dezembro 01, 2021

A manipulação de Gottschall

Não posso chamar livro a algo que não passa de um emaranhado de ideias e frases coladas juntas para manipular quem lê "The Story Paradox" (2021). Nem sequer posso dizer que Jonathan Gottschall conte uma história, porque contar uma história implica coesão e unidade discursiva, e aqui temos tudo menos isso. Gottschall agarra em tudo de todo o lado — diversas áreas científicas, tecnológicas e culturais — que possam de algum modo suportar as suas premissas, e monta um castelo de cartas para vender as sua ideias. Só esqueceu que a retórica para funcionar precisa de Ethos, não chega lógica e emoção. É quase doloroso ver Gottschall, alguém que ensina no ensino superior, usar trabalhos de múltiplos colegas, que estão relacionados com questões concretas, que ele cita distorcendo ou convocando os resultados para o que lhe interessa, apenas para oferecer prova de autoridade ao discurso que constrói. A isto chamamos discurso manipulativo, sem qualquer respeito pelos leitores. Se no seu livro anterior, "The Storytelling Animal" (análise VI), já se sentia muito disto, e que na altura considerei como "abordagem absolutista", neste novo livro além de não vir acrescentar nada, a abordagem resvala para a tentativa de inculcar o medo e o pânico esperando com isso atrair as luzes para a venda de mais livro.

Podemos começar desde logo pelo citar do trabalho de Clifford Nass de Byron Reeves, diga-se que com mais 30 anos, a Media Equation, que nos fala da relação que estabelecemos com os media — o rádio, a televisão, mas que fizeram estudos só com computadores. E o que diz Gottschall sobre esse trabalho:

“So when we see convincing images of humans or convincing simulations of human life in stories, our brains reflexively process them just like the real thing.”

Mas Nass e Reeves não falavam de histórias. O trabalho deles demonstrava uma tendência no tratamento dado aos computadores pelos humanos. As pessoas, com o passar do tempo vão construindo uma relação com as máquinas, como se fossem humanos verdadeiros com quem pudessem dialogar e interagir, chegando a reagir diferentemente se a mesma mensagem surgir em computadores diferentes.

Gottschall segue apresentando trabalhos no domínio do storytelling, construídos com base em muitas conjecturas e interpretação como se de evidências se tratasse. O autor não compreende que o contar de histórias é uma arte, e não uma ciência, e mistura tudo, como se bastasse fazer um estudo com 20 ou 30 pessoas para ter evidências.

“narrative transportation—possibly the most important concept in story science (...) When transported, we partially decouple not only from the real world but also from ourselves. We identify so strongly with the protagonist of a good story that we leave our personal baggage behind—our preconceived notions, our dumb prejudices. And we’re able to see life from the perspective even of people very unlike ourselves.”

Dizer que o conceito de narrative-transportation de Melanie C. Green, mais um com mais de 20 anos, é não só o mais importante como é científico, no sentido de apresentar evidência replicável, é um claro excesso, que se torna preocupante quando depois usa esse mesmo conceito como central para explicar tudo o que quer dizer. Não que no domínio da narrativa não descrevamos os processos desta forma, mas não podemos chamar aos mesmos ciência efetiva. Sim, os estudos demonstram uma relação forte entre o humano e as histórias, todos sabemos que assim é, porque todos percebemos que enquanto estamos a ouvir uma história esquecemos o mundo, algo que não é diferente de quando estamos a ver um jogo de futebol, ou de quando estamos a jogar Tetris, ou de quando estamos a passear por uma montanha, ou quando simplesmente estamos a fazer uma qualquer atividade humana que nos dá prazer. Por isso mesmo, o conceito de "narrative transportation" se transmuta em função do autor que descreve a experiência sensorial em questão, podendo tratar-se a mesma como: Identificação; Empatia; Imersão; Flow; Presença; Engajamento; ou o mais comum nos dias de hoje e que envolve todas estas, Experiência.

Se livro tem problemas graves, acho ainda mais grave o mesmo ser apresentado com frases pomposas de académicos reconhecidos, mas sem trabalho na área, que quase de certeza nem sequer leram o livro, mas se dispõem a dizer umas palavras para ajudar as vendas do colega, na esperança de ver esse favor reconhecido mais tarde.

Todos estes adjetivos usados na qualificação da experiência narrativa são no fundo qualificadores da Experiência Humana que é algo extremamente subjectivo, que pode ser estimulada por design, mas depende essencialmente do ser humano, das suas experiências prévias da realidade, ao contrário do que diz o autor ao argumentar que no processo "deixamos para traz a nossa bagagem pessoal -- os preconceitos". A experiência não é algo replicável de ser-humano para ser-humano, antes é distinto de ser-humano para ser-humano. Ou seja, não podemos falar de ciência, porque estamos a falar de arte e subjetividade. Podemos interpretar, podemos discutir as experiências, qualificá-las, criticá-las, aprofundá-las, enriquecê-las pelo diálogo, até fazer estudos sociais procurando padrões comportamentais, mas não podemos afirmar que a mesma se repete de pessoa para pessoa de modo exatamente igual.

“In other words, strong storytellers do end runs around the brain’s processes for sifting and evaluating claims. They can implant information and beliefs—often quite strong ones—without any rational vetting.”

Gottschall diz aqui que porque uma história consegue transportar alguém para um determinado universo experiencial, esta pode fazer com que as pessoas pensem o que o seu criador quer, usando os estudos sobre histórias de forma enviesada. Enfim, Gottschall assume que os seres humanos são recipientes sem pensamento crítico, nem experiência prévia do mundo. 

Naturalmente que as histórias podem ser usadas como parte de um processo de manipulação, positiva ou negativa. É verdade que nas últimas décadas muitos se têm virado para o storytelling à procura de milagres disruptivos nas suas necessidades de comunicação e gestão humanas. Mas isso é mais moda do que outra coisa. As histórias são meros processo organizativos de informação e comunicação, que têm funções muito concretas, não são panaceia, como não são os jogos e a gamificação, outra grande moda.

A prova de que as Histórias não conseguem fazer alguém pensar o que queremos, e com isso serem responsáveis pelo derrubar de governos ou alterar de eleições está patente no próprio guia da propaganda de Goebbels que tem como lei: "Se repetir uma mentira com frequência suficiente, ela torna-se aceite como verdade". Ou seja, a persuasão não acontece pelo poder da história, mas pelo poder da repetição. Aquilo que a Rússia fez nas eleições americanas e continua a fazer em todo o mundo, tal como a China, é produzir informação em modo massivo com ideias contrárias, na esperança de lançar a confusão e o caos. Eles sabem que não conseguem fazer as pessoas pensar o que querem. Por isso a táctica passa pelo engendrar de confusão e descrença em toda a informação. Trump tentou o mantra de Goebbels gritando que as eleições tinham sido roubadas, mas sem sucesso porque prevaleceu o espirito crítico e a experiência prévia do aparelho de estado, o que dá razão a alguns que defendem que nem sequer o mantra de Goebbels se sustenta, pois sem a força do estado para impor a mentira, nem a repetição é suficiente. 

Aliás, veja-se o que a China está a fazer com os Uighurs para conseguir implantar ideias, o uso da força é essencial. Por outro lado, mesmo quando é usada informação para persuadir e manipular, essa está longe de ser constituída por histórias apenas. A informação é dotada de descrições, exposições, argumentações, diálogos, metáforas, analogias, etc. etc. Dizer que tudo o que se diz é uma história, é exagerar totalmente o sentido do que podemos definir como história. Sim, num sentido lato, ou de conversa de café, podemos até dizer que tudo são histórias, mas esse é um discurso que não faz sentido na hora de uma análise séria.

Repare-se na diferença discursiva entre os diferentes modos de comunicação. As histórias são muito boas a falar do concreto, individual e relacional. Mas são muito más na exposição de ideias abstractas, assim como são muita fracas na transmissão de conhecimento estruturado. Porque nas histórias o que importa é apenas aquilo que acontece a um personagem, e os seus momentos emocionais através dessa jornada particular. Ninguém quer ler uma explicação sobre o que acontece dentro de um reator nuclear do ponto de vista da Física, as pessoas querem apenas saber o que aconteceu às pessoas que estavam na central nuclear na hora do desastre. O recetor de histórias não quer explicações detalhadas sobre os processos que conduzem a uma nova descoberta científica, ou que explicam porque está a acontecer o aquecimento global. As histórias funcionam porque se focam apenas num protagonista, como tendo sido ele o eleito, e a solo, a ver a luz. O foco está todo no individual, no imediato, para sustentar a identificação do recetor. É mais importante a família, os filhos, as esposas ou os pais, que humanizam a pessoa, do que os colegas de profissão que contribuíram para chegar a ao conhecimento, algo abstracto. Porque as histórias são drama, são vida humana espelhada em que os leitores procuram modelos e modos de viver a própria vida. Obviamente que posso montar histórias de terror e assustar as pessoas com o que conto, mas isso não torna ninguém automaticamente defensora de uma ideia ou outra, só porque sentiu medo ou compaixão ao ver uma história, ainda que no momento imediatamente a seguir esse sentimento possa estar ao rubro. É preciso muito mais para manipular seres-humanos. 

Por outro lado, usar os média como sinónimos de histórias também não tem sustentabilidade. Um filme é muito mais do que uma história, basta olhar para a equipa técnica e ver que no meio de 100 a 200 pessoas, normalmente temos apenas um guionista. Para quem olha para um filme, de forma não técnica, conta aparentemente apenas a história que está a ser contada. Mas se analisada a questão com as pessoas, vamos perceber que em muitas das vezes o que faz a diferença são os atores ou até os efeitos especiais, entre muitas outras coisas. Já agora, olhar para a televisão como mera produtora de histórias é reduzir o discurso humano a nada, já que naquela caixa passam todo o tipo de abordagens humanas à estruturação de informação: da conversação à argumentação, da demonstração à visualização, da exposição à descrição. Não podemos pegar na informação e dizer que porque ela está a ser emitida por um ser humano é automaticamente um processo de narração.

Mas pronto, quando o autor vai buscar os trabalhos de Paul Zak e começa a dizer que através de polígrafos os cientistas conseguem prever o futuro, percebemos que a realidade há muito descolou do universo de Gottschall. E na verdade, isso estava patente no início quando dizia usar o termo narrativa e história como se fossem a mesma coisa, percebendo-se que não estava interessado em qualquer aprofundamento da arte do storytelling, mas apenas em criar barulho para gerar impacto. Aliás a profusão de adjetivos como — "assustador", "aterrador", "lavagem cerebral", "medo", "controlo" — define bem quais as intenções do livro. Tive de parar antes de chegar a meio porque a irritação já estava a perturbar a minha sanidade.


Atualização, 4 janeiro de 2021

Para que não fique a ideia de que tenho algo contra Gottschall, deixo o link para a análise do livro, publicada na semana passada no NYT, por Timothy Snyder, professor de História da Universidade Yale. A crítica é tão selvagem que não conseguimos parar de rir até ao final. 

Sem comentários:

Enviar um comentário