agosto 08, 2021

Aprender a arte ou o ofício? (The Secrets of Story)

Matt Bird fez um mestrado em guionismo na Universidade de Columbia, pelo qual pagou 60 mil dólares, passado um ano, quando se apresentou num estúdio para fazer o seu primeiro trabalho de escrita, pediram-lhe para realizar uma tarefa e ele entrou em pânico. Nunca tinha ouvido falar de “introduções de personagens” em séries de televisão, não fazia ideia do que era suposto fazer. Passados alguns anos, escreveu o livro “The Story Secrets” (2016) para, segundo ele, explicar como se fazem essas introduções, e para dizer que o mestrado da Columbia não tinha passado de uma “ilusão”, um “acampamento de fantasia”, mesmo uma “fraude”. Antes de falar sobre o que é o livro de Bird quero falar sobre o que é um mestrado, já que o que aqui se discute faz parte dos grandes equívocos sobre o Ensino Superior.

"Os meus professores tinham-me dito que eu era um grande escritor, então porque é que isto era tão difícil? Porque não conseguia fazer isto? Porque não tinha estas competências? Mas o que realmente me marcou neste incidente foi a terrível constatação de que, apesar da minha educação de luxo e de todos os elogios que me tinham feito, não sabia realmente o que estava a fazer. De todo". Matt Bird

Tenho aqui escrito sobre o ensino superior e aquilo que o distingue do ensino técnico ou profissional. Sobre a diferença entre formar-se enquanto indivíduo que domina um conjunto de conceitos abstratos a partir dos quais pode continuar a evoluir sozinho, e aprender um conjunto de truques que permitem a realização de tarefas específicas. O próprio o autor o diz, apesar de não perceber a importância do que diz:

"Eu tinha aprendido a arte, mas não o ofício.Matt Bird

Numa oficina profissional aprendo os truques do ofício (craft). Aqueles que aprenderia se trabalhasse diariamente com os artesãos da área, mas porque nem todos têm hipótese de trabalhar com esses artesãos, porque muitos trabalham a solo, ou trabalham em equipas sem pessoas altamente experientes que possam imitar, resta-lhes a realização destas oficinas. O modelo mestre-aprendiz é a matriz essencial da oficina (ver Guildas), mas é algo que deveria acontecer em modo contínuo. A melhor forma de aprender os truques de qualquer tarefa, atividade ou profissão não é ouvindo alguém explicar (nem ler um livro, já lá iremos) é vendo fazer, experimentar, errar, ouvir explicações sobre o porque não funcionou, voltar a tentar, errar, voltar a ver como se faz, continuar até que a experiência ultrapasse a deficiência das ações. 

Fazer um mestrado em guionismo não é o mesmo que fazer uma oficina de escrita. Um mestrado, como ciclo de estudos avançados, foca-se na problematização de ideias intrínsecas a uma área de conhecimento ou a uma arte (não enquanto belas artes, mas enquanto profissão). O mestre deve ser formado com base no núcleo do conhecimento que suporta a arte — seja a escrita de guiões, seja a programação de computadores, etc. — na expectativa de o preparar para os futuros desenvolvimentos das mesmas. Se hoje pedem para fazer introduções de personagens para um piloto de televisão, ou pedem para programar em C++, amanhã poderão pedir para fazer o tratamento XYZ de personagens para realidade virtual, ou para programar em ZYX. Um mestre tem de dominar os conceitos nucleares da arte, de modo a ser capaz de funcionar em qualquer meio, em qualquer lugar e em qualquer época. Como nos diz Rosemary Barnes, licenciada em Engenharia e Artes, com um major em Filosofia: 

"as competências de "pronto para o trabalho" que aprendi na universidade são as mesmas competências que rapidamente se tornaram desactualizadas (...) quinze anos após a minha  formação, essas competências já não são relevantes. Campos técnicos como a engenharia movem-se rapidamente e, como profissional, é preciso ser capaz de aprender e adaptar-se rapidamente para se poder manter actualizado. Mas porque aprendi a aprender, e tenho uma boa base teórica em física e matemática, sou capaz de me manter actualizada no meu campo em constante evolução." Barnes, ABC, 2020

Ou seja, o avanço em ciclos de estudos, do liceu para a universidade, da licenciatura para o mestrado e doutoramento, não deve ser visto como uma diversificação em competências do “conhecimento como”, conhecimento prático ou saber-fazer, mas no aprofundamento das competências “conhecimento quê”, conhecimento teórico que explica os fundamentos das técnica e tecnologia. Para o efeito, não se pode esperar que num mestrado a essência da aprendizagem ande à volta da realização de exercícios de mímica ou simulação de qualquer profissão, a aprendizagem tem de se deter sobre a essência do que suporta essa profissão.

Obviamente que a pressão aumenta e as universidades tendem a ceder. Isto é, quem procura formação superior, não vai propriamente à procura de se formar como indivíduo mais autónomo e capaz de pensar uma área, preparando-se para o futuro. Vai à procura de um conjunto competências que o tornem mais competitivo no mercado de trabalho no imediato. É isso que a sociedade exige, e por sua vez pressiona os governos e as próprias universidades. Este ciclo de pressão, entre o que a sociedade quer e o que a universidade deveria oferecer, cria uma espécie de ouroboros, em que a universidade tende a deixar-se comer, mas com ela leva por arrasto os estudantes e a própria sociedade. Repare-se que Matt Bird, depois de dizer com todas as palavras que foi enganado, continua a apresentar-se em todo o lado como graduado em Screenwriting pela U. Columbia. Porque a sociedade reconhece essa instituição como Universidade de referência, e enquanto tal possibilitadora de valor acrescentado, mesmo quando o próprio não reconhece nela qualquer valor.


Voltando ao livro de Matt Bird, aquilo que ele pressupõe estar a fazer com o mesmo, desvendar os segredos do guionismo, aqueles que o mestrado nunca lhe revelou, acaba resultando num imenso emaranhado de ideias. Basta ler os títulos de capítulos como “As 13 Leis Essenciais da Escrita” ou “A Verdadeira Lista de Inspeção de Histórias”, para percebermos que estamos perante uma sucessão infinita de problemas e tentativas de respostas. Claro que quem lê pode retirar algumas ideias que lhe poderão servir um dia, se por acaso conseguir recuperar essa informação da memória, mas na generalidade, e o mais provável, passadas duas semanas já não se lembrará de nenhuma lei, ou de nenhum dos itens de inspeção de histórias. Por um lado, porque a nossa memória esquece grande parte do que lê, para o que contribui ainda mais o facto de se estar a descrever ações, algo tedioso que tende a empurrar o leitor para a leitura na diagonal. Mas em essência, porque a resolução de problemas não se aprende por meio de listas, sejam leis, regras ou guias. Aprende-se exercitando, problema atrás de problema, repetindo, questionando e recebendo feedback de quem passou por lá antes (ver o livro Código do Talento).

Porque qualquer arte-profissão é feita de uma miríade de pequenos problemas não passíveis de etiquetar e ensinar a alguém por meio de livro ou mera exposição oral. Mais, não se aprende a fazer, fazer realmente com qualidade profissional, qualquer coisa ao fim de um semestre, em que se teve 45 horas de aulas sobre um tema. São precisas milhares de horas de investimento para dominar qualquer arte corretamente (ver o livro Talento é Sobrestimado) .

Bastaria pensar no que precisamos de aprender para andar de bicicleta, e depois na dificuldade que enfrentamos quando o queremos ensinar a alguém. E com certeza, ninguém quer ler um livro com centenas e centenas de detalhes sobre o funcionamento de rodas dentadas, correntes, aros, pneus e suas câmaras. Mas se alguém quiser inovar no desenho de bicicletas, poderá ser necessário aprofundar a física do movimento circular uniforme, ou compreender como funciona o sistema vestibular humano, entre múltiplos outros conhecimentos teóricos que nos ajudam a especular e a perspectivar realidades novas, distintas das que já conhecemos. Porque é inovação que se espera de alguém que é Mestre em alguma coisa, não que crie histórias iguais às que Hollywood já cria.

Como ironia final, Bird apresenta como capítulo de conclusão, a que chama de “Regra Final”, o mesmo ditame que os seus professores da Universidade de Columbia lhe tinham passado e ele tinha considerado uma ofensa: "Não sigam nenhuma regra sobre escrita". Em contrapartida, e também para fechar, concedo que nem todos na universidade estarão devidamente preparados para ensinar a arte, assim como pagar 60 000 dólares deva ser motivo de revolta para qualquer um.

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