Mostrar mensagens com a etiqueta franzen. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta franzen. Mostrar todas as mensagens

novembro 27, 2021

"Encruzilhadas" (2021)

"Encruzilhadas" de Jonathan Franzen surge seis anos após o seu último romance, e só por isso torna-se imediatamente digno da nossa atenção e interesse. Tenho muita dificuldade em seguir autores — literatura ou cinema — que lançam obras novas todos os anos, não por não conseguir acompanhar, mas porque não acredito que alguém tenha algo de novo, com substância, para dizer todos os anos. O real requer contemplação, indagação, questionamento e maturação. Escrever por escrever, produzir texto, pode servir para distrair os leitores, mas dificilmente oferece mais do que isso. Nesse campo concreto, "Encruzilhadas" não desilude, e mostra Franzen ao seu melhor nível.

janeiro 15, 2017

“Purity” (2015)

Senti desilusão, apesar de não me surpreender. Depois de dois livros seguidos brilhantes — “Correcções” (2001) e “Liberdade” (2010) — era natural surgir um livro menos interessante. A escrita continua boa, o livro lê-se com grande velocidade, contudo é uma escrita menos rica, menos elaborada. Perdeu, considerava Franzen um patamar acima de Donna Tartt, mas “Purity” acaba sendo o equivalente de “O Pintassilgo” (2013).


A julgar pelo que foi escrevendo não-ficcional, fica a ideia de que Franzen seguiu em excesso a sua definição do “modelo de contrato”, entre escritor e leitor. A escrita parece aligeirada para facilitar a compreensão aos leitores, assim como existe mais enredo e menos personagem, ou ainda mais redundância explicativa da ação, ou ainda mais sexo, e já agora muito mais perspetivas do ponto de vista da mulher (não que isso tenha algo de errado, mas sendo ele homem não funciona, pelo menos de modo convincente). Chegado ao fim, parece que Franzen andou a ler todas as críticas que lhe foram feitas na última década, e criou um cardápio de respostas para oferecer aos leitores que o criticaram por não ter aceite o selo da Oprah.

A beleza do trabalho de Franken está na escrita, e o seu grande tema é a família, sair daí não o conduziu a nada de bom. Enfiou-se por uma trama policial sem grande sentido, talvez almejasse “Crime & Castigo” mas fica demasiado distante. Com personagens baseados em Assange e Snowden também não era difícil que assim acontecesse. Muitas vezes Franzen ataca a internet e as redes sociais, fala dos seus perigos, da privacidade e do mundo que mudou, mas é tudo tão lugar comum, tudo tão saturado que nada dali se retira. No extremo apresenta uma idealista, Anabel a mãe de Purity, que nos vai dar uma secção inteira de puro fastio, com as suas rejeições do vil metal e a sua pseudo-arte e um namorado/marido que é ainda mais fastioso por se deixar levar.

Tirando esse capítulo, todo o restante livro se lê muito bem, embora pareça sempre que vamos chegar a algum lado com tudo aquilo, quando na verdade nada existe para além do que se vai desfilando na nossa frente. Existem muitos rasgos de grande brilhantismo, com personagens a tocarem-nos dentro, mas logo a seguir tudo se desvanece e surgem ações desses mesmos personagens que dão conta de um vazio amnésico. Depois, o reles truque de fazer calhar na rifa uns milhões para esquecer todos os problemas e viver feliz para sempre cai muito mal.

Não o consegui colocar na mesma prateleira dos outros dois, foi para uma pilha no topo de outra estante. Acho que isso diz alguma coisa. Não vou dizer que é mau. Sei que assim escrevo pela desilusão que apoquenta quem tanto gosta de algo, neste caso deixei-me levar em excesso pelos trabalhos anteriores do autor. Por isso lhe dou 3 estrelas, mas talvez com algum distanciamento possa subir uma.

agosto 10, 2016

"Correcções" (2001)

Li primeiro “Liberdade” (2010) e o impacto foi tremendo, ao começar “Correcções” (2001) já sabia ao que vinha, ainda assim não deixei de me surpreender, parar e contemplar ao longo da leitura. Temos um padrão temático, a família média contemporânea e as interdependências com a sociedade, assim como um padrão estético, torrentes descritivas complexamente enredadas e surpreendentemente fluídas.


Franzen segue uma linha narrativa já explorada por outros autores americanos contemporâneos — David Foster Wallace, Don Delillo ou no cinema Jim Jarmusch, Hal Hartley ou Todd Solondz — que assentam o seu trabalho nos personagens, secundarizando o enredo, gerando o fio condutor a partir das pregas de cada uma das múltiplas histórias emanadas de cada personagem, necessitando assim de ir ao fundo de cada um, de os elaborar em profundidade e abrangência por forma a garantir elos de conexão.
“Well, I didn't really think in terms of plot. Does this book even have a plot? I thought more in terms of the story-character nexus. With each of the major characters and each of the large sections, I was striving for the classical unities of place, time, and action. I was trying to find simple problems, simple situations—man tries to prove to his wife that he's not depressed; fun-loving woman goes on luxury cruise with intermittently demented husband—and then inhabit them as fully as possible.” Franzen em entrevista à New Yorker, em 2001
O universo de Franzen é profundamente realista, e por isso não admira o nosso constante embate contra o espelho, conseguindo desta forma gerar simultaneamente reflexão e satisfação. No Goodreads podem ler-se várias críticas às pessoas de cada personagem como cheias de defeitos, incapazes de criar empatia com o leitor, mas Franzen não pretende romancear, está antes interessado em recriar e interpretar o mundo à sua volta, e nesse mundo não existem seres perfeitos, tal como não existem grandes linhas de história, apenas pessoas que vivem e fazem o melhor que podem em cada dia que passa. Inevitavelmente, e apesar do humor do autor ir salpicando de sátira, a viagem é profundamente melancólica, como não poderia deixar de ser sempre que nos pomos a pensar sobre as questões da condição humana, os “como's”, os “porquê's” e “para quê's”.

A chave de “Correcções” está em cada um dos leitores, posso dar-vos a minha mas abre apenas caminho para um dos imensos mundos possíveis construídos pelo confronto entre o texto e as experiências de vida de cada leitor. Subrepticiamente ao longo de todo o livro vão surgindo indícios que dão conta da necessidade de nos afirmarmos pelo que somos, de enfrentar o mundo de cabeça erguida e aceitar o que este nos propõe, sem medos nem estratégias de fuga (ex. drogas), de modo que as correções surgem naquilo que vamos fazendo ao longo da vida para corrigir o caminho, para não sair da forma que define aquilo que somos. É um trabalho contínuo que exige esforço, feito de avanços e recuos, de escolhas e decisões, esquecimentos e regressos ao passado, uma vontade interior que nos impele a seguir uma linha e a não divergir dela, corrigindo-a sempre que se desvia. A grande questão que Franzen deixa em aberto para nós é o porquê dessa necessidade, existem algumas tentativas de resposta, mas essas deixo-as para os leitores de Franzen.

Se o livro fosse apenas isto já seria muito bom, mas é mais, porque existe toda uma experiência estética que dificilmente se encontra na comum literatura e que obriga a revisitar os clássicos para se poder encontrar tamanho fôlego artístico. Desde logo por todo um trabalho de pesquisa que é feito em redor da criação de cada personagem, psicologicamente mas também em termos sociais com as implicações dos seus empregos, profissões, amigos e família. Franzen constrói literalmente um mundo a partir de ideias, capaz de se erguer nas nossas mentes como algo de próximo e facilmente reconhecível.

Por outro lado a densidade com que labora as ramificações de cada personagem, decorrendo do conteúdo, surge por via de um tipo de descrição verdadeiramente literária, e não cinemática como se foi tornando moda nos últimos anos. Ou seja, mais importante do que dar a ver é dar a sentir. Franzen não limita o seu discurso ao visível, trabalha como merecedores da mesma atenção o audível, assim como o gosto e o cheiro, e claro o palpável e mais complexo ainda o impalpável. Na sua leitura sentimos por vezes o bloqueio de não conseguir visualizar o que se vai descrevendo porque não é suposto ser visível mas sentido, e talvez seja em parte por isto que a leitura de Franzen é tão particular, tão capaz na sua expressividade.

março 06, 2016

"Liberdade" por Jonathan Franzen

Obra-prima. Não porque tem uma escrita perfeita, não porque tem uma história primorosa, não porque tem uma ideia primordial, mas porque integra tudo isto numa só obra. Ao fim das primeiras vinte páginas já percebemos que assim é, e Franzen nunca desilude ao longo das quase 700 páginas que a vontade anseia por ler de um só fôlego.


A escrita de Franzen é perfeita mas não num sentido lírico que no entanto, e na ausência do belo, não faz menos por nos agarrar, nos enlaçar. Cada frase sucede-se a outra, sem notarmos que uma termina e outra começa, sem percebermos sequer que são frases, porque apenas sentimos aquilo que vamos imaginando. Franzen desenvolve uma forma de nos dar a conhecer o mundo ficcional que nos faz esquecer que estamos a ler, as palavras sugam-se para dentro das frases, e estas para dentro dos parágrafos, e por sua vez para dentro de nós mesmos, como que se traduzindo de forma automática em pensamentos. Acredito que o modo como o faz se deve a duas componentes base: a erudição linguística e a escalpelização da ação.

A linguagem apresentada é imensamente rica, não petulante com adjetivação barroca, mas pela extrema diversidade vocabular, e seu uso, que Franzen vai buscar ao interior da sociedade de várias décadas, diferenciando as linguagens das diferentes gerações e tempos. Não há espaço para o cliché, tudo parece cristalinamente renovado, porque evocando um mundo conhecido por nós, mas por meio de uma representação textual completamente nova, capaz de nos dar a ver de modo diferente.

Por sua vez a construção do texto segue uma abordagem, aqui sim barroca, pelo excesso de detalhamento do real, nomeadamente no modo como descreve as ações, e mais ainda a sucessão das mesmas, como que encapsulando umas nas outras, garantindo sempre ao leitor o acesso a um todo. O leitor sente o aprofundamento das camadas, esquecendo por momentos de onde se parte, para logo a seguir o texto resumir e voltar a trazer de volta ao início, para garantir que tudo se mantém no limiar do entendível. Este detalhe chega por vezes a parecer infinito, sem nunca saturar, mas sobre ele Franzen diz,
“Qualquer romance, mesmo razoavelmente longo, representa apenas uma fração infinitesimal daquilo que se sabe sobre o mundo. Aquilo que eu sei sobre Liberdade é maioritariamente acerca dos seus quatro personagens principais, os quais cresceram a partir do pequeno pedaço de mundo conhecido pelo seu criador. Representar um mundo é uma forma de permitirmos a nós mesmos sentir pequenas coisas de modo mais intenso, e não de conhecer muita informação.” no Guardian
De certa forma, Franzen optando por não seguir nenhuma das abordagens de subversão do texto, modernas ou pós-modernas, acaba por inovar no modo como consegue rentabilizar e complexificar a estrutura clássica de contar histórias, nomeadamente pelo brilho com que desenvolve uma estrutura de tão fácil compreensão, impregnada de construções frásicas imensamente complexas. Neste sentido podemos dizer que Franzen é menos lírico que Roth ou Nabokov e imensamente mais acessível que Foster Wallace ou McCarthy, contudo é tão ou mais competente que qualquer um deles, exatamente pelo modo como entrelaça a forma narrativa de complexidade mantendo o seu fluir tranquilo.

No campo da história, “Liberdade” oferece-se em várias camadas, sendo a mais imediata, um recorte social e psicológico da família de classe média americana, facilmente identificável pela sociedade ocidental contemporânea, através da qual Franzen nos faz reviver os dilemas e conflitos do casamento, dinheiro, amor e sexo, competição e colaboração, passado e futuro, natureza e sobrepopulação. Tudo isto é elevado a uma categorização em círculos ideológicos demarcados por opções políticas, republicanos e democratas, que parecendo por vezes sofrer de viés do escritor, acaba por nunca nenhum ficar incólume à sua crítica.

Mariquita-azul (Setophaga cerulea), a espécie ameaçada de extinção que surge no centro do enredo.

E é desta crítica, às diferentes ideologias, que veremos emergir o objeto de “Liberdade”, a nossa incapacidade individual para lidar com a tal liberdade sempre que esta coloca em risco o nosso próprio benefício, mesmo quando isso implica a nossa própria perda de liberdade. Isto fica patente desde cedo no modo como se lida com uma ocorrência de violação sexual, e atravessa subterraneamente todas as grandes decisões ao longo da epopeia familiar, conduzindo-nos até ao grande propósito deste livro. Este propósito primordial, objeto de "Liberdade", é como facilmente se pode depreender desta descrição profundamente melancólico, mesmo trágico, contudo e ao contrário do universo mccarthyano, Franzen não se fica e oferece saída, que depende de cada um interpretar à sua maneira.

"Não sabia o que fazer, não sabia como viver. Cada nova coisa que encontrava na vida impelia-o numa direcção que o convencia por completo da sua rectidão, mas depois surgia uma outra coisa nova que o impelia na direcção oposta, mas que também lhe parecia certa. Não havia nenhuma narrativa controlada: aos seus próprios olhos parecia ser uma bola de pinball puramente reactiva, num jogo cujo o único objectivo era manter-se vivo só mesmo para estar vivo." p.392

Edição: "Liberdade" (2010) de Jonathan Franzen, trad. Maria João Freire de Andrade, Publicações Dom Quixote, 688 pág., 2011