Obra-prima. Não porque tem uma escrita perfeita, não porque tem uma história primorosa, não porque tem uma ideia primordial, mas porque integra tudo isto numa só obra. Ao fim das primeiras vinte páginas já percebemos que assim é, e Franzen nunca desilude ao longo das quase 700 páginas que a vontade anseia por ler de um só fôlego.
A escrita de Franzen é perfeita mas não num sentido lírico que no entanto, e na ausência do belo, não faz menos por nos agarrar, nos enlaçar. Cada frase sucede-se a outra, sem notarmos que uma termina e outra começa, sem percebermos sequer que são frases, porque apenas sentimos aquilo que vamos imaginando. Franzen desenvolve uma forma de nos dar a conhecer o mundo ficcional que nos faz esquecer que estamos a ler, as palavras sugam-se para dentro das frases, e estas para dentro dos parágrafos, e por sua vez para dentro de nós mesmos, como que se traduzindo de forma automática em pensamentos. Acredito que o modo como o faz se deve a duas componentes base: a erudição linguística e a escalpelização da ação.
A linguagem apresentada é imensamente rica, não petulante com adjetivação barroca, mas pela extrema diversidade vocabular, e seu uso, que Franzen vai buscar ao interior da sociedade de várias décadas, diferenciando as linguagens das diferentes gerações e tempos. Não há espaço para o cliché, tudo parece cristalinamente renovado, porque evocando um mundo conhecido por nós, mas por meio de uma representação textual completamente nova, capaz de nos dar a ver de modo diferente.
Por sua vez a construção do texto segue uma abordagem, aqui sim barroca, pelo excesso de detalhamento do real, nomeadamente no modo como descreve as ações, e mais ainda a sucessão das mesmas, como que encapsulando umas nas outras, garantindo sempre ao leitor o acesso a um todo. O leitor sente o aprofundamento das camadas, esquecendo por momentos de onde se parte, para logo a seguir o texto resumir e voltar a trazer de volta ao início, para garantir que tudo se mantém no limiar do entendível. Este detalhe chega por vezes a parecer infinito, sem nunca saturar, mas sobre ele Franzen diz,
“Qualquer romance, mesmo razoavelmente longo, representa apenas uma fração infinitesimal daquilo que se sabe sobre o mundo. Aquilo que eu sei sobre Liberdade é maioritariamente acerca dos seus quatro personagens principais, os quais cresceram a partir do pequeno pedaço de mundo conhecido pelo seu criador. Representar um mundo é uma forma de permitirmos a nós mesmos sentir pequenas coisas de modo mais intenso, e não de conhecer muita informação.” no Guardian.
De certa forma, Franzen optando por não seguir nenhuma das abordagens de subversão do texto, modernas ou pós-modernas, acaba por inovar no modo como consegue rentabilizar e complexificar a estrutura clássica de contar histórias, nomeadamente pelo brilho com que desenvolve uma estrutura de tão fácil compreensão, impregnada de construções frásicas imensamente complexas. Neste sentido podemos dizer que Franzen é menos lírico que
Roth ou
Nabokov e imensamente mais acessível que
Foster Wallace ou
McCarthy, contudo é tão ou mais competente que qualquer um deles, exatamente pelo modo como entrelaça a forma narrativa de complexidade mantendo o seu fluir tranquilo.
No campo da história, “Liberdade” oferece-se em várias camadas, sendo a mais imediata, um recorte social e psicológico da família de classe média americana, facilmente identificável pela sociedade ocidental contemporânea, através da qual Franzen nos faz reviver os dilemas e conflitos do casamento, dinheiro, amor e sexo, competição e colaboração, passado e futuro, natureza e sobrepopulação. Tudo isto é elevado a uma categorização em círculos ideológicos demarcados por opções políticas, republicanos e democratas, que parecendo por vezes sofrer de viés do escritor, acaba por nunca nenhum ficar incólume à sua crítica.
Mariquita-azul (Setophaga cerulea), a espécie ameaçada de extinção que surge no centro do enredo.
E é desta crítica, às diferentes ideologias, que veremos emergir o objeto de “Liberdade”, a nossa incapacidade individual para lidar com a tal liberdade sempre que esta coloca em risco o nosso próprio benefício, mesmo quando isso implica a nossa própria perda de liberdade. Isto fica patente desde cedo no modo como se lida com uma ocorrência de violação sexual, e atravessa subterraneamente todas as grandes decisões ao longo da epopeia familiar, conduzindo-nos até ao grande propósito deste livro. Este propósito primordial, objeto de "Liberdade", é como facilmente se pode depreender desta descrição profundamente melancólico, mesmo trágico, contudo e ao contrário do universo mccarthyano, Franzen não se fica e oferece saída, que depende de cada um interpretar à sua maneira.
"Não sabia o que fazer, não sabia como viver. Cada nova coisa que encontrava na vida impelia-o numa direcção que o convencia por completo da sua rectidão, mas depois surgia uma outra coisa nova que o impelia na direcção oposta, mas que também lhe parecia certa. Não havia nenhuma narrativa controlada: aos seus próprios olhos parecia ser uma bola de pinball puramente reactiva, num jogo cujo o único objectivo era manter-se vivo só mesmo para estar vivo." p.392
Edição: "Liberdade" (2010) de Jonathan Franzen, trad. Maria João Freire de Andrade, Publicações Dom Quixote, 688 pág., 2011