírito já se acha preparado para a acolher. Mas a literatura deve tê-la precedido.”
Mann leva-nos até ao cimo de uma montanha, onde nos entretém junto de hóspedes de um sanatório para tuberculosos. A pureza da natureza é confrontada com a morte pela doença, e daqui emerge um espaço-tempo propício à discussão dos elementos que fazem de nós homens e mulheres. A discussão assume um tom elevado, elaborado, mas não é por aí que a obra se torna difícil, podendo surgir talvez alguma dificuldade apenas pelo lado das referências filosóficas, culturais, sociais e políticas.
O tom elevado convive com um discurso conceptualmente trabalhado ao detalhe. Sente-se que Mann escreve com delicadeza, que escreve e reescreve para que da complexidade não surta ambiguidade, fá-lo sem contudo deixar de usar uma linguagem acessível, raramente adjectivando ou floreando, raramente rebuscando o vocabulário. Desta forma Mann consegue construir por meio de uma enorme simplicidade linguística, um estilo profundamente elaborado muito graças ao trabalho que exerce na construção gramatical, por meio de frases longas, cheias de descrições e significados que nos agarram, e nos obrigam a manter a concentração na leitura, sem espaço para distracções.
“E nós, sombras tímidas à beira do caminho, acanhadas na nossa segurança de sombras, sem desejo algum de nos alongarmos em patranhas e façanhas, viemos aqui dar guiadas pelo espírito da história, para que possamos avistar uma vez mais, antes de perdê-lo completamente de vista, um daqueles camaradas cinzentos que correm, se precipitam e avançam ao som do rufar dos tambores, que irrompem em bandos da floresta, um soldado que conhecemos bem, nosso companheiro de viagem de longos anos, o simpático pecador cuja voz tantas vezes escutámos.”
Em termos utilitaristas poderíamos dizer que se aprende muito lendo, e mais ainda lendo obras como “A Montanha Mágica”, mas aquilo que se aprende em obras deste calibre não está ao nível da ingestão de simples factos, ou descrições de eventos, acontecimentos, ou a desconstrucção de teorias e conceitos. O que se aprende com Mann, e nomeadamente com a viagem através desta Montanha, ao longo de 7 anos, tempo cronológico da diegese, é a ver o mundo de uma forma distinta. Aprendemos a aceitar a realidade de uma forma que não está ao alcance da experiência directa que possamos ter no nosso dia-a-dia. Porque mesmo ficcionando, Mann se viu obrigado a situar a acção num ambiente de reclusão, afastado da azáfama do dia-a-dia, das obrigações, deveres, trabalhos, relógios e calendários. Ali, a vida a corre num tempo completamente paralelo, imune às vicissitudes do nosso real.
“O que designamos por tédio é, portanto, uma abreviação doentia do tempo decorrente da monotonia: a uniformidade constante produz a redução atroz e assustadora dos longos períodos de tempo.”
Deste modo Mann consegue recriar uma comunidade profundamente dedicada à dialéctica, capaz de colocar em debate qualquer assunto, na sua estrutura em abstracto, mantendo na maior parte do tempo, uma enorme consciência do ponto de vista do outro, possibilitando a tolerância e assim fazendo avançar o debate. Inevitável recordar aqui um discurso de David Foster Wallace, que vale a pena ler e ouvir.
Apesar da beleza da forma, que como Mann diz pela boca de Castorp é apenas “afectação”, é natural que um trabalho desta magnitude tenha de ser suportado por conteúdo, o tal sentido utilitário da leitura, e nesse sentido foi com muito interesse que li o pequeno apontamento do extremista Naphta a propósito da Educação e da Escola, nomeadamente por este ser um texto com 100 anos, e distar tão pouco de muito daquilo que vamos continuando a ouvir ainda hoje:
“Sim, não nos apercebíamos de como o povo se ria a bom rir dos nossos títulos de doutor e de todo o nosso mandarinato educativo, da escola primária oficial, esse instrumento da ditadura burguesa manejado na ilusão de que a cultura popular seria uma forma diluída da cultura erudita. O povo sabia muito bem onde ir buscar a cultura e a educação de que necessitava na luta contra a burguesia apodrecida, sabia que não era nas casas oficiais de correcção que as encontraria, para além de que não era segredo para ninguém que o nosso modelo de escola, desenvolvido a partir da escola monástica da Idade Média, era um modelo obsoleto e anacrónico e que ninguém no mundo devia já a sua formação à escola… o ensino livre, aberto a todos, baseado em conferências públicas, exposições, cinema e outras coisas afins estava muito acima do tradicional ensino escolar.”
Não vou aqui entrar na discussão em detalhe do muito que se discute na obra, porque isso foi já tão amplamente dissecado em termos académicos, que eu, não sendo sequer da área literatura, muito dificilmente poderia aqui acrescentar algo. Desde congressos inteiros dedicados à discussão da obra de Mann, às centenas de papers que se podem encontrar no Google Scholar, é possível encontrar quase todos os assuntos, conceitos ou estilos discutidos em detalhe.
Para fechar, dizer apenas que tudo isto está apenas acessível a nós, falantes de português, porque a tradução de Gilda Lopes Encarnação, de 2009, é absolutamente magistral, levando o jornal Público a intitular uma entrevista realizada com a tradutora, “Como se Thomas Mann escrevesse em português”. Com um mestrado e um doutoramento em Literatura Alemã, e vários anos como professora de português em território germanófono, levou um ano e meio a realizar esta tradução, que não posso deixar de recomendar vivamente.