Cheguei a "O Reino" (2014), não por ter sido um enorme sucesso em França quando saiu, mas por ser apresentado como um ficcionar dos primeiros anos do cristianismo, focado nas vidas de Paulo e Lucas. Tenho-me interessado cada vez mais pelos chamados romances históricos, pelo modo como facilitam o nosso acesso ao conhecimento da História. Mas não foi nada disso que aqui encontrei. Carrère reconta e parafraseia a partir de dezenas de textos históricos e teológicos, oferecendo-nos a sua interpretação sobre os mesmos. Existe ficção nessa sua interpretação, na interpretação das ideias, mas não existe propriamente dramatização, ou seja, recriação das ações dos personagens. Carrère segue um discurso colado ao registo dos documentários de televisão, em que vai comentando os escritos e teorias, algo que poderia até funcionar como não-ficção, mas que se esfuma porque muito do que vai dizendo é pura especulação. Por isso, perde também aquilo que afirma ser a sua forma de escrever quando nos diz que nunca conseguiu acabar de ler as “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar, por não se rever no ato de ficcionar, dada a impossibilidade de imparcialidade das histórias. Mas estes seu discurso, mesmo estando sempre colado ao real, com reparos de dúvida constante, é o da sua pessoa e das suas memórias, por isso mesmo não deixa de estar pejado dessa parcialidade. Mais, não há aqui qualquer método para tentar diminuir esse viés, existe antes uma aceitação tácita que, segundo ele, lhe dá liberdade para dizer o que quiser, alardeando que o que diz pode mesmo ter acontecido assim, em certa medida colocando-se no lugar dos autores dos próprios Evangelhos.
Admito que tudo poderia ser muito interessante, uma vez que Carrère se apresenta como um ateu que nos 1990 se converteu em profundidade, rezando e indo à missa todos os dias, para poucos anos depois voltar a abandonar o cristianismo por completo, sendo este livro uma espécie de última dúvida da sua parte. Existe assim aqui muito para criar um relato de experiência particularmente interessante. Contudo, a forma como opta por realizar o relato, misturando pseudo-História com memórias pessoais, cria um universo particularmente estranho, diria mesmo absurdo.
No final, temos uma espécie de jornalismo de opinião sobre os primeiros anos do cristianismo, misturado com álbums de memórias pessoais, numa tentativa de elevação pessoal à mesma condição dos apóstolos. Existe muito quem tenha gostado, comigo funcionou mal. Carrère coloca-se a si mesmo num pedestal, e apesar de aceitar que ele fala com bastante franqueza e frontalidade, despindo-se à lá Knausgård, falta-lhe uma total noção de humildade. Todo o registo está pejado de um narcisismo pedante, por vezes, chega a ser difícil ler sobre as suas dores interiores, tragédias segundo ele, esquecendo o enorme privilégio do berço em que nasceu.
Emmanuel Carrère é um nome bem conhecido da cena cultural parisiense, tendo escrito mais de uma dezena de livros, boa parte biografias — de Werner Herzog a Philip K. Dick, passando por Limonov, até personagens menos conhecidos como Jean-Claude Romand — que pelo que pesquisei tendem a seguir este mesmo registo de mistura entre o pessoal e o factual. Realizou ainda vários filmes — o mais recente "Between Two Worlds" (2020), sobre a crise económica de 2008, de que gostei particularmente. A sua escrita é imensamente fluída, Carrère tem um enorme domínio das condições de manutenção do interesse do leitor, mantendo-o sempre bem enredado. A isto não é alheio o reconhecimento recheado de prémios literários ao longo da sua vida. Contudo, nada disto suporta a falta de humildade e o narcisismo pedante com que nos presenteia. Daí que se quiserem realmente saber mais sobre os primeiros anos do cristianismo, em particular sobre o impacto de Paulo na emergência do mesmo, recomendo antes a leitura de "The Triumph of Christianity: How a Forbidden Religion Swept the World" (2017) de Bart D. Ehrman.
Uma última nota. Tendendo a não dar muito valor ao movimento relativo à ideia de se colocarem avisos de leitura nos livros para conteúdos mais problemáticos, este seria um dos livros em que defenderia isso mesmo. O livro aborda o cristianismo de forma elevada, criticando de modo construtivo. Deste modo, não seria de todo expectável encontrar uma cena típica de um filme pornográfico descrita em detalhe durante várias páginas no meio do livro. Esta cena não tem qualquer relação com a "A última Tentação de Cristo" de Nikos Kazantzakis, pois sendo retirada do Porn-Hub, não passa do banal cliché, literalmente onanista. Ainda assim, tendo a concordar com alguns críticos que mais chocante do que esta cena é o gigantesco ego do autor a pairar sobre todo o livro.
Impactos do livro nos EUA
Banning a Book, in the Name of ‘True Academic Freedom’, 2019
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