julho 14, 2021

Sistematizar é diferente de Inventar

Este livro, "The Pattern Seekers: How Autism Drives Human Invention" (2020), deixou-me com impressões mistas, se por um lado compreendo o esforço de Baron-Cohen na tentativa de contribuir para uma sociedade mais inclusiva — a integração de pessoas com autismo — por outro lado, o modo como o faz, seguindo o culto de algumas valências cognitivas, que estão por acaso neste momento na mó de cima — os criadores de tecnologias digitais — acaba por fazer parecer que se posiciona num dos lados da barricada, e assim no esforço e defesa pela inclusão acaba tornando-se discriminador dos que não possuem essas competências. Por outro lado, muito do discurso aqui apresentado é feito com base em muitas impressões suas apenas, ainda que detentor de muitos estudos na área do autismo, tal não lhe oferece suporte à definição do que são processos de invenção e criatividade. Por fim, uma boa parte da discussão no livro é repescada daquilo que tem vindo a dizer ao longo dos últimos 20 anos, acrescentando pouco de novo. 

Baron-Cohen começa por dar conta de casos de dois casos com autismo extremo, explicando como estes processam a realidade, os problemas que apresentam na relação com os outros, e simultaneamente as competências que desenvolvem no domínio do pensamento abstrato, nomeadamente as competências de sistematização que se relacionam com o cálculo e a programação de computadores. Nesse sentido, e a partir do modo como raciocinam os autistas extremos apresenta um modelo mental que não difere muito do modelo base do processamento de informação na computação. Ou seja, a modelação da realidade em “If-and-then” não é muito distinta de “If-then-else”, apesar de ter as suas diferenças ainda que me pareçam exaberbadas por Baron-Cohen, mas já falarei disso.

Assim, o modelo “if-and-then” é um modelo que liga o processo de pensamento associativo com o teste experimental, do modelo científico, ou seja, quando eu vejo duas coisas acontecer juntas, e depois refaço a operação e volta acontecer de igual modo, verifico pela repetição que existe um padrão, e que posso usar esse padrão, replicando-o para situações futuras. Na imagem podemos ver o exemplo da invenção da Agricultura. O ciclo da programação “if-then-else”, é também um ciclo de associação e teste, pela comparação de variáveis e verificação da sua ocorrência, ou repetição, e apresentação de instrução a realizar a seguir. No fundo, estamos a falar de duas abordagens, próximas mas distintas, mas ambas dedicadas à Sistematização da informação ou da realidade.


O Problema

Esta sistematização em si não tem qualquer problema, o problema surge quando Baron-Cohen tenta definir este processo como um processo de invenção humana. Ou seja, Baron-Cohen pela força de querer demonstrar a mais valia das capacidades dos autistas, tenta oferecer-lhes uma saída com fundamento financeiro e de grande empregabilidade — criatividade e invenção — mas estes são processos que não se encontram aqui.

Desde o início do livro, em que Baron-Cohen repesca a diferenciação entre Sistematizadores e Empatizadores (ver imagem abaixo), que definiu há 20 anos e que tem usado desde então, que senti que algo não estava certo. Um sistematizador não é um inventor, pode ser, mas a sua natureza tendencialmente não é essa. No meu livro sobre o Design de Engajamento, defino três grandes perfis de interação humana — Progressão, Expressão e Relação. Assim, se o modelo “if-and-then” funciona bem para providenciar avanço, a Progressão no domínio de uma tarefa, na conquista de um objetivo, tal difere da Expressão, da criação do novo, daquilo que ainda não existe. Porque a criatividade não é um processo que procede da mera comparação e teste, embora possa acontecer assim, mas a essa criação chamamos de incremental, na qual se realizam apenas pequenos avanços no conhecimento existente. 

A criatividade enquanto promotora da inovação procura revolucionar o que existe, procurar quebrar com o status, com o que vem de trás, e buscar o novo. Para esse efeito a sistematização é requerida mas enquanto processo de aquisição de conhecimento, saber o que existia e como funcionava, para depois procurar o lateral, o oposto, a fusão. A criatividade brota do choque de ideias, não do mero associativismo destas. Mas em especial, a abordagem criativa surge da experimentação, da ausência de receio em experimentar o novo, em ir contra ideias consagradas, tudo nas antípodas de um sistematizador extremo que é acima de tudo um conservador, alguém habituado a aprofundar o sentido da regra e a segui-la.  

Aliás, o exemplo usado para elucidar o que é um sistematizador inventor é nada menos que Thomas Edison, o que me chocou particularmente por ser um dos grandes exemplos que uso para o perfil Expressivo Criativo (ver página 45 de Engagement Design). Edison não sistematizava, não se preocupava com as regras, nem condutas, era antes o protótipo do inventor, da pessoa que experimenta sem fim, usando as estratégias menos convencionais e os componentes impensáveis para ver se chega a algo que lhe interesse. Ele não planeava, não construía grandes sistemas de análise e gestão, as bases da sistematização, ele improvisava em cima do joelho, da bancada, a qualquer hora e em qualquer lugar, até conseguir chegar a algo com que a sua curiosidade se satisfazia. Era insaciável na busca pelo novo, pelo diferente, pelo não tentado ou experimentado. 

Mas se isto é cerne da proposta de Baron-Cohen nem por isso o livro se centra na tentativa de compreender estes processos, antes deambula para discussões em redor daquilo que faz surgir um cérebro mais sistematizante ou mais empatizante, discutindo experimentos sobre testosterona, sobre a percentagem de homens e mulheres em cada lado da barreira. Depois segue para um historiar do surgimento das competências cognitivas, tentando ombrear com Harari, e a seguir, ainda mais enfadonho, entra em toda uma discussão sobre daquilo que nos diferencia dos animais, que é completamente irrelevante para este assunto.

O relevante do livro: a defesa da neurodiversidade

O que importava aqui era perceber se o cérebro autista, na sua especificidade, poderia ser útil à sociedade, e pelos vários exemplos apresentados pode. Mais, estas pessoas conseguem ser hohe fundamentais numa série de domínios, como já vai sendo possível verificar no domínio militar e tecnológico. A sua capacidade para focar, organizar, tentar perceber no detalhe, mapear, no fundo sistematizar permite que tenham uma visão distinta da realidade, nomeadamente quando comparados com as pessoas mais empatizadoras, ou as ditas "normais" que gerem as duas abordagens de forma mais equilibrada. Claro que não é simples, nem direto. As valências dos autistas vêm com o custo da dificuldade de envolvimento no seio laboral com as equipas. Mas como Cohen dá conta, tem existido bom trabalho no desenvolvimento de práticas que permitem a estas pessoas serem envolvidas em grupos específicos de trabalho, e assim obter o melhor de cada um.

Ainda assim, no final quando faz esta defesa, Cohen não se coíbe de falar sobre o que conhece mal, e acaba defendendo o potencial de estar próximo de um Elon Musk ou Mark Zuckerberg, como imbuído de uma aura especial, à frente da restante espécie humana. Tudo isto é ainda mais tonto quando Cohen defende abertamente a abordagem tecnológica como a mais importante para a sociedade atual, pelo dinheiro e emprego que gera, esquecendo, ou atirando para debaixo do tapete, todos os problemas que têm vindo a ser evidenciados pelas tecnologias criadas por alguns destes visionários, nomeadamente a falta de noção do social, da importância da socialização e empatia, face a sistemas totalmente centrados na sistematização e nos objetos, a ponto de deixarem de compreender as reais necessidades do ser humano, sendo o Facebook um dos expoentes desta problemática.

Deixo ainda uma nota final sobre um estudo que Baron-Cohen tentou fazer no MIT, mas que viu ser-lhe recusado por receio de poder vir a carimbar aquela escola de engenharia como uma escola de autistas. Mais do que qualquer outra conclusão que possamos tirar deste exemplo é a negatividade, o enorme estigma com a sociedade, mesmo escolas deste níveis, ainda colocam sobre a ideia do autismo. Leia-se:

“I had been hearing anecdotal reports that autism was much more common in Silicon Valley since at least 1997. I had also read an article anecdotally suggesting that autism was more common among children of alumni of the Massachusetts Institute of Technology (MIT). ”

“And then, in 2003, I received an interesting email from the former president of the MIT Alumni Association, Brian Hughes, who told me that among his alumni, autism rates were anecdotally reported as high as 10 percent, not the usual 1 to 2 percent. If the rates of autism really were five-fold higher in this unusual population, this would be super-important. With Brian and psychologist Sally Wheelwright, we set up the MIT Study, a survey that would go out to thousands of MIT alumni.

MIT was an interesting place to choose to stage the largest experiment on the mating patterns of systemizers because, before 1975, MIT only admitted men to study at the university, and the only courses on offer were in the “exact” sciences (STEM).”

“So, if these men later ended up having autistic children, we could assume that, at a minimum, those children had a father who was talented in STEM. (...) We set out to compare the rates of autism among the children of couples in which both parents were in STEM, one parent was in STEM, and neither parent was in STEM. (And of course there are lots of couples in the general population where neither parent is talented in STEM, effectively the control group.) The study received formal approval by the MIT Institutional Review Board, so we were good to go.

“And then another shocking email from Brian arrived in my inbox. He told me that the president of MIT, Charles Vest, had intervened to say that he wasn’t willing to authorize this study to go ahead. Soon after, Vest retired but Brian still was told the study couldn’t go ahead for fear that, if the hypothesis was confirmed, the reputation of MIT might be harmed. The study had been blocked, from the highest level in the university.

I was shocked for two reasons. First, scientifically, this was a really important question to answer, to help understand the link between autism and systemizing talent. And secondly, MIT’s decision challenged the important governing principle in universities of academic freedom of ideas.”


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