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setembro 27, 2017

Dos contos de fadas conservadores às alegorias progressistas

Nos últimos anos temos assistido a um progressismo acentuado nas temáticas dos filmes de animação de maior orçamento e sucesso, muitos dos quais têm ganho Oscars para Melhor Filme de Animação. A dar conta desta tendência na atualidade, temos um rumor que circula na rede a propósito de um projeto em que a Disney supostamente tem estado a trabalhar, que contará no papel de heroína principal com uma princesa lésbica. Entretanto, por estes dias surgiu também na rede um video-ensaio (ver vídeo abaixo) defendendo a teoria de que todo este progressismo se deveria aos impactos da mudança tecnológica operada no seio da animação, nomeadamente a mudança do uso de ferramentas analógicas de produção 2d para ferramentas digitais 3d. Ora, se concordo que a mudança ocorreu, tenho dúvidas que se deva ao 3d, apesar de se poder correlacionar no tempo.


Antes de entrar na discussão sobre a temática, deixar desde já claro que em termos de storytelling em concreto, ou seja da estrutura do contar de história, nada se alterou, ao contrário do que se pretende aqui avançar. Os modelos que estão a ser usados hoje pela Pixar são exatamente os mesmo que foram usados por Walt Disney, porque já assim os podemos encontrar na “Odisseia” de Homero. Nesse sentido, tentar apresentar o ritmo, pelo movimento audiovisual como provável responsável por esta alterações, demonstra um total desconhecimento do passado das artes narrativas. Dito isto, o ensaio faz um bom trabalho na enunciação das temáticas pré-Pixar e pós-Pixar, identificando as primeiras como contos de fadas conservadores e as segundas como alegorias progressistas. O ponto identificado pelo autor como de viragem, é o da primeira longa-metragem de animação 3D, criada em 1995, que é nada mais que o primeiro filme criado pela Pixar.

Apesar da Pixar hoje fazer parte do grupo Disney, assumiu-se em 1986 como empresa fruto de um spin-off da Lucasfilm, tendo como fundadores três especialistas em computação: Steve Jobs, Alvy Ray Smith e Ed Catmull. A empresa na altura dedicava-se à criação de ferramentas para animação 3d, e ia fazendo pequenas curtas que iam impressionando a comunidade. Só em 1995 conseguiram criar a primeira longa-metragem, tornando-se um marco para empresa e para o mundo da animação, pela inovação tecnológica ao serviço da arte. Desde 1995 até hoje, a Pixar lançou quase duas dezenas de filmes, sendo talvez a única produtora que até hoje nunca teve um flop nas bilheteiras (para saber mais, leiam o texto sobre o livro Creativity Inc.).

"Toy Story" (1995) de John Lasseter

Feita esta breve introdução à Pixar, podemos rapidamente identificar vários elementos que poderão ter contribuído para a mudança na agulha temática: produtora independente; o método de trabalho; e a formação de base tecnológica. O primeiro ponto, talvez o mais evidente, surge pelo facto de se tratar de uma empresa nova, pequena, que não só podia arriscar tematicamente, como não tinha modelos a seguir, além de que precisava de se diferenciar do Golias da animação que era a Disney. Se nada mais houvesse, só isto diz-nos desde logo que a Pixar se se quisesse afirmar na animação, teria que fazer diferente, e fez. Os animais da Disney são substituídos por brinquedos, mas todos têm uma individualidade própria, movendo-se por desejos e sentires, não dependendo de convenções, nem se importando em romper com tradições.

Relativamente ao método, a Pixar introduziu um sistema de criação muito particular, que horizontaliza os processos hierárquicos, incluindo os criativos. Desta forma, na Pixar não temos um diretor todo poderoso e visionário, mas este também tem de se submeter à avaliação interna pelos pares, que podem opinar de forma crítica, propondo alterações completas ao que está em curso. Deste modo as obras não são criadas segundo uma visão única, mas um conjunto de visões partilhadas sobre a realidade. De certo modo, podemos dizer que a Pixar operou uma democratização sobre o processo criativo, e que no caso o efeito acabou por ser progressista. Contudo, tenho dúvidas sobre o facto deste processo per se poder ser responsável por esse progressismo, pois acredito estar mais relacionado com as pessoas envolvidas, o que me faz passar ao terceiro e último ponto.



O background dos fundadores da Pixar é profundamente tecnológico e enraizado nos valores progressistas emanados do sentir de Silicon Valley. Aqui talvez o video-ensaio tenha acertado, a questão não é tanto a animação 3d, mas a sua tecnologia e o facto de as pessoas que a criaram, terem estado na base da produção dos filmes. O mundo da computação, verdadeiramente disruptivo, focado no avanço contínuo das tecnologias só muito dificilmente germina em ambientes conservadores. Deste modo, e tendo em conta os dois pontos anteriores, a necessidade de apresentar algo novo no género de animação, aliado ao facto de os artistas terem de ouvir as opiniões de tecnólogos, terá criado as condições ideias para que as produções iniciassem toda uma viragem em termos temáticos.

"How CGI Transformed Animated Storytelling" (2017)

julho 24, 2016

A longevidade do risco artístico

Lars Von Trier tem agora 60 anos, no entanto anda há mais de 30 anos a surpreender-nos, e se os seus filmes vão sendo sempre objeto de profundas análises e louvores, o que me surpreende verdadeiramente é mesmo a longevidade da sua carreira, nomeadamente por tudo aquilo que arrisca a cada nova obra.



Se quiserem passear através destes 30 anos, se quiserem voltar a sentir o brilho, a melancolia, mas também muita da alegria que foi experienciar estas obras nos primeiros visionamentos, não posso recomendar mais, o vídeo-ensaio em que Lewis Bond procura desconstruir o cinema de Lars Von Trier.

"Lars Von Trier - Deconstructing Cinema" (2016) de Lewis Bond

julho 17, 2016

Design de "Downwell"

Mark Brown apresenta mais uma masterclass de game design na sua série Game Maker's Toolkit, fazendo uma brilhante análise do design do ainda mais brilhante “Downwell” de Ojiro Fumoto, um dos jogos sensação de 2015.



A good idea is something that does not solve just one single problem, but rather can solve multiple problems at once”   Shigeru Miyamoto
Este conceito de Miyamoto serve de mote à análise para demonstrar como é que que Fumoto consegue a partir de tão pouco fazer tanto, ou seja, a essência do bom design. Aquilo que parece deve sê-lo, mas pode ser mais do que apenas aquilo que parece, e basta para tal imaginação e muita lógica.

Brown escalpeliza em detalhe o design, estruturando a análise a partir dos seus componentes centrais, ou mais imediatamente visíveis — gunboots, inimigos, aterragem, gemas, sub-salas, armas, saúde, estilos, e estética — para demonstrar como cada um deles serve várias camadas do design, trabalhando as dimensões de tempo, movimento e interdependência.

“Downwell” teve muito boa recepção pelo facto de ser um pequeno jogo indie mobile, feito por uma pessoa apenas, mas essencialmente pela sua enorme capacidade de produzir  enormes doses de flow nos jogadores, algo que se deve totalmente ao brilho do design. Interessante perceber que Fumoto não era estudante de design quando se lançou na criação de videojogos mas de artes, em particular de canto na Universidade de Tokyo!

"Downwell's Dual Purpose Design" (2016) Game Maker's Toolkit

julho 11, 2016

Da quebra de regras no cinema

Depois de ainda ontem aqui ter trazido uma das primeiras curtas de Spielberg a propósito do seu valor pedagógico, hoje trago um documental também de caráter pedagógico, que procura elencar uma lista de dez exemplos cinematográficos que quebraram as convenções fílmicas.





As convenções são essenciais na criação da linguagem de qualquer arte já que são o edifício expressivo da arte, o meio através do qual qualquer criador pode operar o sistema de signos e criar sentidos. Por outro lado qualquer grande artista tem sempre como grande motivação ir além dessas convenções, subvertê-las, quebrá-las, e criar novas formas de expressão. Daí que não surpreenda que as dez obras aqui apresentadas sejam praticamente todas grandes filmes da história do cinema. Cada uma à sua maneira ficou na história por ter apresentado algo novo, por nos ter desafiado, ter conseguido criar o novo e ser aceite.

Entre as convenções quebradas aqui analisadas temos — 4ª parede, montagem, 180º, visualização, fusão de géneros, morte de protagonista, narrativa anti-estrutura, vida sem edição, surrealismo, e pensamentos em imagens. Para isto os criadores do documental recorreram a obras como: Dogville; Breathless; Tokyo Story; Enter the Void; From Dusk till Down; Psycho; Last Year at Marienbad; Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles; The Discreet Charm of the Bourgeoisie; e The Mirror.

"Top 10 Favorite Rule Breaking Films" (2016) de Cinefix

São 15 minutos repletos de conhecimento que abrem uma pequena janela sobre a essência daquilo que constitui a arte cinematográfica.

janeiro 30, 2016

Composição cinematográfica

Em 15 minutos, no ensaio audiovisual "Composition In Storytelling", Lewis Bond dá uma aula completa de composição visual cinematográfica. Mais de uma centena de filmes desfilam em poucos minutos na nossa frente dando conta da diversidade e riqueza que constitui a palete visual do cinema para contar histórias.


Não tenho muito a acrescentar ao que é dito no ensaio. A composição visual é uma arte complexa porque apesar de se dar à padronização é da sua constante capacidade para surpreender que advém o grande envolvimento. O plano nunca visto, a diagonal, em sequência, com travelling, aberto, conjugado, etc. etc. tudo aquilo que cada criador consiga fazer da matéria plástica para passar a idea que pretende. Deixo uma ligação para um outro trabalho, do Nerdwriter, a propósito da composição de molduras, que analisa In the Mood for Love em profundidade e que vale a pena ver de seguida.


"Composition In Storytelling" (2016) de Lewis Bond 

Aproveito também para aqui partilhar um excerto do filme "Les Ailes" (1927) que começou a circular na web no final do ano que passou e que já surge aqui citado, e que mostra um inovador travelling em profundidade, raramente visto no cinema antes do surgimento das facilidades criadas pelo CGI.


Deixo a imagem abaixo extraída do ensaio que dá conta de alguns dos elementos a ter em conta no momento da composição que como refere Bond podem ser designados como influenciadores da expressividade de uma imagem composta. E no seguimento deixo a homenagem composicional de Gravity a 2001.

"To compose an image is to create an everlasting metaphor. Cinema in its purest form is visual storytelling, and the best cinema can tell a story through something as simple as the arrangements of an image."


janeiro 13, 2016

O longo caminho criativo

Adam Westbrook voltou ao tema com que lançou o seu projeto Delve Video Essays em 2014, o longo caminho dos criativos, com a terceira parte do ensaio "The Long Game" dedicada a Vincent Van Gogh. Para recordar vale a pena reverem a Parte 1 e Parte 2, focadas em Da Vinci.




Desta vez Adam confronta o momento atual em que vivemos rodeados de métricas de feedback, nomeadamente as ferramentas sociais e os seus números de "likes", "views", "comments", "reshares", etc., e um tempo em que Van Gogh durante 10 anos teve como único interlocutor e audiência, o seu irmão Theo. Daí que nos questione:
"In a world obsessed with popularity would we do our work regardless of the consequences? Would we still make our art, even if nobody is watching?"
Ao longo do ensaio vários conceitos da psicologia são repescados para dar explicação destes processos, em particular o "flow" que Adam usa para sustentar a motivação intrínseca de Van Gogh, o que sabe a pouco, e ficaria melhor servido com a "teoria da autodeterminação" de Deci. Por outro lado aquilo em que mais refleti ao ver este ensaio, para além da motivação intrínseca, foi a faceta de enorme persistência, um claro traço de personalidade que nos últimos tem vindo a ganhar relevo nos estudos de educação, "grit", uma espécie de faceta dotada de: resilência, aspereza, ambição e busca por resultados. Passar 10 anos na pobreza, a viver em casa dos pais, sem ninguém a quem mostrar o trabalho que se vai desenvolvendo, requer um compromisso consigo mesmo praticamente insustentável, uma perseverança e obstinação inquantificáveis.

"Painting in the Dark: The Struggle for Art in A World Obsessed with Popularity" (2016) da série The Long Game, Part 3, por Adam Wetbrook

No fundo esta é uma mensagem que conhecemos, que estamos cansados de ouvir, mas que pelo confronto diário com as métricas da popularidade, temos tendência a esquecer, a deixar-nos levar pelo imediatismo do que vemos na televisão, no cinema ou no Youtube, a fama imediata. A arte, o amor pela arte, nunca se coadonou com tal, e continua a funcionar como cola fundamental da manutenção da intenção do artista de subir às maiores montanhas para chegar ao destino almejado.

novembro 05, 2015

Adereços do storytelling

Rishi Kaneria criou um belíssimo ensaio audiovisual, “Why Props Matter”, no qual dá conta da importância dos adereços no cinema. Apesar de focado no cinema, serve qualquer outra arte narrativa (teatro, literatura ou videojogos), uma vez que a análise se foca no modo como estes impulsionam o contar de histórias.




De forma geral os adereços servem de caracterização, ou melhor de exteriorização dos personagens. Ou seja, as artes narrativas visuais sofrem do problema de terem de traduzir em imagem sentimentos de pessoas, ações internas, o que é por si só todo um trabalho de concepção, desenho e escrita para chegar ao melhor modo de o conseguir. Como posso mostrar que uma pessoa está impaciente ou nervosa? Mostrando-a a olhar incessantemente para o adereço “relógio”. O adereço contém em si mesmo uma carga significativa suficiente para traduzir visualmente aquilo que vai na cabeça do personagem.

Claro que fazer isto com sentimentos universais é até simples, ou quando simplesmente queremos dar conta dos objetivos externos ou das ação necessárias para os conseguir, mas quando queremos ir ao fundo da psyche do personagem, quando precisamos de traduzir complexidade interna e elaborada como o remorso, a vergonha, ou dar conta do crescimento e amadurecimento de um personagem, tudo fica mais complicado, e os adereços começam a fraquejar.

Não é por acaso que muitos dos exemplos aqui dados são do cinema de hollywood, um cinema reconhecido pela acção, pela aposta nos problemas externos dos personagens das suas histórias. "Como diz Kaneria, os adereços são objetos com que qualquer pessoa se consegue relacionar."

Mas quando queremos compreender com que se debate internamente uma criança abandonada pelos familiares, uma jovem violada por um pai, ou uma mãe que perdeu um filho, temos de recorrer ao cinema alternativo, nomeadamente independente ou europeu. E aí os adereços continuam a ter relevo, mas dada a complexidade que representam, a sua leitura é muito menos direta, deixa de existir um acesso facilitado ao mundo representado, ficando tudo muito mais dependente daquilo que o espetador consiga fazer com eles. No fundo assistimos à transformação dos adereços como objetos de representação em objectos de simbolização.



Alguns desses símbolos podem até tornar-se ícones após o seu uso numa obra, por via do contexto narrativo que passa atribuir-lhe valor direto, mas inicialmente surjem numa forma puramente simbólica, sem qualquer objetivo icónico, como uma roda de charrete em "O Dia do Desespero" (1992) de Manoel de Oliveira, ou uma árvore num descampado em “The Sacrifice” (1986) de Andrei Tarkovski.

“Why Props Matter” (2015) de Rishi Kaneria


Agradeço ao Fernando Martins que teve a amabilidade de me fazer chegar este ensaio.

março 06, 2015

Como a tecnologia nos muda, ou não...

As neurociências trouxeram imensos benefícios a praticamente todos os domínios do conhecimento, da psicologia à medicina, desde que o objecto de estudo se relacione com o ser-humano, elas estão no centro. Contudo precisamos de ter algum cuidado quando transferimos o conhecimento do meio académico para o meio geral, já que pelo meio se dão sempre amplificações e reduções que acabam, por vezes, por redundar em distorções. Um desses temas é o da plasticidade do cérebro, que tem sofrido um hype tremendo, nomeadamente quando associado às tecnologias de comunicação, como a internet (ver mais em Nicholas Carr, a internet e o nosso cérebro). Neste sentido, trago hoje dois pequenos filmes à discussão.



O primeiro, “Has Technology Changed Us? Rewiring the Brain” (2015), criado pela BBC e Open University, que vai de encontro exactamente ao problema que refiro acima. O filme, escrito por Nigel Warburton um filósofo britânico (e narrado por Gillian Anderson), pega no conhecimento entretanto desenvolvido no campo das neurociências e especula abertamente sobre o alcance desse novo conhecimento. Assim quem veja este filme, sem qualquer informação adicional, ficará com a ideia que o nosso cérebro, independentemente da idade, se adapta e modela ao sabor dos dias, que podemos mudar os nossos hábitos e personalidades, e que por isso mesmo o nosso cérebro se está a adaptar à velocidade e multitasking das tecnologias de comunicação, com todos os benefícios e problemas daí decorrentes. Ora, isto tudo é muito interessante enquanto especulação filosófica, mas tem pouco ou nenhum assento em ciência. O nosso cérebro muda sim, mas não muda à velocidade da nossa vida. Para determinadas mudanças são precisas gerações, para outras é preciso bem mais, entramos num processo de selecção natural que pode demorar milénios a efectuar-se.

Has Technology Changed Us? Rewiring the Brain” (2015) de Nigel Warburton

E é aqui que aproveito para introduzir o novo ensaio-audiovisual de Adam Westbrook, “A Briefer History of Time: How technology changes us in unexpected ways” (2015). Tenho apresentado aqui os filmes que Westbrook tem feito para o Delve (ver os vídeo-ensaios anteriores), desta vez trago um trabalho seu para o Fusion, feito como encomenda, e por isso feito de forma bastante mais rápida, segundo o próprio num terço do tempo, logo sem o amadurecimento que nos habituámos a ver no Delve. Contudo continua a ser um bom trabalho. E se o junto ao filme da BBC é porque ele dá conta do impacto das tecnologias, do modo como elas nos modificam, alteram aquilo que somos, sem precisar de entrar em teorias especulativas, apenas apresentando factos históricos e seus efeitos. A diferença, entre estas abordagens, está no tempo, mas não o das horas, o das gerações. Como a tecnologia imprime novos hábitos e comportamentos e como estes, com o passar dos tempos, se vão afirmando como parte de nós, ainda que não percamos nunca a percepção daquilo que somos. Ou seja, podemos mudar e aceitar mudar aquilo que somos, mas em essência mantemos aquilo que somos, continuando a sentir o apelo para retornar a essa forma que faz de nós seres humanos, e não outra coisa qualquer.

A Briefer History of Time: How technology changes us in unexpected ways” (2015) de Adam Westbrook

janeiro 31, 2015

Literacia da arte cinematográfica

Apesar de contra-intuitivo, compreender um texto cinematográfico, pode ser tão ou mais complexo que compreender um texto literário. A razão para tal prende-se com a forma, enquanto o texto é formado por uma base simbólica, que sabemos ter de ser apreendida, o cinema é formado por imagens e sons que mimetizam a realidade, capaz de criar a impressão de mera janela sobre a realidade, ausente de filtro, edição ou manipulação. A razão porque tal acontece é bastante simples, a escola ensina-nos que para saber ler, temos de aprender a escrever, ou seja, que só apreenderemos verdadeiramente o todo, fazendo. Já no caso do cinema, ou audiovisual em geral, isso não acontece, a grande maioria da sociedade passa a maior parte das suas vidas sem ter a menor a noção do modo como se “escreve” cinema. Mais, o facto de o cinema se dar como facsimile da realidade, leva a generalidade da sociedade a acreditar, que aprender a fazer para compreender, não faz o menor sentido! A série web “Every Frame a Painting”, criada por Tony Zhou, realizador e editor baseado em São Francisco, pretende exactamente contra-argumentar esta ideia.





Every Frame a Painting” é uma série online de ensaios-audiovisuais que nos fala da linguagem cinematográfica, a forma que sustenta plasticamente as ideias que se querem transmitir, desmontando o seu vocabulário e gramática. Ao longo de vários pequenos episódios, de 5 a 8 minutos, Zhou dedica-se a desmontar cenas, filmes, ou várias obras de um mesmo criador, nos seus aspectos composicionais, de montagem, iluminação, som, movimento e interpretação. Não é a única série sobre o assunto na rede, mas Zhou tem um talento especial para seleccionar as cenas e fragmentá-las de forma a tornar bastante evidente o conceito em discussão. Focando-se sobre um aspecto concreto, Zhou passa rapidamente várias imagens de vários filmes, ou várias sequências do mesmo filme, que tornam muito claro os aspectos formais em discussão. Pode-se dizer que cada filme destes é uma verdadeira aula.

Para vos tentar abrir o apetite escolhi três ensaios para ilustrar a série “Every Frame a Painting”, que conta já com 16 trabalhos. O primeiro, discute o modo como David Fincher trabalha os diálogos, uma das cenas mais banais da arte cinematográfica. Zhou demonstra como os diálogos para Fincher não são meros momentos de passagem de informação, mas são antes momentos de construção do drama, utilizando a linguagem audiovisual para enfatizar dramaticamente e conduzir o espectador.

"David Fincher - And the Other Way is Wrong" (2014) de Tony Zhou

O segundo trabalho que escolhi, desmonta a arte do silêncio cinematográfico, algo que em certa medida tem vindo a desaparecer da linguagem de Hollywood, apesar de nunca ter sido uma característica sua, é algo muito mais presente no cinema alternativo ou europeu. A verdade é que trabalhar o silêncio no cinema, é difícil, primeiro porque estamos perante uma arte de dois canais, o audio e o visual, o que parece obrigar-nos continuamente a dar conta de ambos. Em segundo lugar, derivado do primeiro aspecto, para garantir que o espectador continua ligado ao nosso filme, mantendo apenas o registo visual, é preciso saber preparar muito bem o espectador, o que é difícil, e requer experiência. Neste caso Zhou foi buscar um veterano da arte, Martin Scorcese, para exemplificar e detalhar o modo como se procede, e o que se busca nesses momentos.

"Martin Scorsese - The Art of Silence" (2014) de Tony Zhou

O último que deixo é sobre um filme, “Mother” (2009) de Joon-ho Bong, um autor por quem Zhou nutre clara admiração, tendo realizado outros dois ensaios dedicados a filmes seus - “Snowpiercer” (2013) e “The Host” (2006). O caso de Joon-ho Bong é paradigmático do que falava acima, sobre a compreensão da linguagem da arte fílmica. Não sendo eu grande fã de nenhuma das histórias trabalhadas por Bong, particularmente detestei o tema de “Snowpiercer” (2013) e “The Host” (2006), e mesmo “Mother” deixou-me morno, olhando à forma, desconstruindo a beleza do trabalho cinematográfico de Bong, abre-se todo um novo mundo de admiração em cada uma das suas obras. Neste mesmo sentido, deixo uma sugestão final, vejam o ensaio sobre Michael Bay.

"Mother - The Telephoto Profile Shot" (2014) de Tony Zhou


Como já devem ter compreendido, temos aqui um trabalho de serviço público, feito de modo totalmente voluntário. Por isso se no final de verem estes documentários, sentirem que o autor merece, podem patrociná-lo através do site Patreon.

janeiro 14, 2015

O alto custo do barato

Adam Westbrook publicou hoje mais um dos seus interessantíssimos ensaios audiovisuais no Delve, no qual nos fala de “Bananas, Sardines and Shark” (2015), ou antes sobre os impactos dos produtos baratos. Em apenas 7 minutos Westbrook dá conta das teias económicas que conseguiram mover meio mundo, precipitando a morte de milhares de pessoas, para manter o preço das bananas baixo. O foco do documento não é, de todo, as bananas mas a globalização e os seus atropelos aos direitos humanos, com uma mensagem final bastante forte que nos deve levar a reflectir sobre o consumo que fazemos todos os dias.



Mais uma vez Westbrook questiona-me sobre o valor do audiovisual para transmitir ideias, a sua capacidade para sintetizar conceitos, torná-los facilmente digeríveis e assim fazer com que cheguem a um muito maior número de pessoas. Claro que para tornar isto num artefacto envolvente, apenas nos é dado a saber um mínimo de elementos chave capazes de criar um raciocínio causal. E é nisso que Westbrook é muito bom, na escolha dos elementos chave, na construção da linha narrativa, e no processo de storytelling dando a informação apenas nos momentos correctos, mantendo-nos agarrados, surpreendendo-nos, e assim conseguindo fazer passar a sua mensagem.

Se quisermos perceber realmente o que se passou na Guatemala, ou como é que a CIA chegou aqui, teremos de aprofundar o assunto, e aí claramente que o meio do livro tem um alcance muito mais amplo. Aliás, Westbrook dá conta dos livros (http://delve.tv/bananas-sardines-sharks-video-essay-consumerism/) que usou para produzir este filme, tendo um deles servido para intitular o seu ensaio, “The Shark and the Sardines” de Juan Jose Arevalo.

"Bananas, Sardines and Sharks" (2015) de Adam Westbrook
"Before our favourite smartphones, tablets, taxi apps and online stores there was the humble banana. This remarkable true story of a Cold War coup warns us that no matter how cheap and convenient our stuff is, there is always a price to pay."

Causalidade de uma guerra

A propósito da I Grande Guerra, discutida no texto anterior, fui rever um ensaio audiovisual de Adam Westbrook do Delve, "Cause and Effect: the unexpected origins of terrible things" (2014). Fantástico, não apenas a brilhante capacidade de contar histórias de Westbrook, mas a perspectiva histórica apresentada por este a propósito do rastilho que terá dado origem à I Grande Guerra.




Não conheço o suficiente sobre esta guerra, não sei se a perspectiva aqui apresentada é original e quão correcta poderá ser, apesar disso Westbrook apresenta o encadeado de livros que utilizou para construir esta teorização sobre a causa da guerra, e mais do que isso fá-lo de uma forma totalmente convincente. Pode apenas ser mais uma teoria da conspiração, mas não deixa de ser altamente credível, assim como profundamente perturbadora.

"Cause/Effect" (2014) por Adam Westbrook
"The causes of World War One have been written about countless times, and you probably know the story. But is there another way of looking at it? Here's an alternative history to a catastrophe 100 years ago."

junho 19, 2014

O homem que transformou o papel em píxeis

Adam Westbrook publicou mais um brilhante ensaio audiovisual no Delve, sobre "The Man Who Turned Paper Into Pixels" (2014) com o subtítulo "How our digital world was born and the surprisingly simple idea that makes it work". São apenas 5 minutos mas valem todos os segundos. De uma forma absolutamente simples e extremamente eficaz Westbrook explica a base que dá suporte ao mundo digital, tornando muito fácil para qualquer pessoa perceber como foi possível converter o mundo analógico em meros "0" e "1".




Para todos os que se interessam pela Comunicação este é um filme a não perder. Ao contrário de se centrar apenas na tecnologia que suportou o surgimento do digital, o transístor, como tem sido feito por muitos outros analistas do processo, Westbrook baseado no texto do professor Andrew Lih sustenta o digital no modelo matemático criado por Claude Shannon, um dos pais das Ciências da Comunicação. O transístor sem um modelo capaz de sustentar o seu uso não teria passado de uma mera aplicação.

"The Man Who Turned Paper Into Pixels" (2014) de Adam Westbrook

Os video-ensaios anteriores de Adam Westbrook podem ser vistos em O longo jogo do génio.

maio 17, 2014

O longo jogo do génio

Trago uma nova série de filmes web criada por Adam Westbrook, relativamente conhecido pelo seu trabalho à volta do storytelling digital. Neste seu novo projecto, Delve Video Essays, Westbrook faz uma abordagem assente no formato de ensaio audiovisual, o que é por si só motivo de análise e exploração.



Para avançar com este projecto Westbrook escreveu um manifesto que me parece relevante ser lido, vindo de alguém que tem refletido bastante sobre o storytelling e a publicação online. Retiro do mesmo quatro pontos que levaram Westbrook a avançar com Delve.
1 - “serendipity is magical and it's something the Internet can't replicate so easily. All the knowledge is there - but it's built to be easily found if you know what you're looking for.”

2 - “The knowledge is all there, accumulated over 13,000 years of civilisation but it feels locked away somehow, as if it's out of reach. It's trapped behind glass etched with the dreaded word "boring".”

3 - “’people get the mind and quality of brain that they deserve through their actions in life’ (Robert Greene)… If you choose to use your free time to play Candy Crush Saga, watch Friends re-runs and read Buzzfeed, you will get the mind that comes from that. But if you choose to push your brain, to make it work hard, to keep learning new things, to read difficult books, to consider challenging ideas then, like the muscles on your body, it grows stronger and more connective… But it's much more rewarding to read Buzzfeed.”

4 - “I'd like you to meet delve - it's a web video channel I'm building for people who want to take their learning seriously. It's not a course, or a qualification, and it's not for people who want to study something particular. It's for people who love learning for the sake of learning, who want to feed their mind the most beautiful and unexpected feasts.”
Apresentado o Delve vejamos o que nos trazem os dois primeiros trabalhos, que formam apenas um em duas partes, “The Long Game” (2014). O tema de fundo não passa ao lado de todos aqueles que se interessam pelos processos criativos, pela mestria, um tema que se tornou mais relevante nos últimos anos com a discussão em redor das comunidades e indústrias criativas.

"The Long Game Part 1" (2014) Adam Westbrook

Assim o substrato diz respeito ao processo demorado da criação do génio. Westbrook explora o exemplo de Leonardo Da Vinci, considerado um dos mais relevantes criativos da nossa história, desmontando o seu surgimento, génio e talento. Todos sabemos que o processo de transformação de um criativo é um processo lento, mas saber que Leonardo levou 16 anos a conseguir atingir o seu auge, ajuda-nos a questionar muitas das ideias feitas que temos sobre os iluminados, os chamados “outliers”. Essencialmente este dois curtos ensaios audiovisuais servem para nos alertar para um discurso de facilitismo surgido no século XX e que procurou vender a juventude, com todas as suas propriedades, como a essência da vida e do talento, quando apenas o tempo e a experiência podem conduzir à qualidade, ao génio.

"The Long Game Part 2" (2014) Adam Westbrook


Links de interesse
Talento é Sobrestimado, in Virtual Illusion
Processo criativo, dos 2 aos 25 anos, in Virtual Illusion
Outliers de Malcom Gladwell, in Virtual Illusion

dezembro 31, 2012

emoção em estado puro

Girls first Ski Jump (2012) é um pequeno vídeo online, sem montagem nem interpretação, pura realidade e emoção, captada com uma pequena câmara (Countour), montada no capacete de uma menina de 10 anos. Kevin B. Lee num ensaio vídeo sobre os melhores vídeos online de 2012 diz apenas,

these two minutes capture the transformative drama of sport more profoundly than any Olympic highlight
O vídeo é emoção em estado bruto, consegue em dois minutos completar um arco narrativo completo, gerando não apenas a emoção do salto, mas dando a ver todo o sentir da primeira experiência de um salto de ski. É belíssima a abertura com o sussurrar, com o diálogo estabelecido com quem incentiva, é quase pornográfico em termos emocionais audiovisuais, porque é estar dentro do sentir emocional humano, sem máscaras, sem arte, no estado puro, até que finalmente arranca e se sente a adrenalina converter o medo em alegria. Chegando ao final, aquilo que era apenas o lamento humano, transforma-se por via da arte de uma sombra numa rotunda vitória, digno do melhor cinema.

novembro 18, 2012

Face de Spielberg, uma marca autoral

A propósito dos supercuts encontrei um vídeo-ensaio excepcional, criado por Kevin B. Lee, sobre aquilo que este considera ser uma marca autoral em Steven Spielberg, o "grande plano da cara de olhos bem abertos". Lee baseou este supercut/ensaio num trabalho apenas fotográfico de Matt Patches, The Spielberg Face: A Legacy.


O close-up facial é uma realidade que se tem acentuado imensamente nos últimos anos no cinema, nomeadamente no cinema de Hollywood em busca da estimulação de emoções fortes nos seus espectadores. Daí que o uso da cara seja uma obrigatoriedade, já que é através dela que grande parte da emocionalidade é transferida para o espectador. Desde as questões de mímica e de contágio emocional à simulação do sentir do outro, até à sincronia da linguagem verbal, todos os indicadores sobre o funcionamento do ser humano social indicam que nos agarramos desesperadamente aos sinais expressivos do outro para compreender o mundo que nos rodeia.


A face acaba por ser de todos os elementos do corpo, o mais rico em sinais expressivos, porque o mais provido de variedade muscular e consequentemente de potencial gramatical para a germinação conceptual de emoção. Para quem quiser aprofundar o estudo da face aconselho o Paul Ekman, estudioso da face nos últimos 40 anos. Ou um acesso mais simples, o brilhante documentário da BBC, The Human Face (2001), apresentado por John Cleese.




Neste pequeno trecho de Kevin B. Lee, somos levados por um passeio através de um supercut à volta das expressões faciais realizadas nos filmes de Spielberg ao longo dos últimos 40 anos e com dezenas de diferentes actores. Lee discute e fundamenta muito bem o fenómeno da Face de Spielberg, como marca de autor, mostrando plano atrás de plano de faces de personagens com os olhos bem abertos, em grande plano e com movimento de aproximação sobre dolly. Todas estas imagens, se convertem numa face única, a Face de Spielberg, que quer transmitir a ideia de que algo monumental, maravilhoso e épico está a acontecer em frente ao nosso personagem, e logo em frente a nós. Diria que a Face de Spielberg, é a face do verdadeiro Sonhador.

If there is one recurring image that defines the cinema of Steven Spielberg, it is The Spielberg Face. Eyes open, staring in wordless wonder in a moment where time stands still. But above all, a child-like surrender in the act of watching, both theirs and ours. It’s as if their total submission to what they are seeing mirrors our own.

The face tells us that a monumental event is happening; in doing so, it also tells us how we should feel. If Spielberg deserves to be called a master of audience manipulation, then this is his signature stroke. You can’t think of the most iconic moments in Spielberg’s cinema without The Spielberg Face.
Esta análise em vídeo, e como já tinha dito no texto anterior sobre os supercuts, demonstra muito claramente a enorme vantagem de analisar um filme com recurso à sua própria linguagem. Mesmo quando analisamos o texto de Matt Patches, que é muito próximo daquilo que aqui discutimos, como o conteúdo é apresentado apenas por meio de imagem estática, não podemos ganhar uma noção completa da marca autoral de Spielberg. Perde-se o movimento, o que neste caso é essencial dada a aplicação do movimento da dolly que contém em si mesmo uma enorme intensificação da expressividade do objecto.

Keyframe: The Spielberg Face (2012) de Kevin B. Lee