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julho 10, 2018

A homeostase como base do todo, do Big Bang à IA

Sou grande admirador de António Damásio, aliás muito daquilo que é a minha paixão pela investigação científica devo-a a ele, em particular ao seu primeiro livro “O Erro de Descartes” de 1995. Depois disso fui seguindo a sua investigação e entrevistas e lendo todos os seus livros, mas à medida que os anos se foram passando os seus livros foram perdendo chama, muito por se repetirem, por tentar de formas distintas dizer aquilo que já tinha dito antes ainda que sem qualquer preocupação de olhar para o lado e procurar incorporar o que outros académicos iam também dizendo e fazendo. Por isso no ano passado quando saiu “Estranha Ordem das Coisas” não corri a comprar, tinha pensado mesmo passar, até que li as palavras de Leonard Mlodinow, “Quase um quarto de século após o erro de Descartes, Antonio Damasio consegue novamente.” Senti-me obrigado a ler o livro, tinha de saber o que tinha Damásio encontrado de novo para nos dizer. Em poucas palavras: confesso a desilusão, ainda que continue sendo um grande comunicador.

"A Estranha Ordem das Coisas" (2017) António Damásio

“A Estranha Ordem das Coisas” pode dividir-se em três partes fundamentais: a primeira em que surge aquilo que considero ser a inovação, deste livro de Damásio, o modo de olhar para o conceito da homeostasia; a segunda em que somos trucidados pela enésima vez a propósito da diferença entre emoção, sentimento e consciência; e a terceira na qual Damásio procura sair do seu território, abraçando a história e a tecnologia para fazer uma leitura da sociedade atual e futura, acabando por descarrilar totalmente. Esta última parte não surpreende, desde o início que Damásio é acusado de ignorar a psicologia e a sociologia. Para ele tudo começou por ser explicável apenas com base na neurologia e na filosofia, com o tempo abriu-se à biologia e às artes, contudo não chega, nem dá conta do conhecimento já existente sobre o humano. Neste livro tudo isto é ainda mais gritante já que ele deixa de se focar nas estruturas de suporte ao humano, para se focar naquilo que motiva o humano e na sua produção de cultura.

Começando pelo melhor, a primeira parte do livro, Damásio discute e aprofunda as implicações do processo de homeostase na criação e manutenção de vida. A leitura recua milhões de anos, vai ao nível celular, e Damásio, por meio da biologia e muito habilmente, dá conta do modo como terá surgido vida neste planeta, e como o processo evoluiu por longos milhões de anos até chegar ao homo sapiens. Para Damásio a homeoestasia é uma necessidade da célula que busca não a mera estabilidade, mas o estado mais conveniente em cada momento para continuar a viver. Damásio diz mesmo que o equilíbrio completo não existe, já que de um ponto de vista termodinâmico só a morte o poderia garantir. Ou seja, a célula determina sempre o seu estado em função da otimização dos recursos de energia disponíveis e da garantia de manutenção futura da própria vida, isto porque a célula não vive numa ilha isolada, mas está em permanente interação com a realidade que a rodeia. Neste sentido a homeostasia funciona como um ‘drive’ interno, ou seja, a motivação para a vida, que se propaga depois a todos os restantes mecanismos biológicos.
"Homeostasis refers to the fundamental set of operations at the core of life, from the earliest and long-vanished point of its beginning in early biochemistry to the present. Homeostasis is the powerful, unthought, unspoken imperative, whose discharge implies, for every living organism, small or large, nothing less than enduring and prevailing. The part of the homeostatic imperative that concerns 'enduring' is transparent: it produces survival and is taken for granted without any specific reference or reverence whenever the evolution of any organism or species is considered. The part of homeostasis that concerns 'prevailing' is more subtle and rarely acknowledged. It ensures that life is regulated within a range that is not just compatible with survival but also conducive to flourishing, to a projection of life into the future of an organism or a species." (p. 25)
Esta abordagem é-me particularmente útil porque há um anos no meu trabalho sobre emoções nas artes interativas me apercebi que não seria possível dotar um ser humano de emoções nulas (0,0), que o facto de se estar vivo obriga a uma emocionalidade contínua. Assim como é impossível não comunicar, é impossível não sentir emoção. Na altura propus o gráfico abaixo, no qual defendia que a nossa emocionalidade tende para a tranquilidade, o que não seria neutra, mas antes “natural”, ou seja, tal como a homeostasia um modo de garantir a manutenção ótima da experiência humana. Ora esta abordagem aqui proposta por Damásio vem responder e dar força a esta visão. Por outro lado, e isso é mais interessante no livro, explica o modo como a vida é regulada, e a razão porque nunca paramos de evoluir, porque estamos em constante mutação e progressão, ainda que de um modo lento, imperceptível ao nosso olhar quotidiano. Diria que o livro vale só por esta primeira parte, e muito.

Gráfico retirado do meu livro de 2009, Emoções Interactivas, do Cinema para os Videojogos, p. 300.

Entrando na segunda parte, Damásio pega na sua abordagem tripartida da experiência humana — emoção, sentimento e consciência —, e tendo já dedicado livros completos a cada uma destas camadas, vai mais uma vez discutir aquilo que as separa, as suas funções, motivações e riquezas. Diga-se que senti neste livro uma maior tendência para discutir o facto dos sentimentos serem dotados de consciência. Não que isto não tivesse sido já dito, mas foi um pouco como se Damásio tivesse a necessidade de afirmar o estado evolutivo e grandioso dos sentimentos, como se eles fossem não apenas neurologia mas também cultura. Ora, e concordando com esta leitura de Damásio, não é de todo possível aceitar que o faça apenas com base na sua estrutura biológica, relegando todo o trabalho secular da psicologia.

Ou seja, Damásio assume o seu trabalho científico de análise e busca do modo como geramos emoções, sentimentos e consciência, assente em sistemas de imagiologia entre outras ferramentas, o que me parece bem. Contudo para compreender e interpretar aquilo que vai descobrindo serve-se apenas da sua intuição e da arte, aliás como ele diz "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare". Ora aqui temos um problema grave, que é o de assumir a sua subjetividade como passível de leitura do humano. Ou seja, Damásio apesar de não seguir nada das teorizações da psicanálise, acaba, no entanto, seguindo o seu método, analisando-se a si mesmo para compreender e interpretar os dados que vai recolhendo na sua investigação. Ora se temos uma ciência chamada Psicologia é exatamente para refutar essa abordagem subjetiva e psicanalítica. Aquilo que os maiores psicólogos têm feito não é dar nomes espetaculares às estruturas mentais, mas tem antes sido desenvolver métodos complexos para estudar e compreender como funciona a consciência, os sentimentos, os desejos, as motivações, no fundo todo o aparelho cognitivo. Damásio ignora deliberadamente trabalho fundamental de colegas como Nico Frijda ou Lisa Feldman Barrett, autoridades no campo da emoção e cognição, ou o trabalho seminal de Deci e Ryan no campo da motivação, ou de Daniel Kahneman e Amos Tversky no campo do comportamento. Ao ignorar tudo isto, não só ignora colegas, como se afunda em teorizações pouco credíveis.

Mas eu vou ainda mais longe, Damásio não só ignora a psicologia como ignora a primatologia, a ciência que vem estudando o comportamento nos primatas, para não falar da própria etologia, isto no sentido em que o autor obsessivamente coloca o humano numa dimensão paralela, diferente e única, às restantes cadeias animais. Se pensarmos no trabalho de Jane Godall ou Konrad Lorenz, ou se pensarmos nos avanços mais recentes proporcionados por Frans de Waal em redor dos processos de empatia. Ou se pensarmos apenas nos modos como os bonobos se aproximam de nós, ou das capacidades imensamente avançadas apresentadas por espécies não-mamíferas como as aves (especialmente os corvos), teremos de conceder que a nossa especificidade é bem menor, e que só continua a ser amplificada por causa do nosso viés subjetivo, o que como já vimos em Damásio é bastante acentuado.

Mas não é apenas no exterior de nós mesmos, é também no interior. Damásio fala continuamente no corpo, mas à semelhança do que faz com o Humano, vive obcecado com o cérebro. É nele que concentra praticamente toda a sua investigação, deixando de fora áreas que têm evoluído, como por exemplo os estudos sobre o sistema nervoso do intestino. Há anos que nos fala do corpo, da visceralidade da emoção, do sentir nas vísceras, mas descobrir que os nossos intestinos possuem uma enorme camada de neurónios, que é onde 90% da serotonina (neurotransmissor da boa-disposição) está alojada, que são autónomos na gestão das suas necessidades, tanto face ao cérebro como aos sistemas de homeostasia do nosso corpo, devia fazer-nos refletir mais. Damásio fala bastante do modo como nos tornamos espécies dotadas de sistema nervoso, como ele é responsável pelo sentir e pelo ser, como só o sistema nervoso pode mapear o real e construir os sentimentos internos, e no entanto fala tão pouco da medula espinal, e nada diz sobre os intestinos que albergam 5 vezes mais neurónios que a medula.

Obviamente que Damásio não pode falar de tudo, a consciência é complexa e toca em tudo. Por outro lado, escrever livros, uns atrás dos outros, quase repetindo os argumentos que desenvolveu há 25 anos não ajuda muito. Era expectável que alguém tão interessado na emocionalidade e cognição humanas fosse alargando as dimensões da sua análise, albergando trabalho que vai sendo feito com recurso a conhecimento construído durante décadas ou séculos. Recusar-se a fazê-lo, optar em sua vez por citar constantemente filósofos com dois ou mais séculos, pode até dar um ar clássico e intelectual às observações, mas serve apenas uma comunidade leiga. Por isso não admira as críticas que os seus livros vão sofrendo no meio académico.

Por fim, na terceira parte do livro, entramos numa etapa nova de Damásio, embora mais uma vez muito colada ao seu trabalho anterior, ao que tinha juntado a biologia do primeiro capítulo e as artes, para assim discutir o humano e a máquina, motivado pelas assunções apresentadas por Harari em “Homo Deus” (2017). Antes de discutir em detalhe, começar por dizer que Damásio comete um erro gritante nas suas tentativas de interpretar e especular sobre tecnologia, quando não separa a evolução e progresso do humano da evolução e progresso da máquina. Ou seja, aquilo que as máquinas poderão vir a ser não depende daquilo que o humano poderá vir a ser. Sei bem que Damásio está muito ligado a Descartes, e por isso não poderia deixar de combater o mesmo, nomeadamente o seu “Demónio Génio”, aquele criador de ilusões que enganava os nossos sentidos, que viria depois a evoluir para uma outra teorização, a do cérebro numa jarra imaginando a realidade, e que chegou aos nossos dias como a possibilidade de fazer upload da nossa mente para um sistema informático. Tal como Damásio, considero esta hipótese não remota mas impossível porque estapafúrdia, e apoio completamente Damásio neste seu sentimento de afronta face às teorizações que se vão fazendo neste campo, nomeadamente no campo do transhumanismo, ou das hipóteses de se fazerem transplantes da cabeça para outros corpos. A razão porque isto não faz sentido foi já discutida acima. Não somos apenas um cérebro, porque o nosso cérebro não detém uma base de dados daquilo que somos, ele depende do resto do corpo para compreender a realidade, está ligado a todo o mapa nervoso que percorre o corpo, no qual se sustentam as imagens da realidade, e que uma vez quebradas deixarão cair a consciência de si.

O problema de Damásio é pegar nesta abordagem e assumi-la como única, e pior assumi-la para atacar algo que vem sendo cada vez mais aceite por todos os que trabalham no domínio da cognição, pois Harari não é de todo o seu primeiro proponente, e falo do facto de Harari propor analisar o humano como conjunto de algoritmos, como um algoritmo complexo no meio da equação do cosmos. Damásio defende que não, demonstrando claramente não perceber o que é um algoritmo. Para o efeito escuda-se na complexidade biológica do ser humano, nas intermináveis interações biológicas, desde o plano atómico, ao celular, e a todos as camadas que se lhe vão sobrepondo até que a vida emerge. Ou seja, para Damásio a vida não é um algoritmo, porque é algo mais complexo do que um algoritmo.

Isto é tão vazio a ponto de levar Damásio a contradizer-se no seu próprio livro, da primeira parte para a terceira parte. Ou seja, Damásio esforçou-se por encontrar e conceber  o conceito da unidade mínima que nos dá a vida, o processo de homeostase, e no entanto no fim do livro refuta-o. Porque vejamos, o que é a homeostase se não um algoritmo por excelência, um "conjunto de operações" ou regras, bem definidas e delineadas por Damásio, para dar conta do modo como a vida não se limita ao equilíbrio, mas procura ir além, para o que precisa de regras, de um algoritmo. Ou seja, é o próprio Damásio que abre o livro apresentando o algoritmo mais aprimorado daquilo que significa vida, e no final, por incompreensão da ciência exterior ao seu trabalho, contradiz-se.

Mas fosse o problema apenas este, e nada mais diria, o problema é que não é apenas a definição da vida como algoritmo, apesar de ser por aí que decide atacar Harari. Na verdade Damásio fica imensamente aquém das capacidades especulativas de Harari, o que me levou a refletir sobre o porquê, e acabei por concluir que tem que ver com o mundo científico de que ambos partem. Damásio parte do conhecimento da biologia, da máquina orgânica, enquanto Harari parte da História, da maquinaria social. Damásio procura perceber como é que poderemos algum dia criar inteligência artificial, enquanto Harari olha para a curva de progresso da invenção humana para chegar às suas conclusões. Ou seja, Damásio está focado no mero progresso da biologia, e por isso considera tal impossível, já Harari está focado no progresso das máquinas, do quanto evoluíram no sentido de nos imitar. Trago aqui à colação, um texto que escrevi aquando da minha leitura de "Musicophilia" (2007) de Sacks:
“No fundo, somos tecnologia construída a partir de tecidos orgânicos, que evoluíram ao longo de milénios de anos permitindo que a complexidade de armazenamento de informação na nossa cabeça se complexificasse a um tal ponto levando a que esta própria complexidade fizesse emergir em cada um de nós, personalidades com traços próprios. Mas no fundo não passamos de máquinas biológicas com data de validade inscrita à nascença. Aliás nesse sentido, se algum dia viermos a perceber o que faz despoletar a emergência do ser no nosso cérebro, poderemos simular isso em computadores, e a partir daí seremos obrigados a respeitá-los tanto, como respeitamos hoje qualquer outro ser humano. Talvez Kubrick e Spielberg (AI, 2001), tivessem razão, e daqui a 10 mil anos já não existiremos por cá enquanto máquinas biológicas, mas antes como resquícios esquecidos em pequenos robôs.” Zagalo in VI, 2011
Aquilo que Harari apresenta em “Homo Deus”, é isto mesmo, a visão de um pós-humano. Não vamos evoluir para o ponto de sermos carregados para o ciberespaço, mas vamos criar algoritmos capazes de pensar como nós pensamos, porque não somos sequer a única espécie capaz de pensar neste planeta. Porque e apesar de concordar que a componente emocional e de sentimento é extremamente relevante, a verdade é que é o próprio conceito, revolucionário de Damásio, da homeostase que nos vai fazer chegar lá. Porque a máquina não precisa de ter o mesmo leque de emoções que nós detemos. A máquina desenvolverá outras, porque a máquina desenvolverá as suas necessidades a partir da sua homeostase, e esta fará emergir a sua sede de sobrevivência, e dessa as suas emoções, ou não. E este não é o que mais nos entusiasma, porque a máquina, com todo o seu poder de processamento a sua memória infinita, e acima de tudo interligação a todo o conhecimento existente, registado e em tempo real (aquilo que hoje chamamos de big data e machine learning) poderá desenvolver todo um novo sistema de processamento da realidade, para além da nossa compreensão.

Damásio pode dizer que não interessa nada a capacidade racional das máquinas, porque elas não sentem, mas eu digo, no momento em que as máquinas começarem a criar, a desenvolver as suas próprias obras, sem estarem dependentes das obras humanas, ações significantes sobre a realidade, não mais as poderemos descartar como meras ferramentas. Não interessará nada saber se sentem a beleza ou o poder daquilo que criarem, interessará antes reconhecer que aquelas criações não são nossas e são fruto de uma entidade autónoma, e que essa entidade não é descartável, tal como hoje não são descartáveis os animais. Claro que durante muito tempo tenderemos a descartar estes feitos, tal como ainda hoje fazemos com os animais, porque se protegemos os cães e os gatos, não protegemos da mesma maneira as formigas ou as abelhas, para não falar das vacas e porcos, ainda que sobre estes últimos recaiam uma necessidade fisiológica da nossa parte. Mas o que dizer dos nossos jardins zoológicos, continuo sem esquecer a última vez que fui ao de Lisboa, há cerca de 10 anos, e espreitei para dentro da zona fechada em que eram mantidos os gorilas, e vi os seus olhos olharem para mim, o estremecimento que senti nunca mais me abandonou. Mas e todas as outras espécies que não detém fisionomias similares, que nós não compreendemos o que pensam ou sentem?

Porque seguir Damásio é seguir a ideia de que a vida só vale quando se sente, e se sente com a força da consciência, da intelectualidade, mas a vida não é só cultura humana, nem é só sentimento, a vida que surgiu num big bang há milhões de anos, era, aqui sim Damásio, homeostase, não era sentimento. É nessa homeostase que acredito, na capacidade criadora, de manter vivo hoje e avançar para o amanhã, e nesse plano estamos ao nível dos animais, assim como um dia as máquinas estarão para além de nós.

outubro 29, 2017

O Cérebro Narrativo

Damásio não se cansa de tentar fazer avançar o conhecimento no domínio da consciência, do conhecimento de si, em particular do modo como compreendemos o mundo e a nós mesmos. No estudo “Decoding the Neural Representation of Story Meanings across Languages” (2017), agora publicado na revista Human Brain Mapping, a sua equipa apresenta pela primeira vez, evidências empíricas da existência de estruturas narrativas no nosso cérebro, que se podem encontrar de modo universal nos seres humanos, operando indistintamente em múltiplas línguas, sendo ativadas tanto por meio de histórias orais como escritas, e à partida também audiovisuais.



Não é de agora que se suspeita que existe em nós uma predisposição para estruturar a informação em blocos narrativos, ou seja, criar pedaços de histórias para dar sentido à realidade e mais facilmente memorizar a mesma. Joseph Campbell (1949) apesar de trabalhar em Antropologia e se ter socorrido da Mitologia e da Psicanálise, chegou a afirmar algo como: as histórias estão interligadas com aquilo que somos e desejamos ser. No início dos anos 1980 Walter Fischer defendia a existência de um "paradigma narrativo" que estava na base de toda a comunicação humana, sem o qual não nos entenderíamos uns aos outros. Desde o aparecimento das neurociências que muitos estudos têm sido dedicados a estudar o modo como compreendemos a realidade, e a tentativa por entender o modo como contamos histórias tem sido um dos vetores dessas abordagens.

São múltiplos os estudos que têm sido realizados para compreender o poder do ato de contar histórias e que tem invadido o discurso em quase todas as áreas. [Infografia da OneSpot a partir de dados coligidos por Widrich (2016)].

Ora a estrutura que parece operar as histórias no nosso cérebro é designada como “default mode network” (DMN) tendo sido inicialmente identificada como “"resting state" network that shows high baseline activity when people are asked to rest without engaging in any specific externally-focused task [Raichle and Snyder, 2007; Raichle, 2015].”. Esta estrutura crê-se estar na base de “such cognitive processes as mind-wandering [Smallwood and Schooler, 2015], thinking about one’s self [Qin and Northoff, 2011], remembering the past and imagining the future [Østby et al., 2012], and in general to support stimulus-independent thought [Smallwood et al., 2013].” Por outro lado “the activity in the DMN is consistent when a story is presented in different modalities (spoken vs. written), or in different languages (Russian vs. English to native speakers of these languages), indicating highly abstracted representations of the stimuli in this network [Chen et al., 2017; Honey et al., 2012; Regev et al., 2013; Zadbood et al., 2016].” Num outro estudo realizado por Chen et al. (2017) foi possível encontrar também “evidence that there are shared patterns of activity in the DMN across participants when describing scenes from an audiovisual story”.

Ou seja, os vários trabalhos vêm demonstrando que vamos para além da mera operação sintática — forma das letras e palavras — assim como da mera análise semântica —  sentido das frases, sendo capazes de operar a um nível narrativo, ou “alto-nível semântico”. Isto é, “abstracted beyond the level of independent concepts and language units, the brain seems to systematically encode high-level narrative elements”. Ou seja, trabalhamos por meio do DMN as palavras e os seus sentidos para simular histórias mentais, para assim compreendermos o que nos está a chegar por via dos sentidos. Mas como se diz acima, isto não trabalha apenas com os sentidos, isto trabalha de modo quase-contínuo em nós, alternando com o modo cognitivo de foco (em que exigimos toda a nossa capacidade cognitiva para realizar uma tarefa) operando como uma espécie de máquina de “sonhar acordado”, que nos vai oferecendo pontos de vista sobre o mundo, e sobre nós próprios pela interação com o mundo externo, assim como pela interação entre pedaços de informações provindas de experiências do passado, memorizadas em nós.

Neste sentido quando acedemos a histórias exteriores a nós, pelo facto de usarem a mesma estrutura organizativa que o cérebro utiliza para as simular, recorremos a toda uma “cognitive architecture” que realiza um “stitch together individual words, link events with their causes, and remember what came before to build a holistic understanding”. Isto explica porque é tão fácil conectarmo-nos com o que vai sendo contado, e em certa medida, porque ouvir ou ler uma história, não se diferencia muito de sonhar acordado, o que acaba por dar suporte ao sentimento de “imersão” ou de “perder-se numa história”, o sentimento de esquecimento do mundo real à nossa volta.

No final, a equipa de Damásio veio dar razão a muito daquilo que sempre soubemos: que gostamos de histórias porque o nosso cérebro passa a vida a contar histórias a si próprio; ou ainda que as histórias servem para enquadrar a realidade e compreendê-la, não apenas os seus acontecimentos e os seus mundos, mas mais ainda em particular, as suas personagens, que usamos como modelos para nos colocar no lugar de, para simular e empatizar, para no fim de tudo, aprender.


Nota: Tendo o trabalho sido desenvolvido por uma equipa considerável, é muito interessante ver como no final surge apresentada a divisão de trabalho efetivo realizado por cada um dos membros da equipa. Talvez seja prática em certos domínios, mas julgo que seria algo a implementar em todas as publicações científicas.

Todos os excertos inglês retirados do artigo:
Dehghani, M., Boghrati, R., Man, K., Hoover, J., Gimbel, S. I., Vaswani, A., Zevin, J. D., Immordino-Yang, M. H., Gordon, A. S., Damasio, A. and Kaplan, J. T. (2017), Decoding the neural representation of story meanings across languages. Hum. Brain Mapp.. doi:10.1002/hbm.23814

setembro 19, 2015

Os heterónimos de Pessoa e a narrativa

Êxtase foi o que senti hoje, ao ler a “Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935” de Fernando Pessoa, na qual este nos explica como surgiram os seus heterónimos, as suas origens, os seus traços, e como era escrever segundo cada um deles. A escrita de Pessoa é profusamente impressiva, com cada linha a emanar o sentir momento a momento, como se ali se pudesse conter não só o presente, mas o antes e o depois da trepidação de cada emoção que por ele passa, o que torna impossível ao leitor não se emocionar, não sentir também. Antes de aqui transcrever o texto quero fazer dois reparos, um sobre o talento, o outro sobre a narrativa enquanto processo de construção do Eu.


O talento de Pessoa, como qualquer grande talento, surte do seu empenho na escrita desde cedo, que fica evidenciado desde logo quando Pessoa refere nesta carta: “o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo”. Ou seja, quando muitas crianças estão ainda a aprender a ler, Pessoa já escrevia cartas a partir de personagens/amigos imaginários para si mesmo, algo que abraçou para o resto da vida, investindo grande parte do seu tempo diário na escrita.

Sobre a questão da narrativa, o filósofo Galen Strawson usou recentemente o exemplo dos heterónimos de Pessoa para dar conta da alegada falsidade que é pensar a narrativa como o modelo único de organização da nossa autobiografia, a consciência, o que define aquilo que somos. Para Strawson, os heterónimos de Pessoa dão conta de uma realidade interior muito mais fluída, variável, não-linear, sem princípio nem fim, que vai contra tudo aquilo que define o modo narrativo. Na realidade, não precisamos sequer de ir aos vários desdobramentos de Pessoa em heterónimos, se olharmos a Bernardo Soares, autor do "Livro do Desassossego", e aquele que Pessoa considera mais ele mesmo, apenas um "semi-heterónimo", facilmente veremos como parece perpassar uma espécie de ausência de fio narrativo pela vida de Pessoa. Bernardo Soares tem imensa dificuldade em criar uma estrutura conectiva entre factos, dificilmente temos sucessões de eventos, causalidade, tudo ali parece flutuar e tocar-se apenas por meio de interstícios. Dá-nos uma ideia de Pessoa, mas se a dá, é porque nós a construímos em nós mesmos, interiorizando a leitura à nossa própria narrativa, e é isso mesmo que acaba por vir dar mais força a ideia da narrativa como modelo de organização da nossa autobiografia. Porque claramente Pessoa não era um padrão, era um artista, dotado de excentricidades e peculiaridades, as tais que lhe permitiram criar um universo só seu. Pessoa não se formou como narrativa, antes como mundo, quando muito mundo-história, com múltiplas ramificações, múltiplos inícios e múltiplos finais, um verdadeiro rizoma no extremo oposto da narrativa.


[Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935]
Caixa Postal 147

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.

Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.

Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.

(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou simplesmente falando consigo).

Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem» , que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente). Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia — tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!

Creio que respondi à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar — , custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeiro de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa, (1935), Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas, Lisboa: Publ. Europa-América, 1986. 1ª publ. inc. in Presença , nº 49. Coimbra: Jun. 1937, Online.

maio 19, 2015

Consciência, Multimedia e Inteligência Artificial

Consciousness and the Brain: Deciphering How the Brain Codes Our Thoughts” (2014) de Stanislas Dehaene oferece-nos um excelente trabalho de divulgação da investigação científica que se tem realizado nas últimas décadas à volta do conceito de 'consciência'. A abordagem escolhida por Dehaene é a de simplificar o domínio, libertando dos tabus a que a área foi votada pelos próprios investigadores. O domínio dos estudos da consciência foi sempre bastante frágil, à semelhança do estudo das emoções, por ser considerado não apenas complexo, mas impossível de vergar ao método experimental. Desta forma este livro de Dehaene funciona quase como uma lufada de ar fresco na desmistificação e facilitação de acesso àquilo que designamos de consciência.


Dividiria o livro em três grandes partes, a introdução ao conceito e sua sustenção evolucionária, que ocupam os primeiros capítulos, simples e cheios de metáforas que se percebem muito bem, e que nos garantem uma noção bastante concreta do que é a consciência. A segunda parte, um pouco mais densa, nomeadamente por se procurar sustentar as ideias com muitos estudos realizados no campo e que acabam dedicando demasiado tempo a tecnicismos do cérebro, perdendo por vezes a nossa atenção. E depois o capítulo final no qual se aponta ao futuro da área, com dados e especulações extremamente instigantes. Deste modo quero deixar apenas algumas notas sobre a definição do conceito, e depois dedicar algumas linhas à projecção para estudos futuros.

Comecemos pela definição de consciência que Dehaene apresenta :
“consciousness is brain-wide information sharing. The human brain has developed efficient long-distance networks, particularly in the prefrontal cortex, to select relevant information and disseminate it throughout the brain. Consciousness is an evolved device that allows us to attend to a piece of information and keep it active within this broadcasting system. Once the information is conscious, it can be flexibly routed to other areas according to our current goals. Thus we can name it, evaluate it, memorize it, or use it to plan the future.” (abertura do Capítulo 5)
Isto levaria-nos a questionar de que serve então a consciência, porque não funcionamos apenas por meio de processos não-conscientes? E é nesse sentido que se torna interessante analisar o processo em termos evolucionários, que Dehaene define assim:
“consciousness supports a number of specific operations that cannot unfold unconsciously. Subliminal information is evanescent, but conscious information is stable — we can hang on to it for as long as we wish. Consciousness also compresses the incoming information, reducing an immense stream of sense data to a small set of carefully selected bite-size symbols. The sampled information can then be routed to another processing stage, allowing us to perform carefully controlled chains of operations, much like a serial computer. This broadcasting function of consciousness is essential. In humans, it is greatly enhanced by language, which lets us distribute our conscious thoughts across the social network.”
Isto é um processo que me interessa particularmente, porque o conceito de hipertexto é fundamentalmente baseado no mesmo. Se Vannevar Bush procurava emular a nossa capacidade de pensamento associativo, ou seja de processamento de múltipla informação, em paralelo, que ocorre no não-consciente, fundamental em termos de agilidade cognitiva, pelo meio ficou esquecido o problema do consciente, ou seja, o modo como filtramos a informação do exterior, como consolidamos a informação e a transportamos para o não-consciente, via processos em série. Este problema agravar-se-ia depois ainda mais com o surgimento do hipermedia/multimedia, em que os documentos passavam não apenas a apresentar diversidade não-linear de informação, mas modelada por meios distintos.

Por isso aceder a um documento multimedia, em que o conteúdo que se pretende transmitir, é espartilhado em vários objectos distintos de media a tempos não-lineares, torna a compreensão mais difícil do que aceder a um documento linear e num único meio. A ideia de que os objectos distintos se reforçam mutuamente acaba por não funcionar já que os múltiplos meios obrigam de imediato a um consumo maior de consciência. Usando linguagem informática, poderemos descrever o processo da seguinte forma: quanto mais meios distintos utilizar numa mensagem, mais software tenho de fazer o receptor carregar para o consciente, para conseguir descodificar cada meio, sobrando menos capacidade para descodificar a essência do que se quer comunicar. Ou seja, não lemos um texto, uma foto, um vídeo ou sons da mesma forma, precisamos de usar recursos apreendidos em experiências anteriores, para descodificar cada um desses sinais. Nesse sentido - um texto, ou um vídeo, ou um áudio - permitem ao receptor concentrar-se quase exclusivamente na mensagem, assumindo o meio quase como transparente.


Daí que o enfoque comunicativo do multimédia não possa ser a multimedialidade mas antes a interatividade, como tenho defendido ("Media Criativos e Interactivos" (2010), Jornalismo 'Interactive Storytelling'? (2015)). Porque aquilo que diferencia os novos media dos tradicionais é apenas, e só, a interatividade, já que a união de diferentes media vem desde os anos 1930 sendo feita pelo cinema. E quando falo de interatividade, não falo de um processo aberto, ou rizomático, de acesso a múltiplas fontes de informação, mas antes de um processo cíclico de interacção - conversacional - entre o artefacto e o receptor. Daí que pensar, desenhar e construir um artefacto a partir do seu potencial de interatividade, seja totalmente distinto de o fazer a partir do potencial de junção de diferentes media.


No último capítulo são várias as questões e desafios apresentados para os quais ainda não temos respostas, e que se revelam de enorme importância, das quais escolho aqui discutir duas:

1: "Can we figure out whether a monkey, or a dog, or a dolphin is conscious of its surroundings?"

Neste ponto Dehaene discute os vários estágios do conhecimento científico porque passámos em termos do que separa o homem dos animais, sendo que no mais recente estágio se assumia que o que determinava esta diferença estava na capacidade do homem poder reflectir sobre si mesmo, algo que nos estudos mais recentes se tem demonstrado, com grande evidência, que vários animais são também capazes de fazer, ou seja, os animais possuem consciência. Deste modo Dehaene procura elaborar uma ideia que demonstre a linha que nos separa dos animais, e fá-lo usando uma abordagem cognitiva assente nos processos de linguagem, com a qual concordo inteiramente:
“although we share most if not all of our core brain systems with other animal species, the human brain may be unique in its ability to combine them using a sophisticated “language of thought.” René Descartes was certainly right about one thing: only Homo sapiens “use[s] words or other signs by composing them, as we do to declare our thoughts to others.” This capacity to compose our thoughts may be the crucial ingredient that boosts our inner thoughts. Human uniqueness resides in the peculiar way we explicitly formulate our ideas using nested or recursive structures of symbols (..) in agreement with Noam Chomsky, language evolved as a representational device rather than a communication system—the main advantage that it confers is the capacity to think new ideas, over and above the ability to share them with others. Our brain seems to have a special knack for assigning symbols to any mental representation and for entering these symbols into entire novel combinations (..) The recursive function of human language may serve as a vehicle for complex nested thoughts that remain inaccessible to other species. Without the syntax of language, it is unclear that we could even entertain nested conscious thoughts such as He thinks that I do not know that he lies. Such thoughts seem to be vastly beyond the competence of our primate cousins.”
2: "Could we ever duplicate them in a computer, thus giving rise to artificial consciousness?”

Para o o final Dehaene deixa um assunto, semelhante ao do ponto anterior, mas numa direcção diferente. Se no caso dos animais, estamos focados em tentar perceber o que nos coloca em planos diferentes, no caso da Inteligência Artificial, estamos interessados em perceber se será verdadeiramente possível criar um processo matemático que simule a consciência. Um tópico que me tem preocupado nos últimos anos, por causa da minha investigação na área de emoções, e que discuti aqui já a propósito de um livro de Oliver Sacks e de uma talk de António Damásio.
“I have no problem imagining an artificial device capable of willfully deciding on its course of action. Even if our brain architecture were fully deterministic, as a computer simulation might be, it would still be legitimate to say that it exercises a form of free will. Whenever a neuronal architecture exhibits autonomy and deliberation, we are right in calling it “a free mind” — and once we reverse-engineer it, we will learn to mimic it in artificial machines (..) Our neuronal states ceaselessly fluctuate in a partially autonomous manner, creating an inner world of personal thoughts. Even when confronted with identical sensory inputs, they react differently depending on our mood, goals, and memories. Our conscious neuronal codes also vary from brain to brain. Although we all share the same overall inventory of neurons coding for color, shape, or movement, their detailed organization results from a long developmental process that sculpts each of our brains differently, ceaselessly selecting and eliminating synapses to create our unique personalities. The neuronal code that results from this crossing of genetic rules, past experiences, and chance encounters is unique to each moment and to each person. Its immense number of states creates a rich world of inner representations, linked to the environment but not imposed by it. Subjective feelings of pain, beauty, lust, or regret correspond to stable neuronal attractors in this dynamic landscape. They are inherently subjective, because the dynamics of the brain embed its present inputs into a tapestry of past memories and future goals, thus adding a layer of personal experience to raw sensory inputs. What emerges is a “remembered present,” a personalized cipher of the here and now, thickened with lingering memories and anticipated forecasts, and constantly projecting a first-person perspective on its environment: a conscious inner world.”

Ler mais:
A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma 
Musicophilia (2007), música e consciência

novembro 28, 2014

Hipótese da Simulação Corpórea

Um dos livros que tenho andado a trabalhar, para textos que ando a desenvolver, deixou-me uma impressão grande, por isso resolvi pegar no que fui escrevendo sobre o mesmo, e juntar tudo num texto para dar conta do mesmo aqui no blog. Falo do livro "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" de Benjamin Bergen de 2012. Este livro não é uma mera discussão pessoal do modo como criamos sentido do mundo, antes desenvolve um conjunto de hipóteses assentes em dezenas de estudos realizados ao longos das últimas décadas, tendo o próprio Bergen contribuído para o desenvolvimento de vários desses estudos.


Bergen começa o livro discutindo a teoria vigente categorizada como, a “Hipótese da Linguagem do Pensamento”, que procura definir o modo como criamos sentido da realidade, e que nos diz que compreendemos a realidade por meio da linguagem, que não é propriamente a língua nativa, porque esta não passa de mera convenção cultural, mas antes uma linguagem interna do pensamento, que permite compreender por meio de um descodificador interno o mundo à nossa volta, e que ficou conhecida por “mentalese” (um conceito amplamente defendido por “Fodor (1975) e Pinker (1994) mas que já aparecia na lógica de Bertrand Russell (1903)”). Ou seja para cada objecto, propriedades, conceitos, ações, etc. teríamos um símbolo mental que corresponderia e que atribuiria sentido ao real que enfrentamos em cada momento. O mentalese funcionaria de certo modo como uma normal linguagem, com substantivos, verbos, adjetivos, etc. Ou seja é possível construir ideias, frases, como numa linguagem normal, mas é algo sem forma, sem som nem imagem, não concreta.

Ora isto levanta um problema, sem solução à vista, de onde vem o mentalese? Como se cria, como se desenvolve, como se processa, onde está alojado? Para Pinker, partindo da sua ideia da inexistência de um "Blank Slate" (2002), defende que o mentalese é algo inato, que nasce inscrito em nós, e por isso somos seres dotados de linguagem.

Mas outros procuraram dar resposta por outros meios, nomeadamente por meio de algo que vai além do reduto da mente, e usando o corpo como um todo, como detentor de conhecimento, adquirido pela experiência do mundo. Autores como George Lakoff na linguística, Mark Johnson na filosofia, ou Eleanor Rosch nas ciências cognitivas procuraram compreender a ideia de significado no corpo. Uma ideia que claramente deve a vários princípios discutidos nos últimos 20 anos no ramo da neurociência, nomeadamente com os estudos da emoção de António Damásio (1994) e depois com os Neurónios Espelho de Gallese e Rizzolatti (1999). Assim esta abordagem pelo corpo, apresentada como ideia rival do mentalese, ficaria conhecida como “Hipótese de Embodied Simulation” (que opto aqui por traduzir como Hipótese da Simulação Corpórea), definindo-se como
“Maybe we understand language by simulating in our minds what it would be like to experience the things that the language describes.”
O mais interessante é que esta ideia de conceber o mundo por via do corpo, é bem mais antiga que os estudos aqui apresentados por Bergen, nomeadamente toda a Fenomenologia, nomeadamente com Merleau-Ponty, assenta sobre este princípio base, em que se procurava desviar o foco da mente para o fenómeno externo. Mesmo dentro da psicologia com Gibson, em que este procurou claramente desviar-se do foco do cognitivo, para a ecologia visual, o mundo externo, concebendo a construção de realidade, por meio da interação e experienciação do mundo externo. É claro que aquilo que se apresenta agora aqui é mais desenvolvido, muito mais elaborado, e acima de tudo mais relevante porque sustentado em imensos estudos empíricos.

Ou seja, nós sabemos o que é simular mentalmente. Nós passamos a vida a fazê-lo, é assim que imaginamos a cara dos nossos amigos ou filhos, ou imaginamos um passeio pela praia, é assim também que imaginamos sons, sem sequer sentir qualquer onda sonora bater nos nosso tímpanos. Acordados ou a dormir, somos verdadeiros especialistas da simulação mental. Mas aquilo que Bergen nos diz, é que estes exemplos que imaginamos através do “olho da nossa mente”, são no fundo apenas aquilo que designamos por “mental imagery”, ou seja processo de criação de imagens mentais, sendo que o processo de simulação é algo mais vasto e profundo.
“Simulation is an iceberg. By consciously reflecting, as you just have been doing, you can see the tip—the intentional, conscious imagery. But many of the same brain processes are engaged, invisibly and unbeknownst to you, beneath the surface during much of your waking and sleeping life. Simulation is the creation of mental experiences of perception and action in the absence of their external manifestation. That is, it’s having the experience of seeing without the sights actually being there or having the experience of performing an action without actually moving. When we’re consciously aware of them, these simulation experiences feel qualitatively like actual perception; colors appear as they appear when directly perceived, and actions feel like they feel when we perform them. The theory proposes that embodied simulation makes use of the same parts of the brain that are dedicated to directly interacting with the world. When we simulate seeing, we use the parts of the brain that allow us to see the world; when we simulate performing actions, the parts of the brain that direct physical action light up. The idea is that simulation creates echoes in our brains of previous experiences, attenuated resonances of brain patterns that were active during previous perceptual and motor experiences. We use our brains to simulate percepts and actions without actually perceiving or acting.”
Nós temos consciência deste processo de simulação, é perfeitamente natural, e não há nada de muito novo aqui, a grande questão é saber se processamos a linguagem do mesmo modo. Ou seja, se compreendo as palavras, as frases, as ideias aí inscritas, por meio de processos de simulação, em vez de por meio de uma linguagem interna, o mentalese. Porque na verdade, o que temos é algo bastante mais natural, em termos de rentabilização de recursos do nosso corpo e cérebro. Faz mais sentido que utilizemos os nossos sistemas de percepção (o sistema sensorial, os 5 sentidos, embora haja uma tendência para privilegiar a visão e audição) e a ação (sistema motor) para compreender a realidade, do que tenhamos criado algo novo, à parte, para processar apenas a linguagem. No fundo, isto vem reforçar fortemente a ideia de que a linguagem nos ajuda a construir sentidos mais elaborados do mundo, já que ela faz uso directo das experiências desse mundo. Ou seja, o modo como trabalhamos a gramática da linguagem, serve-nos para processar de modos mais elaborados a realidade que experienciamos, as vivências que adquirimos, o mundo a que acedemos.

Uma das grandes questões que se levanta de imediato, é que se em vez de recorrermos a uma linguagem inata, igual e universal para todo o ser humano, recorrermos a processos que simulam experiências perceptivas anteriores, então o significado da realidade passa a ser algo extremamente pessoal e subjetivo. O que mais uma vez nos indica que estamos no caminho correto, se olharmos para as grandes questões da semiótica, desde a “Obra Aberta” (1962) de Umberto Eco, que discutimos a ideia de interpretação da realidade, as realidades convergentes e as realidades pessoais. O que temos é uma cultura humana como dotadora de códigos que permitem a criação de uma comunicação humana, e à qual cada um de nós ajusta as suas próprias impressões e experiências pessoais do mundo.


“Perky Effect” 

O “Perky Effect” consiste em estar a olhar para uma parede branca enquanto se imagina um objecto (uma banana ou uma folha), e projectar nessa parede uma imagem desse objecto com variações de transparência. O que Perky descobriu é que muitos acreditavam que estavam apenas a imaginar a banana ou a folha, não reconhecendo que esse objecto estava verdadeiramente na sua frente. Deste modo este efeito demonstra que, realizar imagens na mente pode interferir com a percepção que temos do mundo. Isto é o que acontece quando sonhamos acordados, vemos imagens sobrepostas sobre a realidade que nos rodeia, que no fundo bloqueiam essa mesma realidade. Os estudos sobre este efeito demonstraram que não apenas imagens mas também as suas posições no espaço, assim como os seus movimentos visuais ou verbais, podem interferir com o modo como percepcionamos a realidade.

Ao nível do movimento e espaço, os estudos demonstraram algo verdadeiramente relevante sobre o modo como organizamos mentalmente a espacialidade que nos rodeia. Estudos que me deixaram a reflectir particularmente na organização de espaço em ambientes virtuais. Em estudos desenvolvidos sobre processos mentais que procuravam realizar acções de de rotação de objetos ou movimentação espacial, verificou-se que  “you perceive motion in mental images like you do real motion in the world — the things that take longer in the world also take longer in the mind. Because it’s like real motion, mental motion is useful”.


A criatividade por detrás dos Porcos Voadores

Uma questão que se levanta quando se lança a hipótese da teoria de simulação a partir de experiências, é que se a construção de significado é realizada na nossa mente, então nós devemos ser capazes de gerar ideias a partir de ideias que não existem no mundo real. Daí que a ideia de “Porco Voador”, algo que não existe, sirva de exemplo perfeito aos intentos de Bergen, estando inclusive na capa do livro. Então como é que chegamos a essa ideia?
“The writer John Steinbeck imagined such a winged pig and named it Pigasus. He even used it as his personal stamp. What do you know about your own personal Pigasus?
It probably has two wings (not three or seven or twelve) that are shaped very much like bird wings. Without having to reflect on it, you also know where they appear on Pigasus’ body—they’re attached symmetrically to the shoulder blades. And although it has wings like a bird, most people think that Pigasus also displays a number of pig features; it has a snout, not a beak, and it has hooves, rather than talons”
Daqui podemos extrair várias ideias:

1 - A ideia de Porco Voador é comum à grande maioria de pessoas, e parece significar algo. Apesar de este não existir, o que coloca um problema ao Mentalese, que defende que o significado surge da relação com o real, o que obrigaria então a que este existisse de algum modo.

2 - A ideia de Porco Voador, não estimula apenas o surgimento mental de uma imagem de um porco, mas de um porco com asas, em que montamos uma ideia nova, a partir da junção de dois conceitos distintos. Ao mesmo adicionamos os efeitos das suas condições, neste caso sendo porco e não pássaro, é natural que nos surja a imagem de um porco, e as asas, normalmente apenas duas por imitação das aves, e sendo voador é natural que surja voando no ar e não sentado no chão.

3 - A imagem criada para o Porco Voador é altamente subjectiva, cada um imaginará algo completamente distinto, porque não existindo uma imagem real, que coloque em comum, cada um terá repescar as imagens que possui de Porcos e Aves Voando, para construir a nova. Alguns poderão mesmo construir ideias de Porcos com capas voadoras, do tipo Super Porco.

Imagem retirada do livro de Bergen

Ou seja, o processo de Simulação Mental é um processo profundamente pessoal, e que está na base explicativa do que é a Criatividade (“how you breathe life into your own personal Pigasus”). Neste sentido o uso de texto é profundamente mais criativo, já que obriga os sujeitos a construírem, a inovar na construção mental de ideias, a que se acedeu apenas a partir de texto. Se visse um porco voador num filme, nada haveria a simular de novo, seria dado como adquirido, e o processo de simulação mental seria reduzido à integração de uma nova experiência na memória.


Treino e prática mental

Vários estudos realizados com atletas de golfe, ténis, basquetebol demonstraram que os atletas que treinavam apenas vendo imagens de jogos e imaginando sequências de ações de jogo, melhoravam concretamente nas suas competências. A grande questão que se coloca então é: porque é que estando apenas a imaginar o uso do corpo de uma forma particular, se torna mais fácil ao nosso corpo mover-se depois?
“When we visualize actions—consciously and intentionally activating mental images—we use the very parts of our brain that control our body’s movements. When we imagine the footwork we employ to serve a tennis ball, the part of our brain that controls foot motion starts firing. When we think about how we hold a basketball in our hands, the part of our brain controlling hand motion lights up. As a result, whether you call it mental imagery, visualization, or mental rehearsal, imagining doing things is extremely effective at solidifying motor skills. And that’s because, to a large extent, when we’re visualizing, our brain is doing the same thing it would in actual practice.”

O maior problema da “Simulação Corpórea”
“in understanding language, we use our perceptual and motor systems to run embodied simulations. That’s all fine and good... about concrete stuff—polar bears that have a visual appearance, door knobs that you can physically turn, and rock classics that actually sound like something. But this only scratches the surface of what we can talk about. One of the unique and powerful things about human language is that we can use it to talk not just about the easy, concrete stuff but also about ideas that we can’t see or feel. We can talk meaningfully about truth, responsibility, or justice, none of which really look like anything. Or, for that matter, we can talk about meaning itself, like this book does... If simulation of sights, sounds, and actions is really at the heart of meaning, then how could we ever understand language about things that we can’t see or do?”

Solução: a Metáfora

A resposta apresentada por Bergen assenta na ideia de Metáfora, algo que faz imenso sentido nomeadamente no campo do design de interação, mas faz ainda mais sentido no campo do Cinema. Quando preciso de transmitir uma ideia abstracta, a primeira coisa que fazemos é procurar ideias concretas, que possam metaforizar a ideia abstracta que se quer transmitir. Uma das mais trabalhadas no cinema, é a ideia de Tempo, que Bergen também trabalha aqui.

Um dos exemplos que começa por trabalhar é o conceito de “sociedade”, através dos exemplos:

- “Japan has been a closed society for long despite its huge ”
- “War veterans struggle to fit back into society”
- “those who without assistance and guidance would fall through the cracks of society”

Ou seja, o que aqui temos é uma discussão sobre a ideia de sociedade, realizada de um modo perfeitamente concreto. Uma sociedade que pode ser fechada, que pode encaixar pessoas, ou pode apresentar fissuras. Ou seja, sociedade, nestas expressões parece uma espécie de “contentor”. O problema é que podemos falar de sociedade, de modos completamente distintos, e passar por exemplo, de contentor a uma espécie de “organismo”:

- “Farmers are the backbone of our society.”
- “Sexual violence disempowers women and cripples society.”
 - “A healthy society requires an ongoing dialogue between faith and reason.”

Claro que percebemos que “sociedade” não é um contentor nem um organismo vivo, mas usamos essas ideias concretas, como metáforas do seu significado. E é assim que surge a “metaphorical simulation hypothesis”, que nos diz que “ we understand abstract concepts through concrete, though metaphorical, simulation.”.  Exemplos, do uso do sistema motor,

- “grasping ideas”
- “clubbing you over the head with study after study”
- “bite the apple”
- “kick the bucket”

Esta ideia sustenta-se nas duas seguintes hipóteses,

Hipótese 1: “understanding a metaphorical action phrase, like grasp a concept, activates the motor apparatus responsible for performing the same action; in other words, mentally simulating the metaphorical action.”

Hipótese 2: “merely simulating an action makes you understand a phrase faster if it metaphorically uses that same action. ”

Mas um estudo demonstrou que “language that appears metaphorical like familiar metaphorical idioms that, when you read it as whole sentences, doesn’t always massively activate the relevant parts of the brain that we might expect to light up if people are performing motor simulations.”. Ou seja, a familiaridade das metáforas, evita o uso da simulação motora.

Por outro lado um outro estudo demontrou, “a sentence describing metaphorical motion upward, like The rates climbed, doesn’t interfere with perceiving a shape, no matter where it appears on the screen.” Assim “the Perky method shows no effect for metaphorical language - “if there’s no specific object being mentally simulated, then there’s no image to interfere with actual perception.” Ou seja, não estamos a usar a mesma parte do cérebro, e isto diz-nos que não estamos então a simular mentalmente.

Deste modo temos que “a compreensão da linguagem metafórica é feita através da construção de simulações corpóreas que são menos detalhadas, do que as literais, mas que ainda assim fazem uso do sistema motor e perceptual.”
“So much of what we actually talk about is abstract that we could hardly say we understand the process of understanding without figuring out how people grasp abstract concepts. The idea that we’ve come to is that we take what we know about how to perceive concrete things and to perform actions, and we use that knowledge to both describe and also think about abstract concepts. In this way, we bootstrap harder things to think and talk about—abstract concepts—off of easier things to think and talk about—concrete concepts.”

Uso da Metáfora sem Linguagem

Utilizamos todo o tipo de metáforas, mesmo quando não se trata de linguagem, mas apenas e só de compreender o real. No caso do tempo, que é um conceito extremamente abstracto, não existe nada palpável que lhe possa conferir forma. Ainda assim, temos tendência a medir o tempo em função do espaço (exemplo: linha de progressão de download). Uma linha maior dará indicação de maior duração, ou por exemplo um salto em comprimento, quanto maior, mais tempo terá levado. Por outro lado, o inverso não se confirma para nós, em termos metafóricos, ou seja, mais tempo não nos dá indicação clara de mais espaço.
“even when there’s no language around (just lines on screens), people use space to make judgments about time but not the reverse. This adds support to the idea that abstract concepts are generally understood in terms of more concrete ones, and not the reverse, even when there’s no language to prompt them to do so.”
Ou seja, usamos o concreto para criar sentido no abstracto, mas não usamos o abstracto para dar sentido ao concreto. Outros exemplos, tais como por exemplo uma “pessoa calorosa” ou o sentimento de “exclusão social”, foram investigados em termos perceptivos. E no caso da descrição de pessoas, existe uma tendência para descrever de forma mais calorosa ( adjectivando com: generosa, alegre e sociável) outra pessoa, depois de lhe terem passado para a mão um café quente. Da mesma forma se pediu para pensarem em momentos em que se sentiram incluídos ou excluídos socialmente, e logo a seguir questionou-se sobre a temperatura do quarto em que estavam. Os que pensavam em momentos de exclusão, descreveram como mais frio que os que pensavam em momentos de inclusão “lonely feels cold”. Ou seja

Outro exemplo dado, é o Macbeth Effect. num estudo em que foi pedido a pessoas para pensarem em ações éticas e não éticas, tendo a seguir oferecido um objecto para levar, verificou-se que quem tinha pensado em ações éticas tendia a escolher o lápis, ao passo que as não-éticas tendiam a escolher um objecto de limpeza. Assim o efeito corresponde à ideia de que quando as pessoas pensam em ações pouco éticas que fizeram no passado, sentem uma certa necessidade de se “limpar”.

Todos estes exemplos de metáforas fora do domínio da linguagem acabam por demonstrar que “concepts like time, morality, and affection are tightly linked to the very concrete things that they’re metaphorically described in terms of—distance, cleanliness, and warmth.”

Contudo e apesar destes exemplos, a verdade é que a simulação corpórea não responde a todos os problemas, nomeadamente ao facto de sabermos quando devemos simular uma metáfora como real percepção/ação real ou quando simular como mera metáfora conducente a um sentido abstracto. Como acaba dizendo Bergen, “the more that understanding abstract language is like understanding concrete language, the more infrastructure we must have to keep them apart.” E isso está longe de estar explicado.


Conclusão

No final Bergen questiona a funcionalidade e utilidade da simulação, toma o lado oposto, e questiona de várias formas a sua possibilidade, acabando por concluir, que apesar de muitas dúvidas termos, a hipótese é muito mais sustentada que a do mentalese, deixando vários exemplos, recordando de novo a questão do japonês, que ao contrário das línguas europeias, que apesar de trazer o verbo de acção, no final das frases, leva a processos de simulação mental muito aproximados na interpretação de frases, quando comparados com os das línguas ocidentais. Ou seja, o mentalese “doesn’t explain why Japanese speakers already have expectations about the shape of a mentioned object before they even come to the verb.

Um último ponto surge neste livro de relevância, e que no fundo está subjacente a toda esta discussão, e que tem que ver com a Comunicação. O que é, e como se serve de toda esta maquinaria.
“As speakers, the messages we intend to transmit are probably far from discrete packets of information. Instead, they are dynamic and continuous currents of perception and action, either performed and perceived or mentally simulated. As speakers, we have to jam all this messy, amorphous, nonspecific, continuous stuff through the narrow aperture afforded by discrete words and grammatical structures available to us in our language. This process of encoding is necessarily lossy: a few words can’t hope to capture the breadth and depth of the perceptual, motor, or affective experiences we want to convey. It’s also nondeterministic: we might use two different words to describe the same thought, sometimes even in the same sentence. And it’s fickle: we often just reuse words or grammar that we’ve just uttered and we tend to mimic the linguistic patterns of our interlocutor, instead of picking out the theoretically perfect words for a given message. So the information we want to convey is neither neatly delineated to begin with nor uniquely and perfectly packageable in words.”
A grande questão com que Bergen acaba fechando, é a eterna questão da Comunicação, como é que com mundos internos tão complexos, que cada um de nós desenvolve dentro de si, e com experiências do mundo tão distintas, conseguimos nós chegar a comunicar uns com os outros com sucesso?

março 10, 2014

Damásio fala da Criatividade e do Social

António Damásio esteve em Porto Alegre no Brasil a participar na conferência Fronteiras do Pensamento 2013, organizada pelo Instituto CPFL Cultura. Mário Mazzilli aproveitou a sua passagem pelo Brasil para lhe realizar uma interessante entrevista que foi entretanto vertida para um pequeno documento audiovisual e colocada online.


Ao longo dos 30 minutos que dura a entrevista, Damásio, de um modo muito calmo, vai discorrendo sobre vários temas que para muitos deveriam ser tratados separadamente mas que são impossíveis de dissociar quando queremos tratar as questões do cérebro e consciência. Falo do facto de Damásio ter um discurso fortemente contaminado pelas Artes e Ciências Sociais em conjunto com as Neurociências e a Biologia. Num tom académico e humilde Damásio consegue permear todas estas áreas, sem as sobrepor, num contínuo de coexistência e codependência, porque no fundo é como Damásio diz, quando falamos de cérebro, falamos de Vida.

Logo a abrir a entrevista, uma afirmação rápida deixou-me a reflectir, Damásio refere-se ao Teatro e ao Cinema como "artes complexas", em face das clássicas Pintura, Escultura e Música. Em parte isto deve-se ao facto de o Teatro e o Cinema serem artes de síntese das artes ditas clássicas, e por isso em termos de produção requererem conhecimento não apenas da arte em si, mas também das anteriores. Mas é interessante como continuamos ainda assim a assistir a algum desdém por parte do meio das artes clássicas face a estas. Julgo que pode estar relacionado com algum purismo face aos discursos, a singularidade de cada uma destas, e isso pode explicar também em certa medida a relutância em aceitar os videojogos como arte. Por isso escrevi aqui há algum tempo o texto “A singularidade da linguagem dos videojogos" e ainda por estes dias escrevi a propósito da multiplicidade de especialistas requeridos para se criar um jogo como "The Last of Us".

Ao longo da entrevista Damásio vai tocando o tema da criatividade, já que ele é director do Brain and Creativity Institute da USC. Gosto da abordagem que faz quando coloca a Criatividade a par da Memória e da Imaginação, defendendo que não existe criatividade sem memória, porque a criatividade emerge através de um processo de colagem, de "montagem cinematográfica", das memórias que preexistem em nós. Isto vem de encontro ao que ando a defender há muito, a propósito da ideia de que a criatividade se encontra no remix. E é por isso que quando leio algumas tiradas levianas como as de Umberto Eco, defendendo que não é importante as crianças saberem história porque o Google lhes diz quem fez o quê e quando e que o que é importante é saber filtrar a credibilidade de páginas web, me arrepio.
“a memória é absolutamente indispensável para que exista criatividade… é do facto de poder relembrar e manipular imagens que nasce a nossa fonte criativa… as memória são imagens, não visuais, são representações mentais…” Damásio na entrevista
Damásio defende a uma certa altura uma visão humanista da ciência. Uma ciência que se preocupa com a cultura humana, que para perceber o que temos hoje, investiga o que tivemos no passado, uma ciência que se preocupa com os problemas de forma longitudinal e em profundidade. Porque não quer uma ciência que apenas está preocupada em resolver problemas, em realizar avanços tecnológicos por realizar, porque como ele diz, nem toda a ciência é boa e “é possível fazer ciência que é horrível”.

Isto vem de encontro ao que Morozov tem defendido e vem apelando, que não se embarque na ideia do progresso inevitável da tecnologia, da obrigatoriedade de nos adaptarmos aos efeitos da tecnologia. Pode ler-se sobre isto no seu último livro, "To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism" (2013) (farei a análise do mesmo aqui em breve). Nesta sintonia entre Damásio e Morozov, que pode parecer complexa e paradoxal, defendermos que a ciência tem limites, ajuda-nos a relembrar que o mais importante é aquilo que defendemos enquanto seres humanos, e não ideias no abstracto por mais lógicas que nos possam parecer.

"Entrevista com António Damásio" (2013) por Fronteiras do Pensamento e Instituto CPFL

Na senda desta abordagem ao mundo e à ciência, Damásio fala dos problemas das "dores morais", ou da depressão, e relaciona-as com "a velocidade a que a informação e a cultura entram no nosso cérebro" nos dias de hoje, para nos relembrar que "não fazemos a mais pequena ideia se isto é bom ou mau", porque teremos de estudar as consequências de tudo isto ao longo dos próximos anos. Uma opinião de enorme sensatez, como seria de esperar, e que vem mais uma vez de encontro a algumas ideias que me venho interrogando muito sobre a questão da velocidade da sociedade de informação e comunicação.

Penso desta mesma forma porque quando me aproximo da ideia de culpar a velocidade atual a propósito do excesso de entropia, percebo que no passado as coisas não foram tão lentas como pensamos, porque não estamos a comparar realidades, mas antes a realidade que vivemos atualmente com representações da realidade que fomos construindo a partir da cultura sobre esse passado. Por outro lado, sabemos também que passámos por imensos estádios de desenvolvimento tecnológico, nomeadamente nos últimos 200 anos, mas que soubemos sempre adaptar-nos.

Agora essa adaptação não quer simplesmente apenas dizer que a tecnologia seguiu o seu rumo, e nós aceitámos, e evoluímos, mas antes que soubemos adaptar o mundo, as tecnologias e nós próprios em função daquilo que seria melhor para a espécie. Ou seja, o tal processo de "homeóstase sociocultural" de que Damásio fala, em que muitos de nós podem contribuir para fazer evoluir e progredir a ciência e tecnologia, enquanto muitos outros contribuem para reflectir, criticar e chamar à razão sobre a mesma. Por isso mesmo é que não podemos apostar tudo apenas na Ciência e Tecnologia, precisamos das Artes e Humanidades para contrabalançar, precisamos de ouvir vozes dissonantes, de ouvir diferentes pontos de vista sobre cada inovação, sobre cada avanço, para podermos evoluir sim, mas de forma equilibrada.