agosto 07, 2021

Camus e a hipótese científica de Marx

Excertos do livro "O Homem Revoltado(1951) de Albert Camus, capítulo III. A Revolta Histórica

"a crença de Marx verificou-se: o reformismo e a ação sindical conseguiram uma subida nos níveis de vida e uma melhoria das condições de trabalho (...)

Mas a condição de pobreza dos operários ingleses da indústria têxtil, na época de Marx, em vez de alastrar e se agravar, como ele previra, pelo contrário foi sendo absorvida. (...)

De facto, pudemos constatar que a ação revolucionária ou sindical mais eficaz teve sempre origem em elites operárias que a fome não castrava. 

(...)

a classe proletária não cresceu indefinidamente. As próprias condições da produção industrial, que qualquer marxista deveria encorajar, aumentaram de maneira considerável a classe média, e criaram mesmo uma nova camada social, a dos técnicos. O ideal, tão caro a Lenine, de uma sociedade na qual o engenheiro fosse ao mesmo tempo operário, chocou, no entanto, com os factos. A razão principal reside no facto de, sob este aspeto, tanto a técnica como a ciência se terem complicado de tal modo que não é possível um homem sozinho conseguir abarcar a totalidade dos seus princípios e aplicações. (...) Cada trabalhador foi levado a realizar um trabalho particular, sem conhecer o plano geral no qual a sua obra estava inserida. Os que coordenavam os trabalhos de cada um constituíram, pela sua função específica, uma camada cuja importância social é decisiva.

(...)

Economicamente, o capitalismo é opressor devido ao fenómeno da acumulação. Ele oprime pela sua própria condição, acumula para incrementar essa condição, explora cada vez mais e, à medida que isso acontece, mais ainda acumula. Marx só conseguia imaginar um fim para este ciclo infernal — a Revolução. (...)

Mas, por sua vez, a revolução industrializa-se e apercebe-se, então, de que a acumulação tem a ver com a própria técnica e não com o capitalismo, que, por fim, a máquina apela à máquina. Qualquer entidade coletiva em luta tem necessidade de acumular, em vez de distribuir os seus lucros. Acumula para se incrementar e incrementar o seu poder. Burguesa ou socialista, ela remete a justiça para mais tarde, em benefício apenas do poder. Mas o poder opõe-se a outros poderes. Ela equipa-se, arma-se, porque os outros se armam e se equipam. Não cessa de acumular e não irá cessar, provavelmente, até ao dia em que apenas ela governe o mundo. Aliás, para isso vai precisar de passar pela guerra. Até esse dia, o proletário mal receberá aquilo de que precisa para a sua subsistência (...)

O rendimento é substituído pela dor humana. A partir desse momento, a escravidão generaliza-se, as portas do céu permanecem fechadas.

(...)

Por sua vez, esta [utopia marxista] transformou-se num facto histórico para ser utilizado como todos os outros. Quis dominar a história, perdeu-se nela. Quis subjugar todos os recursos, ficou reduzida à condição de recurso, e cinicamente foi manobrada pelo mais banal e mais sangrento dos fins. O desenvolvimento ininterrupto da produção não arruinou o regime capitalista em favor da revolução. Arruinou, simultaneamente, a sociedade burguesa e a sociedade revolucionária (...)

Como é que um socialismo que se dizia científico pôde, deste modo, colidir com os factos? A resposta é simples: não era científico.

O seu fracasso está associado, pelo contrário, a um método demasiado ambíguo para poder ser ao mesmo tempo determinista e profético, dialético e dogmático (...) 

Se a teoria é determinada pela economia, ela pode descrever o passado da produção, mas não o seu futuro, que permanece apenas como provável. A tarefa do materialismo histórico consiste unicamente em elaborar a crítica da sociedade atual; em relação à sociedade futura, sem faltar ao espírito científico, só conseguirá fazer suposições.

Marx e os marxistas deixaram-se ir atrás de profecias sobre o futuro e o comunismo, em detrimento dos seus postulados e do método científico. (...)

Depois de Marx, o progresso da ciência consistiu, essencialmente, em substituir o determinismo e o mecanicismo bastante rudimentar do seu século por um probabilismo provisório. (...)

Atualmente, o marxismo só será científico se estiver contra Heisenberg, Bohr, Einstein e os maiores cientistas do nosso tempo. 

(...)

O único recurso dos marxistas consiste em afirmar que os atrasos se tornaram mais longos e que é preciso esperar, já que os fins justificam os meios, por um dia ainda impercetível. O mesmo é dizer que estamos no purgatório e que nos prometem não haver inferno. (...)

Portanto, é introduzida arbitrariamente uma noção mística numa descrição que se desejava científica. O desaparecimento último da economia política, tema preferido de Marx e de Engels, implica o fim de qualquer dor. De facto, a economia coincide com o sofrimento e a infelicidade da história, que com ela desaparecem. Estamos no Éden. (...)

Neste plano, o marxismo só se justifica através da cidade definitiva. Essa cidade dos fins terá, portanto, sentido? Tem um sentido no universo do sagrado, quando se admite o postulado religioso. O mundo foi criado, terá um fim; Adão saiu do Éden, a humanidade deverá voltar para lá. Mas não tem sentido no universo histórico, quando se admite o postulado dialético. A dialética aplicada corretamente não pode e não deve terminar.

Os termos antagónicos de uma situação histórica podem negar-se uns aos outros e depois serem ultrapassados através de uma nova síntese. Mas não há razão para que essa nova síntese seja superior às anteriores — a não ser que, arbitrariamente, se imponha um fim à dialética, introduzindo-lhe um juízo de valor vindo de fora. 

(...)

Neste sentido, é válido afirmar que a dialética não é nem pode ser revolucionária. Do nosso ponto de vista, ela só pode ser niilista, puro movimento que pretende negar tudo o que não seja ele próprio. Não existe, pois, neste universo, qualquer razão para se imaginar o fim da história. No entanto, seria a única justificação para os sacrifícios pedidos à humanidade, em nome do marxismo. 

(...)

Marx limitou-se a compreender que uma religião sem transcendência se denominava política."

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