Quanto mais leio Vygotsky (1896-1934) mais rendido ao seu trabalho fico. Impressiona-me como conseguiu ele num tempo em que a psicologia era ainda algo bastante rudimentar desenvolver todo o seu trabalho com tanto método e objetividade. E se pensarmos que ele foi contemporâneo de Freud (1856-1939) impressiona ainda mais ver como não se deixou seduzir pela psicanálise, menos ainda pelas suas metodologias (ou ausência delas) para produzir o seu contributo. E por fim, mas não menos impressionante, é sabermos que todo o trabalho que nos deixou, e é bastante, foi criado em apenas 10 anos de vida, tendo morrido com apenas 37 anos. Neste livro "Imaginação e Criatividade na Infância" (1930) ataca duas das suas áreas centrais de interesse: a psicologia da arte e a psicologia do desenvolvimento. Assim ao longo das 100 páginas somos brindados com um conjunto de teorias, conceitos e explicações sobre o modo como a criatividade e a produção artística surge na criança, e se desenvolve no adolescente e adulto.
Não farei uma análise crítica do livro, move-me mais o interesse de sublinhar e reter o conhecimento apresentador Vygotsky. Deste modo destacarei aqui três secções do livro: uma primeira dedicada à definição da criatividade; uma segunda relativa ao processo criativo em ação; e uma terceira sobre o modo de potenciação da criatividade. Assim, sobre o primeiro ponto, Vygotsky dedica-lhe todo o primeiro capítulo, no qual acaba por discutir em profundidade não apenas a criatividade mas também a fantasia que é algo que Bruno Munari defende também como central na criatividade, e já aqui tinha dado conta a propósito do seu livro "Fantasia" (1977).
O que é a criatividade (ver capítulo 1)
"Qualquer ato humano que dá origem a algo novo é referido como um ato criativo, independentemente do que é criado: pode ser um objeto do mundo exterior ou uma construção da mente ou do sentimento que vive e se encontra apenas no homem. Se observarmos o comportamento do homem e toda a atividade que desenvolve, com facilidade reparamos que podemos distinguir dois tipos de atividade. A primeira, que podemos designar de reprodutiva ou reprodutora, está associada, de modo intrínseco, à nossa memória; a sua essência consiste no facto de o homem reproduzir ou repetir modos de comportamento já anteriormente elaborados e produzidos ou ressuscitar traços de impressões anteriores." (p.21)
"Além da atividade reprodutora, é fácil notar no homem outro tipo de atividade que combina e cria. Quando eu, por imaginação, desenho um quadro do futuro, digamos, a vida do homem na sociedade socialista, ou um quadro de uma parte da vida passada e da luta do homem pré-histórico, em ambos os casos, não repito impressões vividas por mim outrora. Não restabeleço simplesmente os traços de excitações nervosas pretéritas que chegaram ao meu cérebro; na realidade, eu nunca vi fosse o que fosse nem desse passado, nem desse futuro, e, no entanto, posso imaginá-lo, formar uma ideia, uma imagem ou um quadro." (p.23)
"O cérebro não é apenas um órgão que se limita a conservar e reproduzir a nossa experiência passada, ele é igualmente um órgão combinatório, que modifica criativamente e cria, a partir dos elementos da experiência passada, novas situações e novos comportamentos. (..) À atividade criadora baseada nas capacidades combinatórias do nosso cérebro, a psicologia chama imaginação ou fantasia." (p.23-24)
Como se processa o ato criativo (ver capítulo 3)
"Antes de criar a personagem de Natacha em Guerra e Paz, Tolstoi teve de detetar as características particulares das duas mulheres que lhe eram próximas; se não o fizesse, não as conseguiria misturar ou fundir na personagem de Natacha. A esta escolha de traços individuais e o abandono de outros podemos na verdade denominar dissociação. Este processo é muito importante em todo o desenvolvimento mental do homem, serve de base do pensamento abstrato e é o fundamento da formação de conceitos." (p.48)
"Vemos deste modo que o exagero, tal como a imaginação, de um modo geral, é tão necessário na arte como na ciência. Não fosse esta capacidade, que se manifestava de modos tão divertidos no conto da menina de cinco anos e meio, a humanidade não seria capaz de criar a Astronomia, a Geologia e a Física.
A parte constituinte seguinte nos processos imaginativos é a associação, ou seja, a junção dos elementos dissociados e alterados. Como já foi notado anteriormente, esta associação pode ter lugar sobre bases diferentes e tomar formas diferentes, que vão da união puramente subjetiva de imagens até à junção científica objetiva, como a que evidencia, por exemplo, a representação geográfica." (p.52)
"Qualquer inventor, mesmo que seja um génio, é sempre o produto do seu tempo e época. A sua criatividade parte de necessidades que foram criadas antes dele e apoia-se nas possibilidades que residem fora dele. É por isso que notamos uma sucessão rigorosa na história do desenvolvimento da técnica e da ciência. Nenhuma invenção ou descoberta científica surge antes de se criarem as condições materiais e psicológicas necessárias para o seu surgimento. A criatividade representa um processo histórico contínuo, em que toda a forma subsequente é definida pela anterior. É exatamente isto que explica a distribuição desproporcional dos inovadores e cientistas entre diferentes classes sociais. As classes privilegiadas dão incomensuravelmente uma percentagem maior de criadores na ciência, na técnica e na arte, porque, de facto, nestas classes existem mais condições para a criação." (p.55)
Os requerimentos da Criatividade (ver capítulo 4)
"Tudo isto, no seu conjunto, serviu de base para afirmar que a fantasia na idade infantil é mais rica e variada do que a fantasia no adulto. No entanto, esta opinião não encontra fundamentação na investigação científica. Sabemos que a experiência da criança é mais pobre do que a experiência do adulto. Sabemos também que os seus interesses são mais simples, elementares e mais pobres; por fim, a sua relação com o seu contexto é igualmente menos complexa, desprovida da precisão e variedade do comportamento da pessoa adulta, sendo que todos estes fatores são importantíssimos definidores do trabalho da imaginação. A imaginação na criança, como mostra esta análise, não é mais rica, mas mais pobre do que a imaginação do homem adulto; ao longo do processo de desenvolvimento da criança também se desenvolve a imaginação e atinge a maturidade na idade adulta." (p.58)
"a imaginação, ao longo do seu desenvolvimento, passa por dois períodos divididos por uma fase crítica. A curva IM representa o desenvolvimento da imaginação no primeiro período. Eleva-se bruscamente e depois, durante bastante tempo, mantém-se no nível atingido. A linha RO, a tracejado, representa o percurso do desenvolvimento da inteligência ou do raciocínio. Este desenvolvimento começa, como se pode ver na figura, mais tarde e aumenta mais lentamente, porque requer uma grande acumulação de experiência e uma maior complexidade na sua elaboração. É só no ponto M que as duas linhas do desenvolvimento da imaginação e do desenvolvimento da inteligência coincidem (..) "A partir do momento do encontro das duas curvas, a da imaginação e a do pensamento no ponto M, o desenvolvimento posterior da imaginação segue, como mostra a linha MN, sensivelmente paralelo à linha do desenvolvimento do pensamento XO. A divergência típica da idade infantil desaparece; a imaginação, estreitamente associada com o pensamento, segue-o agora ao mesmo passo." "uma outra variante, que na figura está simbolizada pela curva MN’, que decresce rapidamente «A imaginação criativa diminui e isto é o caso mais frequente. A exceção é devida apenas aos mais dotados de imaginação talentosa, a maioria dos quais entra a pouco e pouco na prosa da vida quotidiana, enterra os sonhos da juventude, considera o amor uma quimera, etc.»" (p.60)
"A criança pode imaginar muito menos coisas do que um adulto, mas acredita mais nos produtos da sua imaginação e controla-os menos, e por isso a imaginação, no dia a dia, no sentido comum da palavra, isto é, algo de irreal ou inventado, é certamente maior na criança do que no adulto. No entanto, não só o material a partir do qual se constrói a imaginação é mais pobre na criança do que no adulto, como também o caráter das combinações que se juntam a esse material é, na sua qualidade e variedade, inferior em relação às combinações realizadas pelo adulto." (p.61)
A tradução foi feita por João Pedro Fróis a partir do russo. Do que comparei com a versão inglesa, posso dizer que a tradução portuguesa é não só cuidada como mais detalhada.
Presume-se que a combinação de elementos pré-existentes configura, em termos ontológicos, um acto de criação de um terceiro elemento. Tenho sérias dúvidas sobre a validade dessa afirmação.
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