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março 03, 2014

a noite de Gravity

A lista dos Óscares 2014 poderia ter sido apenas mais do mesmo, mas não foi, com a excepção de melhor filme para o ultraclássico “12 Years a Slave”, a surpresa da noite foi mesmo "Gravity" que conseguiu arrecadar Melhor Realizador, e acumular um total de 7 óscares.


"Gravity" leva 7 óscares: Best Director, Film Editing, Cinematography, Original Score, Visual Effects, Sound Editing, e Sound Mixing.

"Gravity"que aqui analisei, mereceu plenamente os 7 óscares, não sendo o típico clássico acabará por se encaixar, daqui a muitos anos, nos chamados filmes de culto. Não há dúvidas que o trabalho estético feito em torno da montagem, cinematografia, e efeitos visuais e sonoros superou tudo o que até aqui conhecíamos, e por isso Gravity é um justo vencedor.

"Her" vence Original Screenplay

A juntar a Gravity fiquei muito contente também com o óscar de Melhor Argumento Original entregue a Spike Jonze pelo belíssimo argumento que apresentou com Her, do qual também já aqui falei.

De resto fiquei desiludido com o óscar de melhor animação, Frozen não merecia este prémio, assim como fiquei triste por Daniel Sousa não ter conseguido o óscar para o seu "Feral", de que aqui também falei.

março 07, 2013

a exploração dos criativos digitais

Os oscars de 2013 ficaram marcados pela contestação do grupo de trabalhadores do campo dos VFX (Efeitos Visuais). Uma área de trabalho cada vez mais importante para o cinema, mas que tem um reconhecimento em termos de mérito muito abaixo do seu valor. Esta falta de reconhecimento é dupla, porque acontece ao nível da contribuição para a estética final dos artefactos fílmicos, e depois ao nível da compensação financeira e ausência de estabilidade.


Começando pelo reconhecimento estético, que não é algo novo, mas está presente na Academia desde pelo menos 1982, o ano em que Tron não foi nomeado para o oscars de VFX. A lógica usada para excluir Tron dessa nomeação foi de que os criadores teriam feito batota na criação dos efeitos visuais ao utilizarem computadores! Fica o link para o excerto do livro em que falo deste acontecimento nos VFX. Esta lógica perdura ainda hoje, e cada vez mais, porque se em Tron era fácil distinguir o que era CGI e o que era imagem real, nos dias que correm isso deixou simplesmente de ser possível. Mesmo para um olho treinado, principalmente quando falamos de imagem em movimento, deixou de ser possível realizar essa distinção. Quando vemos o tigre de Life of Pi, só sabemos que aquilo não seria possível com um tigre real, de resto, não existe qualquer indicador visual que nos consiga garantir que não é real. Pior ainda quando falamos de filmes em que a evidência de poder ou não ser possível é menor, como é caso de Lincoln (VFX) ou Zero Dark Thirty (VFX).

Tron (1982)

Em termos estéticos os VFX servem o cinema cada vez mais em todas as frentes, não se trata apenas mais de criar o impossível, mas trata-se de um trabalho completo, que funciona como verdadeira pós-produção e que se ocupa de praticamente todo o filme. Como já se tornou prática dizer, nas rodagens de grande orçamentos, "We'll fix it in post production". E é claro que é possível, mas isso tem custos, não se trata apenas de fazer meia-dúzia de planos com um personagem 3d, de repente é necessário passar quase todos os planos através de algum processo de filtragem com olhar humano, e isso leva imenso tempo. E é aqui que começam a surgir os verdadeiros problemas da indústria de VFX que não são diferentes de praticamente toda a outra indústria criativa que trabalha com computadores.

Life of Pi (2012)

Criou-se na sociedade aquela ideia de que as coisas são feitas pelos computadores, a tal batota, e por isso é fácil, rápido e barato. Mas isto é uma das maiores falácias de toda a indústria criativa digital. Porque se é verdade que os computadores vieram acelerar todos os processos, trouxeram também um olhar muito mais clínico e perfeccionista, que não aceita que o boneco 3d se mova como se fosse um animatrónico (boneco mecânico), ele tem de se mexer de modo indistinto da realidade. Alguém aceitaria um tigre em Life of Pi que se movimentasse aos solavancos? Mas para isso são precisas muitas horas de trabalho duro, realizado por seres humanos, não são os computadores que fazem esse trabalho.
"Live action shooting can't go for 24 hours because they have union crews that expect to be paid. There's a cost factor and a turnaround time and all the other stuff, with people monitoring them and keeping them on track. But once the live action is done, there's nobody monitoring anymore, so the director and studio are free to change everything. They can ask for anything, and the VFX company has to do it. A director will go to the VFX guys late on and say something like, "Oh, I want to change all these skies. I want blue skies with fluffy clouds now." The problem is, that wasn't part of the original storyboards, so nobody would have predicted that, but the companies are reluctant to bill the studios. The studio might say, "Well, they charged us for this extra thing: we thought that would have been part of the deal!" So the effects companies accept the changes and don't pass the costs on to the client, so now what little profit they had, because they're competing against each other, is even less." Scott Squires entrevista na Empire
De repente para cumprir os prazos a companhia tem de contratar mais umas dezenas de pessoas. É possível fazer tudo o que possamos imaginar, mas alguém tem de o fazer, e esse alguém deve ser reconhecido por isso e como tal ser pago. Mas isso não acontece. Uma grande maioria trabalha por projecto, e não em empregos fixos. Quando o projecto acaba estão na rua. Durante esse projecto, passam quase todo o tempo em crunch-time, ou seja a fazer 90 a 120 horas (fonte) por semana para acabar o projecto a tempo de entrar na produção do filme A ou C. E depois ainda é preciso ouvir bocas de realizadores como Ang Lee que se queixam de que os efeitos são demasiado caros, ou pior,
“For a movie like this (“Life of Pi”) it’s very common for visual effects to take up half the budget. Some of those segments are so expensive. Millions of dollars have to be spent before the studio can see it. How do they approve that budget?” Ang Lee em entrevista à Variety.
A sério 50% do budget? Será que Ang Lee se deu conta que neste caso os VFX são responsáveis por quase 80% daquilo que se vê no ecrã?! Se acha que são caros, que faça mais Brokeback Mountain's, e deixe de desejar adaptar ideias literárias, impossíveis de filmar, ao ecrã.

Life of Pi (2012), com e sem os VFX da Rhythm & Blues, empresa que ganhou o Oscar para melhores VFX este ano, mas que apesar disso entrou em falência.

Para mim tudo isto é grave, não apenas por causa dos VFX mas porque vem colocar em evidência o problema clássico de quem trabalha indefeso, sem direitos, e sozinho. Os trabalhadores freelancer, ou por projecto de que aqui falamos, são aquilo que a sociedade está a tentar criar para todas as profissões. E este é o destino que nos espera. Ser espremido ao máximo em cada projecto, e ser jogado fora quando já não se é preciso. Deste modo a produção fica mais barata, porque não é preciso assegurar segurança social, seguros de saúde, subsídios de desemprego, etc. Cada trabalhador é apenas mais um bloco indistinto na engrenagem, facilmente substituível por qualquer outro, de preferência mais barato. Por isso a única resposta possível a tudo isto, só pode ser a criação de um sindicato para os trabalhadores de VFX.
"Visual-effects people pride themselves on being individuals, but the fact is that they work on projects and there are times when it's useful for people to gather as an organisation, to say, "No, we won't put up with this." We work really hard on what we do." Scott Squires entrevista na Empire
Não existe alternativa ao sindicato. Todas as outras profissões no cinema e televisão americanas são reguladas por sindicatos fortes, mas todas elas passaram pela mesma exploração que estão a passar os trabalhadores dos VFX, antes de se sindicarem. As pessoas têm de se mentalizar que o modelo individual não funciona, que é preciso unir-se, e defender-se a si e à sua profissão. Não podem trabalhar em freelancing e acreditar que não precisam de mais ninguém, são apenas eles e o cliente. Porque separados serão sempre explorados. Não é apenas a mão de obra barata do outro lado do mundo (Índia), não são apenas os apoios concedidos por países a certas indústrias para aí se instalarem (Canadá), não são apenas os clientes a exigir mais e mais e á última da hora, não é apenas o miúdo com qualidade que trabalha no quarto dos pais, sem pagar renda e com uma licença de software pirata. É tudo junto, tudo isto mina a qualidade de vida, e corrói a profissão.

Venham dizer-me que é corporativismo. E eu digo que não, que é antes defender a qualidade de vida, que é defender os mais fracos dos mais fortes, que é verdadeiramente viver em sociedade e contar com o próximo, e não ser atirado à sua sorte. Mais, que é preservar a profissão para que mais pessoas queiram enveredar pela mesma, e que o possam fazer sendo criativos e não meros escravos do pagamento a cada projecto incerto.

fevereiro 16, 2013

Oscars 2013: Best Animated Short Film

Depois de ter visto os cinco filmes em concurso, e de já aqui ter analisado três deles - Paperman, Adam and Dog, Heads over Heels - quero deixar apenas breves comentários sobre os outros dois filmes - The Simpsons: The Longest Daycare e Fresh Guacamole. Aproveito também para deixar uma apreciação geral e uma indicação do potencial vencedor.

Os 5 Nomeados ao Oscar de Melhor Curta Animada

Fiquei surpreendido com a nomeação da curta, The Simpsons: The Longest Daycare (2012) de David Silverman, mas depois de a ver admito que não é apenas mais um episódio da série, é uma curta bastante interessante e que recai sobre um dos personagens menos trabalhados da série, Maggie Simpson, a bebé. A curta aborda a entrada de Maggie para o infantário a partir dos olhos da bebé, e é simplesmente hilariante. A arte por sua vez é muito mais detalhada do que aquilo que estamos acostumados a ver nos episódios.

The Simpsons: The Longest Daycare (2012) de David Silverman

A última curta do lote é Fresh Guacamole (2012) o último trabalho de PES (Adam Pesapane) que conseguiu cerca de 3.5 milhões de visualizações em quatro dias, contando neste momento com quase 7.5 milhões no YouTube. Para quem não conhece o trabalho de PES os seus filmes são normalmente pequenas animações de um a dois minutos em stop-motion de surpreendentes deslocações da realidade. Aconselho vivamente que vejam para além da nomeação, que coloco aqui abaixo, Roof Sex (2002), Game Over (2006) ou Western Spaghetti (2008). Fresh Guacamole é uma espécie de segundo episódio de Western Spaghetti. Podemos dizer que PES encontrou no stop-motion de comida inventiva um nicho a explorar. Aliás julgo que a Academia com esta nomeação não quis apenas reconhecer este filme, mas o trabalho que PES tem vindo a desenvolver ao longo dos últimos anos.

Fresh Guacamole (2012) de PES

Por fim, olhando para as cinco nomeações é inevitável pensar que a curta dos Simpsons poderia ter dado facilmente lugar a outra nomeação, tendo em conta os restantes filmes. Aliás eu não teria a menor dúvida em substituir The Simpsons: The Longest Daycare por The Eagleman Stag (2011), um filme que já aqui analisei e que aconselho se ainda não viram. Mas consigo perceber a Academia que seguiu um padrão muito claro nas suas escolhas, nenhum dos cinco filmes nomeados tem diálogo, narração ou texto. Aqui The Eagleman Stag perde porque tem um narrador presente durante quase toda a animação. Julgo que a ideia da Academia será estimular a produção de técnicas de animação que sejam capazes de comunicar apenas visualmente, sem qualquer necessidade de verbalização. Parece-me um pouco forte, e até talvez obsessivo, embora reconheça na arte das ideias visuais a essência da animação, a animação é feita de arte visual e sonora. O diálogo não deve ser visto como um elemento estranho, embora também não deva servir de muleta para contar o que o animador é incapaz de contar em imagem.

Quanto ao vencedor não existe qualquer dúvida sobre quem irá ganhar, Paperman tem todos os trunfos. Não tem diálogo, inova na tecnologia, apresenta uma narrativa típica de Hollywood. É um filme que facilmente agrada a criadores, académicos e chega com muita força às massas. Gostava de ver Adam and Dog ganhar pela arte visual, apesar da história me decepcionar pela falta de rigor científico. Por outro lado a sua animação dificilmente consegue competir com a excelência do filme da Disney, falta-lhe produção o que é normal tendo em conta o modo como foi produzido. Aliás este é o mesmo problema de que sofre Head Over Heels tem uma narrativa soberba, mas a animação, apesar de muito boa, está longe do nível de Paperman. Num certo sentido a animação em Adam and Dog e Head Over Heels é até mais autêntica, mais pura, são os primeiros esboços dos seus criadores, enquanto Paperman denota as várias camadas de trabalho de produção subsequentes a cada esboço. Quanto a Fresh Guacamole parece-me que a nomeação é já em si o prémio que a Academia tinha em mente.

Vale a pena rever Paperman no YouTube em HD, nomeadamente ver as camadas de desenho à mão sobrepostas ao volume do 3d. Muito interessante por exemplo confrontar o puro 2d feito à mão de Adam and Dog com o 2d de Paperman e ver como as diferenças sobressaem ainda mais. Temos aqui não apenas uma tecnologia nova, mas uma nova técnica de animação.

Paperman (2012) de John Kahrs

fevereiro 11, 2013

"Head Over Heels" (2012), de pernas para o ar

Head Over Heels (2012) de Timothy Reckart é o terceiro filme candidato ao Oscar de Melhor Curta de Animação 2013 a chegar à rede, depois de Paperman (2012) de John Kahrs e Adam and Dog (2012) de Minkyu Lee. Head Over Heels é um filme de estudante criado por Timothy Reckart, 24 anos, como filme de graduação do mestrado em Realização de Animação na National Film & Television School (UK). A mesma escola por onde passaram Nick Park ou Mark Baker.


Na arte temos stop-motion com personagens e ambientes criados em plasticina, rugosos mas muito consistentes e coerentes. A cinematografia está bem trabalhada conseguindo apresentar o espaço de modo credível e facilmente inteligível tendo em conta os espaços invertidos e sobrepostos. Por sua vez a imagem é rica em textura, com muita cor e boa diferençiação espacial através da iluminação.


Mas a excelência de Head Over Heels brilha mais ao nível do conceito narrativo. A base da ideia passa por representar o sentimento de um casal que ao fim de muitos anos de vivência em comum deixaram de concordar sobre o sentido de cima ou baixo, e desse modo passaram a viver em sentidos inversos, ela no tecto e ele no chão. O conceito ajuda a inovar no campo visual, servindo ao mesmo tempo de metáfora brilhante sobre o desencontro entre casais, algo que vai surgindo naturalmente com o tempo.


Relativamente à inversão da gravidade, Reckart refere que a inspiração lhe surgiu a partir do quadro The Philosopher in Meditation (1632) de Rembrandt. Ao olhar para a simetria das escadas em espiral questionou-se sobre a possibilidade de duas pessoas poderem partilhar aquela mesma casa, uma no tecto e outra no chão. Quero no entanto relembrar que ainda há muito pouco tempo trouxe aqui um filme, Reverso (2012), também de estudante da escola ArtFx de Montpellier, no qual o personagem principal tinha perdido o sentido de gravidade. Vale a pena ver ou rever.

Head Over Heels (2012) de Timothy Reckart

fevereiro 09, 2013

"Adam and Dog" (2012), uma estética contemplativa

Adam and Dog (2012) de Minkyu Lee está nomeado para o Oscar de Melhor Curta de Animação 2013, e à semelhança de Paperman da Disney foi também agora disponibilizado online. A arte do filme apresenta elevadíssima qualidade assim como o storytelling, já o mesmo não posso dizer dos fundamentos da história que sofrem de uma simplificação ingénua, provavelmente motivada por crença religiosa.


O filme teve um investimento financeiro de apenas 25 mil dólares, mas totalmente pagos pelo próprio Minkyu Lee (27 anos). A estes será preciso adicionar também os dois anos de tempo e trabalho investidos pelo próprio, em regime de part-ime, já que nesse tempo trabalhava durante o dia na Disney como character designer em filmes como, Winnie the Pooh (2011) e Wreck-It Ralph (2012). E ainda o trabalho voluntário dos seus ex-colegas da CalArts, aonde fez a licenciatura em Character Animation. Ainda assim que não restem ilusões, este filme, uma obra independente, só está na lista de nomeados aos Oscars porque o criador teve acesso a canais privilegiados para o promover junto da academia.



Indo ao filme, o que me impressionou foi o tratamento estético dado ao filme, que toma o seu tempo para contar a história que tem para contar. O ritmo é pausado mas acompanhado por uma muito fluída animação de personagens, nomeadamente o cão que demonstra um realismo na linguagem não-verbal, absolutamente impressionante. O espaço é trabalhado de modo magistral, com planos gerais distanciados para poder não só enquadrar a acção, mas enquadrar também o ambiente e assim gerar o tom da atmosfera. Algumas das composições visuais dão vontade de ficar ali parados a olhar e desfrutar de tão bem organizadas, coerentes e ao mesmo tempo tão cheios de força dramática. Para fechar a luz, a luz contribuiu para toda a noção de espaço que temos, e garante a cada composição uma força única que sintetiza a orientação daquilo que a história nos quer dar. Aliás ao contrário de muito do cinema atual, Minkyu Lee passa toda a primeira parte do filme sem música, sustentando toda a sua composição emocional exactamente na iluminação de cada cena. A luz substitui aqui, e sem qualquer défice, o poder que normalmente deixamos nas mãos da música, porque esta é muito mais fácil de dirigir.


Esta orientação estética vem de encontro às influências referidas por Lee em entrevista - Andrey Tarkovskiy, Orson Welles, Terrence Malick - “in terms of narrative approach. Their films are much less about plot, more about the moment, the dimension of character. I felt that Eden should be portrayed that way, and that a traditional animation approach would take away from the sophistication of that.” Para além de tudo isto, esta curta é um novo hino ao mundo da animação 2d, tradicional e desenhada à mão.

Adam and Dog (2012) de Minkyu Lee