julho 04, 2021

A Universidade, hoje e amanhã

O Expresso escrevia ontem que existe uma “revolução em curso nas universidades: menos teoria, mais prática e ensino à distância” e suporta essa ideia numa afirmação de um reitor de uma universidade portuguesa: 

“Não podemos continuar a dar as aulas como fazemos há 50 anos, porque hoje lidamos com jovens que são nativos digitais e que têm uma mentalidade completamente diferente. Muitas instituições vão definhar se não se adaptarem às novas tendências a nível da metodologia, da organização dos currículos e da evolução tecnológica.” Amílcar Falcão, reitor da Universidade de Coimbra, in Expresso, 3 julho 2021

O Expresso legenda esta imagem assim: "A imagem de um anfiteatro cheio de alunos a ouvir um professor pertence cada vez mais ao passado."

A história dos “nativos digitais” — conceito criado em 2001, e desde então múltiplas vezes demonstrado como mito e falácia, inclusive pela própria OCDE — já seria suficiente para desacreditar tudo o resto, mas falar em mudanças e diferenças cognitivas que são a essência do que nos caracteriza enquanto espécie Sapiens é frustrante, e como cereja, não ser dito pelo jornal, mas pela boca de um reitor português. A Psicologia, ou mesmo a Educação, explicam, mas talvez mais evidente seja mesmo a análise da História, para o que deixo um pequenino trecho:

“Mas até que ponto mudou a natureza humana no decurso da história? Teoricamente, deve ter havido alguma mudança; a selecção natural operou presumivelmente com base em variações psicológicas bem como fisiológicas. No entanto, a história conhecida mostra pouca alteração na conduta da humanidade. Os gregos da época de Platão comportaram-se muito como os franceses dos séculos modernos; e os romanos comportaram-se como os ingleses. Os meios e as instrumentalidades mudam; os motivos e os fins permanecem os mesmos: agir ou descansar, adquirir ou dar, lutar ou recuar, procurar associação ou privacidade, acasalar ou rejeitar, oferecer ou ressentir-se dos cuidados parentais. A natureza humana também não muda entre classes: de um modo geral, os pobres têm os mesmos impulsos que os ricos, com apenas menos oportunidades ou habilidade para os implementar.” Will and Ariel Durant, (1968) "The Lessons of History", Simon & Schuster

Já agora as aulas não funcionam assim há 50 anos, funcionam assim há quase 1000 anos, Bolonha foi criada em 1088. Mas tanto os romanos como os gregos, há 2000 anos, já davam aulas desta forma, como ainda em março aqui dava conta no texto: "Contra a demonização da Aula", para o qual produzi o esquema abaixo que dá conta da diferença entre aulas "teóricas" e "práticas", evidenciando que não existem umas sem as outras. 

A diferença e relevância das aulas "teóricas" e "práticas". Março, 2021

Eu sei que muito deste discurso tem como fundamento a contabilidade financeira, a ideia de que estar à frente dos outros nos pode trazer retorno, principalmente se quem nos ouve não percebe o que está a ser dito, mas também por isso me entristece mais, que se assuma este estado de coisas de forma inevitável.

 “Ninguém, por mais brilhante ou bem informado que seja, pode chegar numa vida a uma compreensão tão completa que julgue e desvalorize com segurança os costumes ou instituições da sua sociedade, pois estes são a sabedoria de gerações após séculos de experiências no laboratório da História (...) É bom que novas ideias sejam ouvidas, para bem das poucas que podem ser utilizadas; mas também é bom que novas ideias sejam compelidas a passar pelo moinho da objecção, oposição e contumácia; este é o calor experimental que as inovações têm de sobreviver antes de serem autorizadas a entrar na raça humana.” Will and Ariel Durant, (1968) "The Lessons of History", Simon & Schuster

Por outro lado, pior mesmo não é o uso de conceitos erróneos, mas antes os problemas que estes potenciam, nomeadamente com a tal “preparação para o mercado”, esquecendo que a Universidade não é um Centro de Formação. Porque se é isso que se espera que ela possa vir a ser, então não é necessária. Já pensaram para que existe a Universidade? Não é com certeza para formar técnicos no uso de ferramentas atuais, pois para isso já temos os Cursos Profissionais, e bem. A formação profissional é fundamental na sociedade, e central para o progresso de um país, mas tal não invalida a existência da Universidade.

A Universidade existe para agenciar estruturas cognitivas nos estudantes, para fundar competências de autonomia no pensar, no aprender a aprender, pois só dessa forma poderão ser trabalhadores no amanhã. A função da aprendizagem universitária é providenciar a elevação cognitiva para poder lidar com o conhecido, mas acima de tudo com o desconhecido. Isso não se faz pela prática, já que não se pode praticar o que não se conhece, isso faz-se pelo exercitar das funções humanas de análise e interpretação da realidade, recorrendo ao conhecimento que detemos sobre a realidade hoje para alimentar as nossas competências no questionamento do que podemos vir a saber amanhã.

2 comentários:

  1. Claro que há sempre a possibilidade de um artigo/livro escrito em 1968 se encontrar desactualizado mormente no que há era digital diz respeito, mas como se trata da marcha da mentalidade ao longo dos séculos, já encontra algum respaldo.
    O reitor fala em alterações de métodos, currículos e tecnologia e o artigo que o Nelson refere debruça-se mais nos aspetos cognitivos e natureza humana, o que a meu ver não são antagónicos, antes se complementam.
    Obrigado por mais um excelente artigo.

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  2. Olá Joaquim,

    Atenção que ele fala de métodos, mas evoca a ideia de que houve uma alteração cognitiva nos novos alunos — "nativos digitais" — , produzida pelo digital. E é exatamente isso que contraponho como tendo sido desmontado por vários estudos, não de 68, mas bem recentes, o texto da OCDE ali referenciado é de 2020.

    O texto de 68 que evoco serve apenas para chamar a atenção de algo que tendemos a menosprezar, que é a nossa História. Queremos sempre acreditar que fazemos diferente, mais e melhor, quando no fundo passamos grande parte das nossas vidas a repetir o que fizeram as gerações anteriores. E é exatamente por isso que quis evocar, a História, porque podemos aprender com ela. Não precisamos de ir atrás do último grito do conhecimento, para compreender algo, a História tem também muito para nos ajudar a compreender o mundo em que vivemos.

    obrigado e um abraço

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