outubro 31, 2019

Autoajuda para artistas?

"The Artist's Way: A Spiritual Path To Higher Creativity" (1992) é um livro muito problemático porque contém ideias muito interessantes misturadas com ideias muito censuráveis. Claramente que apelando ao nosso sentido crítico qualquer um pode extrair a parte boa e negligenciar a má, contudo é preciso ter algum arcaboiço de experiência de vida para compreender os problemas do que vai sendo apresentado, o que não acontecerá com alguém até aos vinte e poucos anos. Isto torna-se ainda mais problemático quando o livro serve exatamente melhor alguém em crescimento, alguém em busca do seu caminho, com necessidade de alguém que lhe fale daquilo que sente e que lhe diga que não está sozinho. Em parte, quase me atreveria a dizer que para quem está na bifurcação das escolhas de futuro profissional, o livro pode ser todo ele bastante interessante, mesmo o lado mau, já que ele funciona como um garante extra de motivação para essa escolha. Contudo, considero que deixar-se seduzir por este tipo de discurso, apesar de poder ajudar nessa fase, pode vir a trazer bastantes dissabores, mais à frente, quando se perceber que a realidade é distinta daquela aqui apresentada.


Vou elencar alguns dos elementos imensamente positivos e relevantes para quem pretende seguir uma carreira artística, seguido dos vários problemas enunciados ao longo do discurso:

Lado Positivo e Criativo

  • Proposta de escrita de "morning pages" (todos os dias de manhã escrever 3 páginas do que nos vier à cabeça, para alguns isto já acontece com o Diário, para outros com um blog...)
  • Proposta de escrever a partir do nosso passado, a partir de sonhos não realizados, de gostos e preferências de criança, de objetos espaços e locais que falam ao nosso Eu.
  • Proposta de escrever sobre vidas imaginárias que gostaríamos de ter vivido.
  • Todo o modo como trabalha os bloqueios criativos, especialmente os medos e a baixa autoestima para garantir a criação de espaços e tempos criativos, tal como parar de nos recriminar, de nos culpar, queixar ou questionar a capacidade de fazer.

Lado Problemático

Para além de ser um livro de autoajuda, vem ainda disfarçado de livro de terapia, o que acentua o problema destes livros que se baseiam exclusivamente na experiência pessoal dos autores, suportados em mero anedotário, não corroborados por quaisquer estudos. Funcionará muito bem para pessoas que se enquadrem no tipo de personalidade e experiência de vida da autora, mas dirá muito pouco a uma grande parte de leitores. Alguns dos exemplos problemáticos que esta abordagem nos dá:

  • Uma visão demasiado assente em princípios teológicos, disfarçados pelos conceitos do movimento New Age.
  • Uma visão demasiado egocêntrica, por vezes quase a roçar o Objetivismo de Ayn Rand 
  • Demasiada ingenuidade (ou de sobranceria) quanto às definições da Arte, agravando-se na definição do Artista.

Se querem um livro sobre como desenvolverem-se como artistas, não posso deixar de recomendar vivamente o livro de Stephen King “On Writing: A Memoir of the Craft” (2000), ainda que baseado na experiência do autor, resulta de um método aplicado durante décadas e com largos frutos, não havendo lugar a justificações transcendentes. O que é feito neste livro é a tradução em texto de um processo criativo, o que permite a qualquer pessoa aprender pela imitação, sem espaço para qualquer autopiedade.

Por outro lado, e agora falando em concreto das pessoas, porque isso é também relevante, já que a autora faz questão de trazer a sua vida pessoal para o centro da cena, a verdade é que pesquisando a vida e obra de Julia Cameron, não existe aquilo que à partida pareceria existir, ou seja, uma vida de produções artísticas, nem grandes nem pequenas, apenas uma mão cheia, sendo a coisa mais importante um episódio da série Miami Vice, e o casamento de um ano com Martin Scorsese. Cameron escreveu mais de 20 livros, mas todos após o sucesso deste, e todos a falar destas mesmas coisas. Ou seja, seguir Cameron não é um processo de imitação do processo de desenvolvimento de um artista, mas antes ouvir boas palavras de incentivo à persistência. No fundo Cameron tornou-se uma guru da autoajuda para iniciantes ou desejosos de se tornarem artistas, e isso também explica muito das discussões em sua defesa que encontramos na net.

outubro 27, 2019

Kevin Kelly e o Elogio da Tecnologia num Mundo Sem Humanos

Este livro — "The Inevitable: Understanding the 12 Technological Forces That Will Shape Our Future" (2016) — tem sido vendido como tecnológico-otimista, mas devia antes ser catalogado como tecnológico-ridículo. Seis anos depois de ter publicado um dos livros mais interessantes sobre tecnologia, "What Technology Wants" (2010), Kelly conseguiu inverter totalmente o pólo para nos oferecer um mero remendo de textos de blog, feito de múltiplas divagações inconsequentes, distorções da realidade e ainda múltiplos erros. Isto não é ingenuidade, como alguns apontaram, isto é puro desleixo e acima de tudo alheamento do mundo, tanto da sua parte como de quem editou o livro.


A melhor forma de perceber a razão da minha crítica dura é ler este excerto abaixo, retirado do capítulo 5, "Accessing":
I live in a complex. Like a lot of my friends, I choose to live in the complex because of the round-the-clock services I can get. The box in my apartment is refreshed four times a day. That means I can leave my refreshables (like clothes) there and have them replenished in a few hours. The complex also has its own Node where hourly packages come in via drones, robo vans, and robo bikes from the local processing center. I tell my device what I need and then it’s in my box (at home or at work) within two hours, often sooner. The Node in the lobby also has an awesome 3-D printing fab that can print just about anything in metal, composite, and tissue. There’s also a pretty good storage room full of appliances and tools. The other day I wanted a turkey fryer; there was one in my box from the Node’s library in a hour. Of course, I don’t need to clean it after I’m done; it just goes back into the box. When my friend was visiting, he decided he wanted to cut his own hair. There were hair clippers in the box in 30 minutes. I also subscribe to a camping gear outfit. Camping gear improves so fast each year, and I use it for only a few weeks or weekends, that I much prefer to get the latest, best, pristine gear in my box. Cameras and computers are the same way. They go obsolete so fast, I prefer to subscribe to the latest, greatest ones. Like a lot of my friends, I subscribe to most of my clothes too. It’s a good deal. I can wear something different each day of the year if I want, and I just toss the clothes into the box at the end of the day. They are cleaned and redistributed, and often altered a “bit to keep people guessing. They even have a great selection of vintage T-shirts that most other companies don’t have. The few special smartshirts I own are chipped-tagged so they come back to me the next day cleaned and pressed.
I subscribe to several food lines. I get fresh produce directly from a farmer nearby, and a line of hot ready-to-eat meals at the door. The Node knows my schedule, my location on my commute, my preferences, so it’s really accurate in timing the delivery. When I want to cook myself, I can get any ingredient or special dish I need. My complex has an arrangement so all the ongoing food and cleaning replenishables appear a day before they are needed in the refrig or cupboard. If I was flush with cash, I’d rent a premium flat, but I got a great deal on my place in the complex because they rent it out anytime I am not there. It’s fine with me since when I return it’s cleaner than I leave it.”
“I have never owned any music, movies, games, books, art, or realie worlds. I just subscribe to Universal Stuff. The arty pictures on my wall keep changing so I don’t take them for granted. I use a special online service that prepares my walls from my collection on Pinterest. My parents subscribe to a museum service that lends them actual historical works of art in rotation, but that is out of my range. These days I am trying out 3-D sculptures that reconfigure themselves each month so you keep noticing them. Even the toys I had as a kid growing up were from Universal. My mom used to say, “You only play with them for a few months—why own them?” So every couple of months they would go into the box and new toys would show up.
Universal is so smart I usually don’t have to wait more than 30 seconds for my ride, even during surges. The car just appears because it knows my schedule and can deduce my plans from my texts, calendar, and calls. I’m trying to save money, so sometimes I’ll double or triple up with others on the way to work. There is plenty of bandwidth so we can all screen. For exercise, I subscribe to several gyms and a bicycle service. I get an up-to-date bike, tuned and cleaned and ready at my departure point. For long-haul travel I like these new personal hover drones. They are hard to get when you need them right now since they are so new, but so much more convenient than commercial jets. As long as I travel to complexes in other cities that have reciprocal services, I don’t need to pack very much since I can get everything—the same things I normally use—from the local Nodes.
My father sometimes asks me if I feel untethered and irresponsible not owning anything. I tell him I feel the opposite: I feel a deep connection to the primeval. I feel like an ancient hunter-gatherer who owns nothing as he wends his way through the complexities of nature, conjuring up a tool just in time for its use and then leaving it behind as he moves on. It is the farmer who needs a barn for his accumulation. The digital native is free to race ahead and explore the unknown. Accessing rather than owning keeps me agile and fresh, ready for whatever is next.
O que acabaram de ler podia bem ser um sonho de Lenine numa noite de 1916, em que veria o futuro em 2116 da sociedade soviética otimizada pela força do trabalho comum, partilhado, suportado pelo poder da tecnologia na produção do bem supremo para todos. O problema aqui não é o Comunismo, é o passar por cima de todos os problemas desse regime, mantendo apenas o lado da teoria e do sonho. Tudo o resto, que tem que ver com aquilo que faz de nós seres humanos, auto-motivados e autónomos, é totalmente ignorado, como foi ignorado durante 70 anos na URSS, e continua a ser ignorado na China.

O que isto põe a nu, é aquilo que estamos cansados de saber, que muitas das pessoas que gravitam no domínio da tecnologia, têm a sua bússola apenas focada na invenção tecnológica, nas possibilidades e impossibilidades da matéria, e ignoram totalmente o humano. Não compreendem que a tecnologia, por muito que afete os humanos, não passa de ferramenta e extensão daquilo que intrinsecamente somos. Que a tecnologia per se não altera, em nada, isso que somos. Que a invenção do Nuclear tanto serviu para providenciar vidas melhores a milhões de humanos, por via das centrais de produção elétrica, como serviu para tirar vidas as milhões de humanos em parcos segundos. Que o machado é fantástico para cortar lenha e providenciar calor, mas é brutalmente ainda mais eficaz no abrir da cabeça uns aos outros.

Isto para não falar do ridículo que é lançar uma prospeção destas sem fundamentar de onde adviria o contributo do sujeito, já que nesta extensa divagação este não produz nada, limita-se a consumir o que dezenas de pessoas continuam a produzir. Ou seja, no limite isto nem sequer se trataria de uma utopia comunista, mas talvez melhor dizer uma utopia monárquica. Ou seja, não há limites para quem se limita a pensar do alto do seu bem-estar o que pode vir a conseguir ainda de melhor para si, quanto ao resto da sociedade, logo se vê. Aliás, repare-se no tamanho ridículo da afirmação feita um pouco à frente:
“The more we benefit from such collaboration, the more open we become to socialized institutions in government. The coercive, soul-smashing system that controls North Korea is dead (outside of North Korea)”
Eu sei que ele escreveu isto antes de Trump ser eleito, mas era preciso Brexit e Trump para compreender aquilo que os negacionistas do Holocausto não param de fazer há décadas? Mas depois é ver como Kelly tanto aponta para a direita como para esquerda, sem saber ao que vem nem vai, veja-se as contradições:
“The increasingly common habit of sharing what you’re thinking (Twitter), what you’re reading (StumbleUpon), your finances (Motley Fool Caps), your everything (Facebook) is becoming a foundation of our culture. Doing it while collaboratively building encyclopedias, news agencies, video archives, and software in groups that span continents, with people you don’t know and whose class is irrelevant—that makes political socialism seem like the logical next step.”
E logo a seguir:
“Instead of a government monopoly distributing mail, let market players like DHL, FedEx, and UPS try it as well. In many cases, a modified market solution worked significantly better. Much of the prosperity in recent decades was gained by unleashing market forces on social problems.”
Repare-se ainda no seguinte:
“is neither the classic communism of centralized planning without private property nor the undiluted selfish chaos of a free market. Instead, it is an emerging design space in which decentralized public coordination can solve problems and create things that neither pure communism nor pure capitalism can.”
Algumas páginas depois
“The shift from hierarchy to networks, from centralized heads to decentralized webs, where sharing is the default, has been the major cultural story of the last three decades”
Confrontando numas páginas mais à frente:
“If one looks hard and honestly, even the supposed paragon of user-generated content—Wikipedia itself—is far from pure bottom-up. In fact, Wikipedia’s open-to-anyone process contains an elite in the back room. The more articles someone edits, the more likely their edits will endure and not be undone, which means that over time veteran editors find it easier to make edits that stick, which means that the process favors those few editors who devote lots of time over many years (..) “These persistent old hands act as a type of management, supplying a thin layer of editorial judgment and continuity to this open ad-hocracy. In fact, this relatively small group of self-appointed editors is why Wikipedia continues to work and grow into its third decade.”
Kelly diz-nos então que nem o capitalismo nem o comunismo são bons, e depois apresenta-nos uma suposta terceira-via, a mistura ambas, mas que no final nos dá o mesmo do regime da URSS, que não era Comunismo, porque o comunismo real só existe em teoria, quando levado à prática transforma-se em algo diferente. Para manter todos a colaborar e a partilhar aceita-se a necessidade de estruturas hierárquicas que impõem a missão e a regulação segundo os seus próprios ideais. Veja-se a recente promoção de Xi Jinping a líder da China vitalício. O coletivo é ótimo e a hierarquia é necessária, desde que sejamos nós a controlar o topo! É muito pobre, mero deslumbramento com as possibilidades do coletivo, que já tantas vezes destruiu comunidades, sociedades e nações inteiras.


Noutro registo completamente diferente, Kelly apresenta-se como um verdadeiro seguidor da sociedade das métricas e quantificações. Ao longo de todo o livro, são continuamente contabilizadas as horas, os minutos, as produções, as partilhas, os comentários, dos milhões e milhões de utilizadores. Tudo isso serve para lançar supostas teorias sobre o futuro, o problema é que para se conseguirem ler corretamente esses números, não bastam os números, é preciso conhecer o humano, como ele funciona e se comporta, e isso está sempre ausente em toda esta discussão.
“Every 12 months we produce 8 million new songs, 2 million new books, 16,000 new films, 30 billion blog posts, 182 billion tweets, 400,000 new products. (..)  
It is 10 times easier today to make a simple video than 10 years ago. It is a hundred times easier to create a small mechanical part and make it real than a century ago. It is a thousand times easier today to write and publish a book than a thousand years ago. (..)
if you track the number of songs being written every year, there are millions and millions. We’re on a curve where basically everybody in the world will have written a book or a song or made a video, on average (..)  
YouTube videos are viewed more than 12 billion times in a single month. The most viewed videos have been watched several billion times each, more than any blockbuster movie. More than 100 million short video clips with very small audiences are shared to the net every day. Judged merely by volume and the amount of attention the videos collectively garner, these clips are now the center of our culture.”
Não entrando sequer naquele "todo o mundo", que deixa fora uma gigantesca divisão digital, eu pergunto, no caso do texto, como relacionar os triliões de carácteres escritos por milhões de nós no Facebook, Twitter ou Instagram com a meia-dúzia de livros que permanecem para a posteridade em cada ano? Em que que é que diferem as câmaras e computadores para filmar e montar um filme e colocá-lo na nuvem, e as canetas ou computadores para escrever, dos filmes e livros que valem a pena manter vivos na nossa memória? Não é com certeza a tecnologia, essa é irrelevante, não será antes a capacidade de cada humano de criar usando essas ferramentas, dependente do talento e de anos e anos de investimento e esforço na aprendizagem da literacia da arte? Mas isso é irrelevante para alguém que pouco à frente, quando fala em literacia é apenas para definir técnicas de citação, de cortar e copiar, e acaba com esta brilhante frase:
“These tools, more than just reading, are the foundations of literacy.” 
Toda a forma como vai falando sobre política, comunicação, media, atrevendo-se até a falar de identidade, é atroz pela simples razão de que consegue apenas ver um lado da equação, o da tecnologia, esquecendo que para que a tecnologia funcione são precisos humanos que a adoptem. Mas isto é algo enraizado, veja-se a discussão sobre o futuro da Realidade Virtual, dá pena ver como tendo Kelly estado lá, na génese em 1989, passados 30 anos pouco aprendeu sobre a mesma, ou melhor, sobre os humanos que supostamente a deveriam usar. Porque se a tecnologia é teoricamente fantástica, o tempo e o uso mostrou que os humanos não estão interessados nela porque existem uma quantidade de barreiras psicológicas ao seu uso. No entanto gasta páginas e páginas a discutir o que a VR nos vai trazer, fala do hipertexto e hipermedia como se estivessem para chegar, parecendo amiúde estar a escrever em 1995. Talvez isto não seja propriamente alheio à vida pessoal de Kelly, alguém que passa o tempo a teorizar sobre o futuro tecnológico, mas depois se regozija por não usar nenhuma dessas tecnologias. Diz-nos que o seu trabalho é experimentar doses mínimas para contar aos outros, como se meras horas de contacto fossem representantes do uso real. No caso dos videojogos que nos traz (ex. Red Dead Redemption 2) nem sequer os experimenta, simplesmente vê os outros a jogar. Dá para rir, se não tiverem pago pelo livro.

Por outro lado, Kelly apresenta um problema clássico, a falta de estudo e análise do trabalho feito por tantos outros antes de si. Não que ele não cite outros, mas a grande maioria não vai além de sites, notícias e wikis. Veja-se o exemplo: ao longo do livro Kelly continuamente afirma o mundo como "líquido", uma característica que fundamenta na tecnologia de digitalização e gestão do produto dessa, do como tudo isso altera o nosso bem-estar. Contudo, não existe uma única referência a Zygmunt Bauman, o criador do conceito "modernidade líquida". Não sei se por desconhecimento, por incompreensão ou simplesmente por vontade de omissão, mas se tivesse parado para confrontar a sua tecnologia líquida com o humano líquido de Bauman, Kelly teria compreendido muitos dos erros que cometeu ao longo de todo este livro.

O mesmo pode ser dito da total alucinação que acontece quando chegamos ao capítulo 10, "Tracking", em que Kelly escreve o seguinte:
Ubiquitous surveillance is inevitable. Since we cannot stop the system from tracking, we can only make the relationships more symmetrical.”
Não bastava a barbaridade de afirmar que a vigilância total é inevitável, como vai mais longe, e propõe como modo de combater os seus problemas, que todos saibamos o mesmo uns sobre os outros, incluindo empresas e estados. Vamos esquecer a encriptação porque as passwords não protegem nada, e vamos ser todos transparentes. Isto é tão insano que nem sei por onde começar, porque isto representa um enorme potencial de problemas para a identidade humana. Se eliminarmos os redutos em que a identidade pode crescer e florescer na sua privacidade individual, teremos apenas um amontoado de massa homogénea, que como sabemos tenderá para a frustração. Mas isto nem sequer é o maior problema, o que poderiam fazer aqueles que nos querem mal tendo acesso a todo esse conhecimento, não apenas nós indivíduos, mas a empresas e a estados? Kelly sente-se muito orgulhoso por defender Snowden e depois baseia quase todas as suas conclusões no bom funcionamento da impossibilidade de anonimato no Facebook, como se isso fosse uma panaceia para tudo. Como se as empresas em vez de competir entre elas colaborassem e fossem amigas, dispostas a perder umas para outras, mesmo que isso implicasse perder acionistas ou ter de despedir trabalhadores. Como se as pessoas se sentissem felizes por ver os outros, na mesma condição que eles, a ganhar mais porque são primos ou enteados. No fundo, como se o mundo fosse um mero sistema computacional, e as regras societais apenas algoritmos, bastando aperfeiçoar os algoritmos e tornar o código aberto, para eliminar todos os bugs, todos os problemas.

outubro 26, 2019

O Ridículo de Zeno

Enquanto lia "A Consciência de Zeno" (1923) de Italo Svevo lembrei-me por várias vezes de Thomas Bernhard, este último não sabe escrever sem dizer mal dos outros, o primeiro não sabe escrever sem se queixar e vitimizar. O problema agrava-se porque essa forma de escrever não é algo simplesmente ficcionado, mas antes está patente nas personalidades de ambos. Por isso dispenso. Os dois escrevem muitíssimo bem, e Svevo é não só imensamente poético como dono de uma capacidade rítmica quase perfeita. Mas dizerem que Svevo inventava aqui o narrador em primeira pessoa e não confiável modernista, parece-me um exagero, mais de 40 anos antes, na transição do romantismo para o realismo, já Machado de Assis nos dava isso em todo o seu esplendor com "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881).


Alguns comparam Zeno a Dom Quixote, mas parecem-me bastante distantes. A loucura de Quixote é assumida, é frontal, enquanto em Zeno roça a seriedade. Podemos entender que Zeno apenas brinca, mas também podemos dizer que aquela é a personalidade real de Zeno. Mais, conhecendo um pouco mais sobre Svevo, nomeadamente por via da sua esposa, ele era neurótico, psicologicamente instável, e na maior parte do tempo completamente alheio à realidade. Ora isto é exatamente aquilo que Zeno é, por isso dizer-se que tudo aquilo é apenas ironia é apenas uma forma subtil de desculpar toda a alienação hipocondríaca de desprezo pelo outro, principalmente do sexo feminino, que trespassa toda a obra.

Do lado positivo, além da técnica, existem dois focos que me interessaram particularmente, as fortes críticas à psicanálise e à bolsa de valores, demonstrando uma certa presciência da parte de Svevo, uma vez que a psicanálise viria a ser desmascarada pela sua incapacidade de tratar as patologias da mente, e a bolsa viria a produzir uma das maiores crises económicas de sempre, poucos anos depois, em 1929.

Por outro lado, a colagem de Svevo a Proust, como "o Proust Italiano", também não cola para mim. Sim, a escrita é de grande qualidade, mas está imensamente distante do virtuosismo de Proust. Por outro, fico sem perceber propriamente de onde adviria o interesse apaixonado de James Joyce por Svevo. Até porque dizer que "Ulysses" segue "A Consciência de Zeno" é uma total descaracterização de ambas as obras. Sim, temos dois narradores/personagens principais neuróticos que nada têm para oferecer a quem os segue — Leopold Bloom e Zeno — mas a proximidade entre os textos termina aí.

Posso estar a ser demasiado duro com a obra, sinto isto em parte por todos os laudos que têm sido feitos ao livro e ao seu autor, mas também porque a boa escrita me faz sentir pena de chegar ao final com este sentimento. Posso ainda dizer que Svevo realiza uma excelente introdução ao mundo de Zeno no primeiro capítulo, e fecha também bastante bem com o último capítulo, mas esses dois capítulos não salvaram o livro, para mim.

Romances que nos questionam

Ben Roth é professor de Filosofia em Harvard, onde dá aulas de escrita baseadas em filosofia aos alunos dos primeiros anos, sendo o seu domínio de especialização a Narrativa do Eu. Para os seus alunos, Roth criou um fluxograma de recomendações de leitura no domínio dos romances filosóficos que foi agora partilhado na rede.  O fluxograma é enorme, mas é excelente no sentido em que proporciona um conjunto de livros de reconhecida qualidade e conteúdo reflexivo por meio de orientações gerais que ajudam a quem quiser aventurar-se neste tipo de leituras. Gostei particularmente de uma dessas recomendações — O romance filosófico mais subestimado — sem dúvida um dos romances que não me canso de recomendar. Mas existe ali muito mais, muitas delas de inestimável valor, algumas pela forma, mas a maior parte pelo conteúdo.


Tendo em conta que o fluxograma é enorme, podem descarregar o JPG, ou então aceder à versão PDF aqui abaixo, usando o zoom para perscrutar todo o gráfico. Recomendo esta segunda abordagem para uma visão geral. Se desconhecerem as capas e precisarem de ler alguns dos títulos menos legíveis, será melhor descarregar o jpg ou pdf porque o leitor aqui embebido não permite ampliação total.

Fluxograma de Ben Roth

outubro 20, 2019

Storynomics, de Robert McKee

McKee é um dos maiores gurus do guionismo, por isso quando descobri que tinha feito um livro — "Storynomics: Story-Driven Marketing in a Post-Advertising World" (2018) — com um colega do marketing, Thomas Gerace, pensei que teríamos aqui um dos livros de maior importância para o domínio do Marketing de Conteúdos. Mas enganei-me totalmente. O livro é escrito mesmo pelos dois, com capítulos intercalados, McKee debita as suas teorias sobre a importância da narrativa e histórias no processo de comunicação, enquanto Gerace vai falando um pouco da revolução digital do marketing, mas, não existe qualquer trabalho real de colaboração e co-construção de uma abordagem geral ao Content Marketing. No final, fica a ideia de que uma grande oportunidade se perdeu.


O problema começa logo no início quando McKee apresenta uma espécie de apocalipse que caiu sobre o mercado da publicidade, para o que apresenta uma suposta solução: contar histórias. Ora isto é desprovido do mais elementar senso, se houve alguma coisa que a publicidade sempre soube fazer, e com grande qualidade, foi exatamente contar histórias. Aliás a indústria publicitária criou todo um modo de contar histórias capaz de fazer uso de parcos 30 segundos de audiovisual. Por isso dizer que falta narrativa, ou emoção, à publicidade é de uma ingenuidade atroz. A partir daqui o livro dedica-se integralmente a tentar evidenciar como podemos aplicar o contar de histórias à publicidade. Apresentando alguns conceitos de forma menos clara, tal como a diferença entre história e narrativa, e colocando toda a ênfase no chamado processo de “storify” da publicidade.

Na verdade, o que McKee e Gerace fazem é uma repetição daquilo que anda a ser feito há mais de uma década em múltiplas áreas. Da medicina e educação à gestão de empresas e de recursos humanos, todas as áreas que têm de lidar com humanos têm tentado inovar os seus processos, mais por causa da pressão deste século no ato de inovar por inovar, com recurso às histórias e ao contar de histórias. A ideia tem sido sempre a mesma, para melhorar um processo de relação humana nada melhor do que gerar empatia entre os agentes humanos, e a ferramenta que melhor otimiza essa empatia são exatamente as histórias. Quando são introduzidas, tendem a criar uma sensação de humanidade, por força do seu aspeto emocional que é sustentado numa lógica racional não meramente descritiva, mas causal o que oferece a noção de sentido ou significado, a um trabalho ou tarefa que se realiza.

Não posso dizer que o livro não tenha a sua utilidade para o pessoal do marketing e publicidade, que nunca teve contacto com processos de guionismo ou criação de conteúdos narrativos. Mas talvez ficassem melhor servidos lendo a obra principal de McKee, "Story: Substance, Structure, Style and The Principles of Screenwriting" (1997), e procurando formas de aplicar os conhecimentos aí ensinados aos seus processos. Se quiserem aprofundar um pouco mais, posso aconselhar o sucessor que McKee intitulou "Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen" (2016).

Não quero contudo terminar esta resenha sem mostrar algo de positivo, por isso aproveito para deixar algumas definições relevantes, e um processo de criação de histórias em 8 passos que acredito poder ser muito útil para quem necessita de guias na matéria.
Definição de história: “The essential core in all stories ever told in the history of humankind can be expressed in just three words: conflict changes life. Therefore, the prime definition becomes: a dynamic escalation of conflict-driven events that cause meaningful change in a character’s life.” (McKee, 2018)
Design de histórias em 3 fases, subdivididas em 8 estágios, por McKee
"Stage One: Target Audience" = A Meaningful Emotional Effect
"Stage Two: Subject Matter" = Balance
"Stage Three: Inciting Incident" = Imbalance
"Stage Four: Object of Desire" = Need
"Stage Five: First Action" = Tactical Choice
"Stage Six: First Reaction" = Violation of Expectation
"Stage Seven: Crisis Choice" = Insight
"Stage Eight: Climactic Reaction" = Closure
Na primeira Fase e Estádio temos a definição do público-alvo (ex. jovens, adultos, escolas, turistas, etc.), enquanto no segundo temos a definição temática do universo narrativo, para o que McKee propõe 5 grandes géneros de desenvolvimento para a publicidade de empresas: “origin, history, mission, product, and customer stories”.

A entrada na terceira fase, implica os estágios 3 a 8, e evidencia o início da escrita da história per se. McKee propõe para o início do design da história o seguinte pensamento:
“The inciting incident launches a story by upsetting the equilibrium of the protagonist’s life and throwing the story’s core value either positively or negatively, but decisively out of kilter. This turning point initiates the events that follow and propels the protagonist into action.”
Para o desenvolvimento da fase 3 a 8, e tendo em conta a enorme diversidade depossibilidades, deixo aqui um conjunto de apontadores para textos aqui escritos sobre distintos modos de Estruturar as Histórias:

Storytelling por Kurt Vonnegut,
Storytelling por Ken Burns,
Storytelling por Ira Glass,
Storytelling por Andrew Stanton e em Infografia

outubro 19, 2019

Another Day of Life (2018)

Soube que o filme estava a ser feito há um par de anos, através dele cheguei ao livro "Mais um Dia de Vida" (1975) de Ryszard Kapuściński que li no ano passado e muito me tocou, por isso ver o filme era obrigatório. Raul de la Fuente, seguindo uma estética próxima da criada por Ari Folman para o brilhante "Waltz With Bashir" (2008), entrega um filme que de certeza faria Kapuściński sentir-se orgulhoso, porque refletindo tudo o que está no livro, nos dá a ver um pouco além desse, por via do acrescento de imagens e entrevistas reais dos dias de hoje com alguns dos principais intervenientes na história por ele contada. É um filme para ver, rever e refletir, ainda que não seja tão duro como o livro, porque a animação de tão bela, e algum pudor por parte dos criadores, fazem sentir toda a tragédia como algo mais leve. Mas essa era a intenção de De La Fuente, fugir ao excesso dramático próprio de uma guerra, para poder contar e desvelar a História, tendo-o conseguido com brilhantismo.





Ryszard Kapuściński

Em termos técnicos, o filme consegue elevar-se e apresentar quase sempre níveis de excelência, muito graças à técnica de animação utilizada, motion capture, que permitiu acelerar todo o processo de criação, ainda que a produção tenha durado entre 3 a 4 anos. Contudo, não raras vezes surgem alguns planos e cenas menos inspiradas, comparando novamente com "Waltz With Bashir", faltaram alguns rasgos mais profundos de criatividade visual. Mas nada que pudesse impedir o filme de ser premiado em múltiplos festivais, porque acaba sendo um belíssimo filme e uma grande homenagem a todos os envolvidos.

Recurso ao 3D para importar os dados do motion-capture.

O 3D sendo pintado para se assemelhar a um 2D, e assim perder muito do efeito artificial que o motion-capture tende a introduzir.

"Confusão: it's a good word. A synthesis word. An everything word. Do you feel confusão too?"

Sobre o que nos conta a história, prefiro deixar apenas o link para a resenha que fiz antes do livro homónimo. No filme, parece-me que foi dado maior destaque à questão da Guerra Fria, da luta entre as forças socialistas suportadas pela URSS e Cuba, e as forças capitalistas, suportadas pela África do Sul e os EUA. No final, e mais impactante no filme do que quando saiu o livro, é perceber que depois da suposta vitória e da Declaração de Independência, a Angola continuaria em guerra, por mais 27 anos, até 2002.


O filme pode ser visto online no site português de cinema independente: FilmIn.

outubro 18, 2019

Parar, Pensar e Boicotar a China

Não é possível continuar calados a propósito do que está a acontecer na China, na região de Xinjiang. Daqui a umas dezenas de anos vamos olhar para trás e dizer, mais uma vez, que um regime Comunista Totalitário cometeu um Genocídio de proporções inimagináveis. O problema é que desta vez, todos nós, sem exceção, seremos culpados.



Desde 2017 que têm surgido relatos de maus-tratos na região de Xinjiang dirigidos maioritariamente a uma minoria étnica, os Uigurs. Esses relatos começaram por ser sobre pessoas que eram levadas e trazidas alteradas. Depois passaram a ser relatos de pessoas que estando fora da China não podiam telefonar aos familiares, pois esses seriam castigados por contactos com o exterior. Durante 2018 os relatos de pessoas fugidas foi aumentando, e a ONU até chamou a atenção da China que respondeu que estava a lutar contra grupos organizados de radicais naquela região, que formavam grupos de terroristas, inclusive dizendo que muitos se tinha alistado na Síria. Mas no início de 2019 os relatos aumentaram, e as imagens por satélite começaram a mostrar campos cada vez maiores, nos relatos falava-se em desaparecimento completo de muitas pessoas, incluindo investigadores e professores universitários, assim como maus-tratos profundos. Mais recentemente surgiu um vídeo (imagens abaixo) que mostra uma cena que parece tirada de Auschwitz. É preciso agir, não podemos cruzar os braços, temos de boicotar e podemos pressionar países, governos, empresas e a ONU, podemos contribuir para associações humanitárias, podemos fazer muitas ações, tais como simplesmente alertar para o problema, falar sobre ele, não permitir que seja calado como tanto deseja a China.

A Europa, Portugal, e todo o restante planeta compra diariamente milhões de produtos fabricados na China, alimentando esse regime, alimentando as atrocidades perpetradas por ele. Compramos diariamente Huawei, Xiaomi, Lenovo, Haier, Hisense, Anker, Cheetah Mobile, para não falar no gigante Alibaba e nas lojas chinesas espalhadas por todo o país, Europa e EUA, e para tudo isto a palavra de ordem de compra é — barato — sem parar para pensar nos efeitos desse barato.

Sayragul Sauytbay, uma médica que passou por estes Campos de Concentração, conseguiu fugir e obter asilo na Suécia. A história pode ser lida no Haaretz, mas atenção aos mais sensíveis.

A ideia que passa e alivia as consciências ocidentais é que a China é um país grande, vendido nos anos recentes como igual a todos os outros, por isso se estas pessoas foram presas é porque o mereciam. Pois leiam mais este relato, de Sayragul Sauytbay, uma médica que passou por estes Campos de Concentração, conseguiu fugir e obter asilo na Suécia, de entre os vários que têm sido publicados desde 2017. Nestes relatos é possível ler sobre a violência atroz, ao nível do que já lemos sobre Auschwitz, Dachau ou Treblinka, só faltam as câmaras de gás, por agora, mas até os comboios carregados de prisioneiros já temos (ver imagens abaixo). Isto é inaceitável, e nós não podemos continuar a compactuar com isto.




Imagens de vídeo captadas na província de Xinjiang. Os comboios descarregam milhares de pessoas, com a cabeça rapada, e os olhos vendados, que depois são transportados para os campos de concentração.

Sei bem que muitos dos produtos europeus e americanos que compramos são produzidos na China, e muito pouco podemos fazer no imediato, mas podemos fazer muito desde já no que toca a produtos especificamente chineses, existem alternativas, e os preços nem sempre são mais caros, basta procurar, basta ganhar consciência, tomar as rédeas daquilo que compramos de forma consciente. Nem que por vezes tenhamos de pagar um pouco mais, estaremos a agir em plena consciência de estar a castigar um país que não pode continuar a passar impune, a pavonear-se pela cena internacional como um dos mais ricos, poderosos, e pior aquele que pretende ser o farol nos próximos anos da Cultura Internacional. Podemos ainda contribuir para associações como a Amnistia Internacional que já lançou vários alertas.

Aliás, não podemos esquecer que isto não é sequer um problema de supostas minorias étnicas, menos ainda radicais como a China tem vendido, naquele país existe já todo um sistema informático de vigilância permanente de toda a sociedade, sem excepção, e que tem sido definido como Crédito Social (sistema que atribui pontos em função dos comportamentos bons e maus dos cidadãos, uma espécie de pontos de carta de condução para tudo o que fazemos enquanto cidadãos).

Ainda na semana passada tivemos um dos maiores ataques de sempre às grandes empresas americanas por parte da China, apenas por se terem levemente manifestado a favor de Hong Kong — ver os casos Apple, BlizzardNBA e uma análise geral dos porquês.

E quem quiser atirar pedras, dizendo que todas estas notícias sobre os campos de concentração na China são apenas uma manobra de contra-informação americana por causa da guerra comercial, podem ficar descansados, os relatos sobre o que se passa em Xinjiang começaram bem antes, existem notícias de 2017 e ramificações a políticas da China para aquela região que remontam a 1949. Tendo-se notado um recrudescimento dos relatos desde a alteração da Constituição chinesa, em 2018, que passou a permitir que Xi Jinping pudesse ser Presidente da China para sempre, seguindo Mao.

A brutalidade do que está a acontecer tem sido amplamente documentada, é tempo de deixar de fazer de conta, é tempo da ONU agir, da Europa agir, dos EUA agirem, de todos nós agirmos, ou então ficarmos com o peso na consciência de não só nada ter feito, como ter contribuído para que milhões de pessoas fossem extirpadas da sua humanidade.


Ligações para os vários Relatos recentes sobre Xinjiang e os Uigurs

A Million People Are Jailed at China's Gulags, Haaretz, 17.10.2019
Leaked drone footage purports to show Xinjiang prisoners blindfolded and tied up, Business Insider, 8.10.2019
'Think of your family': China threatens European citizens over Xinjiang protests, The Guardian, 17.10.2019,
‘There’s no hope for the rest of us.’ Uyghur scientists swept up in China’s massive detentions, Science Magazine, 10.10.2019
Disturbing video shows hundreds of blindfolded prisoners in Xinjiang, CNN, 7.10.2019
Despite China’s denials, its treatment of the Uyghurs should be called what it is: cultural genocide, The Conversation, 24.7.2019
China putting minority Muslims in 'concentration camps,' U.S. says, Reuters, 3.5.2019
China Targets Prominent Uighur Intellectuals to Erase an Ethnic Identity, NYTimes, 5.1.2019
Uyghur scholars and students interned or disappeared, University World News, 30.1.2019
Inside China's Massive Surveillance Operation, Wired, 9.5.2019
China's Jaw-Dropping Family Separation Policy, The Atlantic, 4.9.2018

Notícias anteriores, provindas da Ásia de 2017
China: Uyghur women and children endure heavy labor amid detentions in Xinjiang's Hotan, Radio Free Asia, 16.10.2017
Uyghur Biodata Collection in China, The Diplomat, 28.12.2017

outubro 15, 2019

A Espera de Coetzee

“À Espera dos Bárbaros” é um livro de Coetzee de 1980, escrito em pleno clima de Apartheid, na África do Sul, ao qual não é alheio, antes pelo contrário. A grande influência de Coetzee está na obra maior de Dino Buzzati, “O Deserto dos Tártaros” de 1940, escrito em plena Itália fascista. As obras tocam-se pela alegoria do forte fronteiriço e do inimigo quase invisível que a todos afeta a todos oprime trabalhando uma espécie de impotência nos protagonistas, ainda que os objetos que os motivam e sustentam sejam bastante distintos, o que acaba por ditar também todo um tom e fluxo estéticos distintos.


Assim, Buzzati usa a alegoria da espera e do tempo que passa para dar conta da inconsequência das nossas ações enquanto condição de vida, o que alguns veem como alegoria de uma luta contra o fascismo, embora para mim Buzatti tenha conseguido ir além dessa variável temporal, geográfica e política. Já Coetzee centra-se num conflito de forças que definem um mal-estar condicionador de uma vida sob um aparelho ideológico, o Apartheid. O magistrado de Coetzee percebe que o modo como os “bárbaros” são tratados é desumano, no entanto existe uma espécie de impotência que paira sobre si e o conduz a um isolamento e alheamento do sofrimento humano. Quando resolve dar um passo e atuar, tudo na sua vida é virado ao contrário, porque é essa a força da condição do lugar, “ou estás connosco ou estás com eles”, mesmo que ele na verdade não tenha percebido aquilo que fez como qualquer ajuda. Isto acaba sendo o mais interessante da obra de Coetzee, o facto da pessoa do magistrado nunca chegar a ganhar plena consciência dos problemas, apenas nele emerge uma espécie de instinto ou intuição que lhe mostra que o tratamento dado aos “bárbaros” é desprovido de senso.

Placa numa praia de Durban, 1989.

Contudo, o magistrado não deixa de se aproveitar da situação, da sua condição hierárquica para continuar a viver a sua vida, obter os seus prazeres, como se nada daquilo fosse verdadeiramente relevante para a sua condição individual. Claramente que sofre na pele os efeitos de uma potencial revolta contra o sistema, o que põe a nu como o sistema se perpetua. Por outro lado, se Buzzati deixa em aberto o fechamento, atirando para a consciência de cada um a extrapolação dos efeitos e impactos, Coetzee não é tão contido, e atira mesmo com uma proposta de desígnio ou cenário final expectável, como que prevendo o que viria a suceder 14 anos depois da publicação do livro.

Tendo a preferir Buzzati, a sua escrita é particularmente bela, e o modo como trabalha a alegoria, pela abstração, permite adaptar os contornos da narrativa à realidade de cada leitor, servindo em qualquer tempo e lugar. E no entanto o interessante é que é Coetzee quem mais abstracciona o espaço e o tempo, tornando difícil situar aquele forte em qualquer lugar específico, no entanto não o faz tão bem ao nível das ações, e nomeadamente ao nível das implicações sobre o protagonista. Não é por acaso que “O Desertos dos Tártaros” pertence à minha lista das melhores 15 obras de sempre.

outubro 13, 2019

A centelha que faltou ao relato

Não posso dizer que desgostei —do livro "The Creative Spark: How Imagination Made Humans Exceptional" (2017) — mas no final senti que nada acrescentou, que tudo não passou de um mero relembrar com um redirecionar interpretativo da História. Fuentes faz um levantamento do evolução humana, e apresenta a Criatividade como o elo que tudo fez girar, sem o qual nunca teríamos chegado à espécie dominante que hoje somos. Como premissa é interessante, o problema é que todo o levantamento feito centra-se apenas no elencar dos eventos ocorridos, sem qualquer relação direta ou particular com a criatividade, ou melhor com todo o manancial de teorias e história sobre a Criatividade. No fundo Fuentes limita-se a apresentar a evolução das capacidades cognitivas como fruto dessa suposta criatividade, tendo eu de lhe dar razão, não é algo propriamente novo, podendo ser se este tivesse apresentado variáveis, factores ou qualificativos próprios dessa tal criatividade ao longo da evolução, distintos das meras componentes de inteligência.


Julgo que o maior problema do livro assenta na quantidade de tempo investida a contar histórias sobre a evolução que estamos todos cansados de ler, e eu nem sequer sou especialista em evolucionismo. De certo modo, sofre do problema dos livros académicos que precisam de apresentar todo o lastro de onde partem, tecendo considerações, mas regendo-se especialmente por apresentar e descrever, o que para um livro de divulgação não funciona. Como se não bastasse, a concretização do livro acaba sendo parca, o recontar da evolução do ponto de vista da criatividade pouco ou nada acrescenta ao que hoje sabemos sobre a Criatividade, tendo-se perdido uma premissa que parecia ter bastante para dar.

outubro 12, 2019

Como Ler um Livro

How to Read a Book: The Classic Guide to Intelligent Reading é um livro de 1940, pertence a um mundo no qual não existia internet e em que a partilha deste tipo de informação funcionava melhor no formato de livro. O conteúdo do livro acaba tratando muito daquilo que ensinamos aos nossos alunos de mestrado e doutoramento, algo que hoje fazemos melhor por via de aulas e artigos curtos. Ou seja, ensina a ler profissionalmente e não por prazer, deste modo a generalidade do que aqui é dito destina-se à leitura de não-ficção, e apenas a Literatura no caso de quem a trabalha de modo analítico, e não por mero prazer. Assim, resenho aqui o livro no sentido de divulgar e servir aqueles que usam os livros e seus conteúdos com caráter académico e/ou profissional.


Mortimer Adler foi um professor universitário de filosofia e passou grande parte da sua vida a discutir a relevância do ensino e educação na formação da sociedade, por isso não admira este trabalho didático, no ensino do manejamento do livro, já que ele contribui para a elevação da literacia das comunidades, ao mesmo tempo que baixa algumas barreiras que alguns jovens encontram quando entram nos corredores da Academia. A ideia de que para se fazer uma tese é necessário ler de fio a pavio 200, 300 ou mais livros, no espaço de um a dois anos, assusta qualquer um e pode antecipadamente criar resistências internas que tarde ou cedo predisporão à desistência. Por isso, este livro continua sendo relevante, não que seja obrigatório. Não faltam na internet dezenas e dezenas de artigos explicando muito do que Adler aqui explica, de forma sintetizada, diagramática e bastante mais direta. Ainda assim a proposta é bem estruturada, e para quem sinta a perplexidade com as necessárias leituras, pode ser um excelente ponto de partida. Com o bónus de ir além, já que no caso em que os livros são fundamentais e se sugere seguir para uma leitura aprofundada — analítica e sinóptica —,  Adler propõe um conjunto de ferramentas de análise que se podem tornar muito relevantes para quem trabalha a produção de conhecimento escrito.

O método de Adler e Van Doren divide a Leitura em quatro fases — Elementar, Inspetiva, Analítica e Sinóptica —sendo a primeira a mais simples e rápida, e a última a mais complexa e elaborada.


1 – Leitura Elementar
Corresponde à leitura normal de qualquer livro — análise da capa, sinopse e sumário nas badanas ou contracapa, passar os olhos por algumas páginas, lendo um ou outro parágrafo, e depois início no capítulo 1, seguindo até ao final. Esta abordagem é aquela que seguimos com os livros tradicionais de histórias, mas não é o método aconselhável ao estudo académico, esse deve saltar o passo 1 e iniciar-se pelo passo 2.


2 – Leitura Inspetiva
Adler e Van Doren sugerem um trabalho em seis passos:
  1. Leia o Título e o Prefácio,
  2. Estude o Índice,
  3. Analise o Índex de palavras,
  4. Leia a Sinopse
  5. Veja os Capítulos Principais
  6. Folheie o livro, lendo partes que saltam à vista
Depois disto, deve realizar-se uma leitura na diagonal (muito rápida de todo o livro), nunca parando em partes mais complexas. Se as partes complexas forem relevantes, voltaremos a elas mais tarde. A ideia é ganhar uma compreensão do todo que está dentro do livro apenas para tomar uma decisão importante: devemos ou não proceder para a fase seguinte?


3 – Leitura Analítica
Nesta fase, entramos na discussão com o livro, e é uma fase que demorará tanto quanto exigir a complexidade do livro na relação com o grau de conhecimento detido pelo leitor. Ou seja, pode demorar bastante mais do que a simples leitura do primeiro ao último capítulo. O objetivo não é ler para conhecer, mas sim trabalhar o conteúdo do livro para o dominar. Por isso, não é o tipo de leitura que se faça com qualquer livro, mas apenas com aqueles que vão ao centro do tema, problema ou abordagem que são relevantes para nós.

Já temos uma noção do que o autor pretende tratar e do modo geral como escreveu sobre o assunto, mas agora vamos concretizar esses elementos para depois os poder questionar:

3.1. Qual é o Problema?
O principal depois de uma análise inspetiva passa pela classificação do livro, o que requer definir, o mais concretamente possível, que problema ou questão está a tentar ser respondida. Isto é o cerne para compreender a razão de tudo aquilo que o livro é, e permite-nos sustentar todas as ideias do livro, porque elas se ligam a esse foco, esse objeto.

3.2. Como é trabalhado e respondido?
Depois interessa então aprofundar. Compreender como é que o autor abordou o problema, e que soluções propõe para o mesmo. Aqui temos de elencar as proposições, e tentar compreender o sistema de ideias desenhado pelo autor para suportar o que pretende dizer. É complexo porque implica uma entrada dentro do modo de pensar do autor, uma espécie de engenharia reversa do que levou à escrita do livro.

3.3. É sustentado, lógico e completo?
Neste ponto, entramos então na análise crítica. Olhando ao problema e soluções propostas, estas fazem sentido? estão sustentadas em argumentos? ou existem dados empíricos que corroborem o que é dito? A análise crítica não pode ser vazia, ou seja, se discordamos é porque temos argumentos para o fazer, e não apenas porque “nos parece”. Para o efeito precisamos não apenas de apontar os problemas do autor, as suas falta de informação, ou racionalizações sem sentido, e dar conta do que falta. Isto é um trabalho moroso, mas ele é que nos vai permitir chegar à total compreensão do livro.

3.4. O que é o livro?
Aqui chegamos ao momento final, ao momento em que podemos emitir a nossa opinião pessoal, sobre o que é o livro, sobre o que pretende apresentar, como o faz, mas sobretudo lançar a nossa perspetiva sobre o conteúdo do que é discutido, concordando ou discordando do autor.

Este ponto seria o último, mas Adler e Van Doren propõe um último, que minha opinião já não tem que ver com a leitura de um livro em particular, mas com o estudo de um assunto, tema ou problema.


4 – Leitura Sinóptica
Aqui, o objetivo dos autores vai para além do livro concreto que se está a ler, e pretende criar lastro para que o leitor possa ter uma noção mais concreta do problema discutido pelo livro, do conhecimento existente em seu redor, no fundo realizar aquilo que na academia hoje em dia definimos como: revisão de literatura. Na verdade, não é possível realizar o último ponto da leitura analítica sem fazer este trabalho. Mas como é que isto se faz? A ideia principal a reter, assenta nas referências dos livros ou textos. Ou seja, precisamos de procurar sobre o tema, e à medida que formos lendo sobre ele, verificar quais são os autores que se repetem, ir atrás desses, até que consigamos ter uma noção do leque de autores principais que trabalhou o tema, e as ideias principais defendidas.

Claro que nos dias de hoje muito deste trabalho está feito na Wikipedia, mas o que é aí apresentado não deve ser visto como trabalho fechado, antes pelo contrário. Para quem trabalha profissionalmente o conhecimento, a Wikipedia é apenas um acelerador da definição do grupo de pessoas que devemos pesquisar. Ou seja, por meio da entrada na Wikipedia, podemos aceder logo a um conjunto de nomes, que podemos então começar a estudar, aprofundar, e assim chegar a construir a nossa visão sobre o problema. Repare-se que a Wikipedia não apresenta opiniões, limita-se a listar factos, e aquilo que se espera de alguém que faz um estudo, é que domine os factos a ponto de poder emitir uma opinião sustentada.

A razão pela qual a opinião pessoal, sustentada, continua a ser relevante para além do que vem na Wikipedia, é que ela é provida de experiência e conhecimento do mundo que cada um de nós, seres humanos complexos e distintos, detemos em conjunto com as leituras que tivermos decidido realizar, o que conduz a perspetivas particulares que garantem uma constante diferenciação no estudo de problemas que podem ser os mesmos, mas consequentemente conduz a soluções próprias que podem ser inovadoras. A solução inovadora é no fundo o objetivo último da leitura, chegar a ter uma perspectiva crítica a ponto de conseguir produzir uma solução própria, nova.


outubro 11, 2019

A Ilusão do Powerpoint e a Oralidade vs. Escrita

O Powerpoint tem servido de saco de boxe a todos e mais alguns, são inúmeros os comentários e discursos contra o seu uso, uns por causa da componente estética, outros porque serve apenas de cábula à apresentação, outros porque é uma distração, etc. Ao longo dos últimos 15 anos tenho ouvido todo o tipo de justificativos para boicotar a ferramenta. Em todos os casos levantei-me sempre contra tais boicotes, tenho defendido e continuo a defender o seu uso, no entanto a leitura dos justificativos dados por Jeff Bezos fizeram-me refletir, não propriamente no seu uso, mas antes no seu consumo. Ou seja, o problema não me parece estar nos slides, nem nos oradores que os usam (se os souberem utilizar) mas na audiência, nos seus consumidores.


Num e-mail enviado aos colegas da administração de topo, em 2004, Jeff Bezos pedia o fim do uso do Powerpoint nas reuniões com os seguintes argumentos:
“Subject: Re: No PowerPoint presentations from now on at S-team
A little more to help with the question “why.”
Well-structured, narrative text is what we’re after rather than just text. If someone builds a list of bullet points in Word, that would be just as bad as PowerPoint.
The reason writing a good six-page storied memo is harder than “writing” a 20 page PowerPoint is because narrative structure forces better thought and better understanding of what’s more important than what, and how things are related.”
Mais tarde em entrevista a Charlie Rose diria ainda:
“The traditional corporate meeting starts with a presentation. Somebody gets up with a PowerPoint display, some type of slide show. In our view you get very little information, you get bullet points. This is easy for the presenter, but difficult for the audience. And so instead, our meetings are structured around six-page narratives. When you have to write your ideas out in complete sentences, complete paragraphs, and tell a complete story, it forces a deeper clarity.”
Não podia estar mais de acordo no que toca as forças de um texto narrativo versus slides de pontos e palavras-chave. Contudo nesta equação Bezos esquece, ou melhor, elimina da cena totalmente, o orador. Não se pode comparar um texto narrativo e um powerpoint, a comparação, a fazer-se teria de ser feita entre um texto e um orador, podendo depois o orador ser subdividido em: com suporte e sem suporte de powerpoint. Mas foi ao tentar compreender Bezos, que compreendi o verdadeiro problema do Powerpoint, ou melhor, dos consumidores de Powerpoint. Para quem, como eu participa há décadas em reuniões com e sem powerpoint e também dá aulas há décadas com Powerpoints, fez-se luz. Analise-se o seguinte cenário:
9h00, reunião/aula, chegam todos, 12 pessoas (ou 60 alunos), o orador/professor já está com o Powerpoint ligado, os colegas/alunos sentam-se, puxam dos portáteis, colocam-nos à sua frente, ligados à rede, o telemóvel ao lado e um café ou copo de água. O orador/professor inicia, lança a discussão e atrás de si vai projetando palavras, frases, imagens e tabelas que ilustram o que vai dizendo. Passados 5 minutos, metade dos espetadores está a ler os e-mails que chegaram durante o fim do dia anterior e noite, um quarto a verificar as notícias do dia, e o restante quarto a verificar as redes sociais. De vez em quando levantam as cabeças e ouvem uma expressão, uma piada ou um exemplo mais estranho, fixam algumas palavras do Powerpoint, mas rapidamente voltam aos seus afazeres matinais. No final da reunião (aula), as tarefas e trabalhos são divididos ou pedidos. O Powerpoint é enviado para todos ou colocado no sistema de eLearning online, e cabe a cada um lançar mãos ao trabalho. Chegados aos gabinetes ou a casa, vão ler e reler o Powerpoint, e dizem que não serve para nada, que a reunião/aula foi uma perda de tempo.
Ora o que aconteceu não foi um problema de Powerpoint, mas antes um total desrespeito para com o colega/professor que preparou a palestra e aula, que desenvolveu os slides para acompanhar os 30 a 50 minutos de performance no contar de história oral. Por outro lado, os slides não foram desenhados para serem lidos como história. Os slides servem apenas de suporte, ilustração e reforço de uma performance oral. Quando se pega neles sem orador, é como se pegássemos numa lista de supermercado, são mero descritivo, sem narrativização, sem contexto, sem exemplos, nem metáforas.

Não é este o bom uso que refiro. Entre isto e ler um texto não há diferença. Preferível enviar o texto por e-mail e cancelar a reunião.

Claro que um texto narrativo é superior, mas quantos de vocês já assistiram a sessões de textos lidos? Lidos não por dramaturgos ou atores, mas por simples pessoas? Ninguém aguenta (eu já aguentei muitas) de leitura monocórdica de textos. Os textos escritos como narrativas não servem a oralidade porque enrijecem a linguagem não-verbal do orador, porque quando são escritas são-no para se valerem per se, sem orador — servem antes como dizia Stephen King “a telepatia entre escritor e leitor” —, e por isso mesmo convidam à castração da performance retórica, o objetivo de um texto narrativo é colocar o leitor dentro da ação, já um texto oral é uma partilha, o orador é um guia da ação, não se abstém da sua presença, é a sua função principal levar pela mão a audiência a sentir e a ver, tal Virgilio conduzindo Dante pelos estágios do Inferno.

Gravura de Gustave Dore, "Virgilio e Dante", in "Divina Comédia" de Dante

Claro que podemos comunicar sem Powerpoint. Os comediantes fazem-no todos os dias, e não precisam de Powerpoint. Mas um comunicador ou professor não tem de ser um comediante, não pode ser um comediante, cabem-lhe outras responsabilidades além da produção de um momento de partilha de ideias pela oralidade. O Professor tem matéria nova para digerir todos os dias, e tem de encontrar as melhores formas pedagógicas de as levar até à sua audiência, não apenas pela oralidade, mas essencialmente através da produção de exercícios e atividades. E ao aluno não cabe apenas realizar os exercícios, cabe também estar presente no momento da partilha, e aceitar a mão oferecida pelo professor que o guia. Por outro lado, o Powerpoint é útil na expansão de recursos de suporte à performance do orador, nomeadamente porque pode dar a ver aquilo que é apenas texto ou verbo, tornar palpável ao espectador o que é simbólico (palavras e texto) ou seja abstrato.

Veja-se a diferença entre uma interface de comandos de texto MS-Dos e uma interface gráfica Windows. A maior facilidade que o utilizador tem no uso conceptual dos conceitos. Não estamos a falar de diferença entre texto narrativo e imagens narrativas, isso é outra discussão.

Assim o verdadeiro problema do Powerpoint não é, de todo, a sua fragilidade comunicativa, mas é antes a ilusão que cria no espectador de que ele pode estar a ouvir e a ver a comunicação. Não só porque o multicanal da comunicação cria a sensação de que o multitasking (ver e-mail, responder, redes, etc.) é possível, mas mais gravoso ainda porque o facto de ser um objeto digital, pode ser facilmente registado e copiado, sem qualquer esforço. Ou seja, os alunos baseiam as suas memórias do momento na ideia de que depois vão ter acesso aos slides, e por isso nem sequer precisam de tirar notas, algo impensável quando os quadros eram escritos a giz, e apagados para todo o sempre no final da aula. Ora quando depois chegam a casa e vão ler os slides, verificam que neles está uma mera síntese de palavras-chave e pistas para ideias, mas que para quem não esteve concentrado na performance da história e não realizou a “visita guiada às ideias” pelo professor, nada dizem.

Diga-se que, e no caso das aulas em particular, muito disto podia ser colmatado ainda, se os alunos lessem os textos, a bibliografia recomendada, mas como isso é ainda mais trabalhoso do que estar atento nas aulas, acabam por limitar o seu estudo aos slides, e isso reflete-se de forma inevitável nas notas finais.

Prémio José Saramago 2019

E como não tivemos apenas o Nobel esta semana, fica uma discussão sobre o recente Prémio José Saramago. Eu fui um dos que defenderam, aqui, o prémio Leya atribuído ao Afonso Reis Cabral em 2014 pelo livro "O Meu Irmão". Contudo este prémio pelo livro "Pão de Açúcar" é totalmente desprovido de senso. O que me ocorreu quando o prémio foi atribuído, foi que não haveriam melhores concorrentes neste ano. Mas se assim fosse, mais valia fechar a nação e deixar a produção escrita aos outros.


O livro não é mau, mas não vai além de exercício de escrita. Não me incomodam as potenciais falhas de análise do processo judicial, mas como livro é parco em reflexão, ou melhor, essa está totalmente ausente, dando pouco mais do que um conjunto de artigos de jornal. Na verdade, isso não nos deve espantar, 29 anos não oferece propriamente um lastro de experiência grande, ainda mais para quem se dedique a analisar uma realidade que está nas antípodas da vivida por si.

Escrever um texto de jornal, no seu tom semi-imparcial e distanciado, quase qualquer um pode fazer. Escrever um livro, colocar-se no centro da ação, ver de dentro e em todas as direções, e a partir da mente interior dos envolvidos, requer muito mais do que investigação sobre o que terá acontecido. É preciso experiência, vida vivida e sentida nos lugares e com as pessoas, para se chegar aos interstícios dramáticos. É disso que se faz a grande literatura. É por isso que essa tende a falar das realidades dos seus autores, e não daquelas que eles gostariam de ter vivido.

Outras perspetivas: Diogo Vaz Pinto, Eduardo Pitta, e Maria do Rosário Pedreira


Atualização:
Nem por acaso, fizeram-me chegar a informação de que o prémio passará a ser atribuído apenas a maiores de 40 anos, talvez por que tentar atribuir prémios de relevo abaixo desta idade é complicado.

outubro 07, 2019

The Sportswriter (1986)

Cheguei a este livro por meio da pesquisa de livros sobre crises existenciais da meia-idade, tendo-o visto referido em várias listas acabei procurando mais sobre o autor e sobre a obra, percebi que se tratava de mais uma saga sobre o everyman americano, à lá Rabbit de Updike ou Zuckerman de Roth, tendo Frank Bascombe, o protagonista, já tido direito a 4 volumes — “The Sportswriter” (1986), “Independence Day” (1995), “The Lay of the Land” (2006), “Let Me Be Frank With You” (2014) — pelas mãos de Richard Ford. Apesar de irem saindo de 10 em 10 anos como os Rabbit de Updike, Bascombe começa neste primeiro volume já com 38 anos, divorciado, 2 filhos, e um terceiro acabado de morrer antes de chegar à adolescência, ou seja, com todas as condições para se lançar nos questionamentos dos porquês e para quês de tudo o que pensamos, desejamos, conseguimos ou fazemos.


Ford escreve muito bem, constrói frases que transportam ideias e sentimento capazes de nos envolver e manter fixados em cada momento do que vai relatando. Por vezes excede-se, perde-se, mas quase sempre mantém um nível elevado de técnica e controlo do texto produzindo fluidez e interesse. O tema ajuda a este tipo de escrita, já que apesar de existir enredo, o que está em causa é o interior de Bascombe, o modo como este vê o mundo, como se dá e recebe esse mesmo mundo. Do mesmo modo ajuda aos devaneios que nem sempre nos agarram, e se perdem na falta de foco ou objeto. Contudo, a experiência geral é bastante boa, pela elevação criada, mas também por vários momentos de indagação que funcionam como apaziguadores a quem está também em modo de crise e questionamento da travessia.

O mundo de Bascombe são os subúrbios da América, tão insistentemente palco de muito e muito cinema, tanto que quase parecem fazer parte da nossa realidade europeia. Neles tudo parece perfeito, criado para tornar todos felizes, com todas as condições que as sociedades industrializadas e ricas conseguem oferecer. Ainda assim, nada disso parece ser suficiente para apaziguar a sede humana de respostas, mesmo quando não se conseguem formular as perguntas. Luta-se todos os dias para ter mais, para chegar a ter tanto como os demais, e quando se lá chega, coloca-se tudo em questão, porquê e para quê. Era só isto?

Subúrbios americanos

Cartoon de Liana Finck, na The New Yorker

Comecei por ler o livro na versão original, a meio percebi que ia sair uma tradução pela Porto Editora, o que me fez descobrir a existência de uma tradução antiga pela Teorema. Por estar a atravessar uma das partes menos boas, resolvi tentar a versão portuguesa para ver se fluía melhor. Depois de perceber que a Porto Editora tinha optado por colocar os diálogos com travessão, alterando drasticamente a apresentação do texto corrido com os diálogos entre aspas, optei por comprar a da Teorema. Reparei ainda que o português da tradução de 1992 era mais próximo do inglês de 1986, do que a tradução deste ano da Porto Editora. Tudo isto voltou a fazer-me pensar nas novas traduções portuguesas dos Clássicos, serão os mesmos livros, essas traduções atualizadas que vamos lendo?

Por fim, o título não tem, ou tem muito pouco, que ver com o conteúdo do livro, como se percebe do que escrevi.