abril 30, 2021

Le Guin e o Conservadorismo dos sistemas Anarco-comunistas

“Os Despojados” (1974), de Ursula K. Le Guin, é uma obra de excelência e obrigatória por ser capaz de gerar uma simulação narrativa de um universo no qual funcionam em simultâneo três modelos de organização social — capitalista, comunista e anarquista — não defendendo nenhum dos modelos, apresentando as suas componentes boas, mas evidenciando também os problemas de fundo de cada um. No final do livro sabemos algo, nenhum sistema é perfeito, nenhum sistema responde às ânsias de cada ser individual. Em todos, é necessário fazer cedências a propósito do que acreditamos Ser para podermos Sobreviver.

Imagem da edição de luxo ilustrada da Folio, de 2019, criada por David Lupton

abril 28, 2021

A tinta invisível que suporta as histórias

Invisible Ink: A Practical Guide to Building Stories That Resonate” (2010) é um livro prático, como diz o próprio subtítulo, por isso não se espere aqui grande estrutura, nem aprofundamento de conceitos, menos ainda densidade ou explicações detalhadas. Apesar disso, este trabalho de Brian McDonald acaba sendo bastante recompensador para quem decidir dedicar-lhe um par de horas, já que em tão poucas páginas de texto condensa um conjunto de ideias fundamentais para escrita de histórias para qualquer suporte. O autor está centrado no cinema, e utiliza imensos casos práticos, com particular destaque para Steven Spielberg, mas o que nos conta e explana é aplicável a qualquer meio narrativo. Nas linhas que se seguem deixo uma síntese do que me parece ser o mais relevante do livro.

abril 24, 2021

"As Faces Esquecidas de Palmira" (2021)

Estreia hoje no canal Arte o documentário "As Faces Esquecidas de Palmira" que pode ser visto no site do canal de forma gratuita até ao dia 22 junho. Arranjem 80 minutos para ver porque vale todos os minutos. Possui audio em francês e alemão, e legendas em inglês e italiano. O documentário foi produzido pelo Arte mas dirigido por um realizador sírio, Meyar Al-Roumi (1973), oferecendo-nos um acesso ao coração da cidade, o que foi, as lendas à sua volta e o que representa hoje. O filme leva-nos numa viagem no tempo até à época áurea da cidade oásis que funcionou como centro de ligação entre a Ásia, África e Europa, nos primeiros 300 anos d.C. Não sobrou muito, mas o documentário dá conta de um excelente trabalho de arqueologia levado a cabo pela dinamarquesa Rubina Raja que conseguiu até à data reunir mais de 3500 peças provenientes de Palmira e que se encontram espalhadas por todo o globo.

Novelas de Ferrante, Roth e Mann

Trago 3 pequenos livros — "Tonio Kroger" (118p), "Um Estranho Amor" (176p), "Indignação" (176p) —, 3 novelas aparentemente desconexas, mas que fui lendo e colocando na pilha de lidos sem me dar ao trabalho de parar para refletir e escrever. Tendo resolvido colmatar essa falta, percebi que faria sentido juntar a conversa sobre os 3 num texto único, desafiando-me a mim próprio em busca de relações. Desde logo, podem estabelecer-se entre "Tonio Kroger" e "Um Estranho Amor", já que ambas são novelas debutantes dos autores. No caso de "Indignação", sendo o oposto, porque é a 29ª obra de Roth, o seu conteúdo trata um "coming of age", aproximando-o de "Tonio Kroger".

abril 18, 2021

Escritores falando sobre si

Cheguei a "The Way of the Writer: Reflections on the Art and Craft of Storytelling" (2016) de Charles Johnson (1948) por via de várias resenhas que o identificavam como um dos livros mais interessantes sobre a produção criativa, nomeadamente por toda paixão e abordagem filosófica ao mundo da arte e da escrita. Contudo, pouco depois de iniciar a leitura surgiram as primeiras suspeitas de estar perante alguém que, apesar de ter feito algumas coisas relevantes na sua vida, longe de alcançar um reconhecimento internacional, demonstrava uma enorme falta de humildade. A meio do livro, não conseguia deixar de pensar noutro livro que segue exatamente a mesma fórmula — memórias-instrutivas-na-forma-de-romance-inspiracional —, escrito por um autor de fama mundial, com um volume de produção ímpar, ainda que nem tudo de qualidade inquestionável, mas oferecendo-se em toda a sua simplicidade, como se não tivesse publicado mais do que um livro que poucos leram, falo de "On Writing: A Memoir of the Craft" (2000) de Stephen King (1947). Isto diria quase tudo o que haveria para dizer sobre o livro, e em sua vez recomendaria a leitura duas ou três vezes do livro de King, mesmo que, como eu, não o considerem um dos vossos escritores preferidos. Mas, existe uma outra coisa que me incomodou tanto ou mais na leitura, e como tal não consigo deixar de o referir, assim como também existem um conjunto de notas muitíssimo interessantes.

abril 17, 2021

Interpretação ao lado

Como primeiro livro é muito bom, com Celeste Ng a conseguir elevar-se em dois pontos de relevo: a) cria todo um ambiente narrativo que nos faz imergir e virar página atrás de página na ânsia por chegar a saber tudo; b) toca nas questões do racismo asiático nos EUA, que é algo quase sempre esquecido, também muito pela natureza específica da cultura asiática. Como livro de ideias, peca em várias frentes, sendo a principal a manipulação do leitor por meio do artifício narrativo de não revelar elementos explicativos , mantendo-nos na escuridão para aguçar o suspense, mas que depois falha na entrega final.

abril 10, 2021

O código da interação humana

O livro "The Culture Code" (2017) de Daniel Coyle fez-me lembrar "Blink" (2005) de Gladwell, pelo modo como discute algo tão presente na nossa realidade mas que temos imensa dificuldade em especificar e enunciar. Se Gladwell tentava definir o que torna o olhar de um especialista diferente, o modo como a sua capacidade percetiva imbuída de saber e experiência vai além do que é evidente. Coyle, procura definir aquilo que emerge da cola entre humanos quando interagem e faz com que juntos sejam mais do que a mera soma dos indivíduos. Ambas à superfície parecem dotadas de alguma magia, por não serem facilmente explanáveis nem racionalizáveis. O que é também interessante é o facto de Coyle ter feito anteriormente um trabalho soberbo na análise do talento individual, em “The Talent Code” (2009), e ter-se visto aqui obrigado a concluir que o talento dos indivíduos não é a força motriz do talento dos grupos.

abril 03, 2021

As cantatas do Comunismo e Fascismo portugueses

Dizer que o Comunismo nunca existiu porque nunca foi implementado segundo a visão de Marx é uma ilusão em tudo semelhante àquela que diz que a Ditadura portuguesa nunca existiu porque Salazar não foi  ditador mas "provedor de justiça", que salvou Portugal da ruína financeira e "viveu exemplarmente". Duas cantatas revisionistas que servem apenas para vender ideias que a prática demonstrou, preto no branco, como totalmente disfuncionais. Para o efeito, deixo excertos de várias obras, para que tirem as vossas conclusões.

abril 02, 2021

Porque emergem comunidades?

No seu livro "Blueprint: The Evolutionary Origins of a Good Society" de 2019, Nicholas A. Christakis aborda a questão da formação das sociedades de uma perspectiva evolucionária. A abordagem seguida por Christakis é científica, mas não experimental de forma direta. Ou seja, usam-se múltiplos métodos de análise indireta do objeto, que permitem construir inferências que depois suportam a argumentação geral. Mas não existe uma forma de aceder empiricamente ao objeto da discussão, ou de o testar de forma completamente isolada. Para uma parte da academia, isto deita por terra o interesse deste trabalho, e considera-o mesmo uma afronta. Do meu ponto de vista, e de uma outra parte da academia, isso é miopia científica.