janeiro 31, 2021

Platão versus Aristóteles

 “The Cave and the Light: Plato Versus Aristotle, and the Struggle for the Soul of Western Civilization” é uma obra de grande fulgor, de Arthur Herman, sobre a história ocidental da filosofia e da ciência, contada em pouco mais de 700 páginas e a partir de um simples conceito: todas as ideias dos últimos 2500 anos são o resultado de um debate continuado entre Platão e Aristóteles. Herman não defende que tudo dependeu deles, não faz deles deuses, mas diz antes que aquilo que forma a força a motriz da evolução da sociedade ocidental, assenta na constante oposição entre os que se sentem influenciados por uma visão do mundo platonista, e aqueles que se sentem influenciados por uma visão do mundo aristotélica. A obra tem sido alvo de alguns ataques, pelo conservadorismo do autor, mas quem quiser aproveitar o trabalho realizado, apoiado por uma boa escrita, encontrará aqui muito para aprender.

O seguinte parágrafo, retirado do prefácio, resume o que está em questão:

"For the next two thousand years Aristotle would become the father of modern science, logic, and technology. Plato, by contrast, is the spokesman for the theologian, the mystic, the poet, and the artist.

One gave us a view of reality as multiform and constantly evolving; the other, as eternal and One.

One told us we have to learn to deal with things as they are, including each other. The other said we need to think about how things ought to be, including ourselves and our society.

One shaped the contours of Christianity; the other, the ideas of the Enlightenment.

One gave us modern economics; the other, the Reformation.

One inspired Europe to lift itself out of the Dark Ages; the other inspired the greatest artistic works of the Renaissance, including Michelangelo’s Sistine Chapel ceiling.

One gave us the U.S. Constitution, the Manhattan Project, and shopping malls. The other gave us Chartres Cathedral, but also the gulag and the Holocaust.

Aristotle asks, “How do you fit into the world that already exists?

Plato asks, “Why does that world exist at all?”"


O melhor do livro, para mim, foi sem dúvida a discussão em redor dos pensadores da Idade Média, de São Agostinho a Tomás de Aquino, passando por Pedro Abelardo, Gerardo de Cremona ou Giovanni Pico Della Mirandola. Talvez por ser a parte de que sabia menos, tendo adorado todas as novas descobertas que Herman me proporcionou. Já o pior, surgiu no fechar do livro, com Herman a ter um deslize muito infeliz, ao decidir entregar a chave nas mãos de Ayn Rand. Posso dizer que me choquei. Tive dificuldade em aceitar. Mas concedi, parei a leitura, e fui buscar “Atlas Shrugged” (1957), de que reli as primeiras páginas, depois abri o “A Virtude do Egoísmo - A Verdadeira Ética do Homem” (1964), após o que voltei a Herman. Agora convicto de que tinha sido um monumental deslize. Porque o contrário dos totalitarismos — nazi, comunista ou fascista — não pode ser uma teoria que como a própria demonstrou também não sobreviveu à prática — no final da sua vida, Rand recorreu à Segurança Social para sobreviver os últimos anos de vida com o seu marido.

Mas se para mim foi um deslize, para outros foi o ponto alto da incoerência de tudo. David Rieff, filho de Susan Sontag, decidiu dedicar 8 páginas integrais à destruição do livro, na revista The National Interest. No fim de ler as palavras de Rieff, senti-me ainda mais estupefato do que depois de ter encontrado a menção a Rand no livro de Herman. Como é que alguém, num debate de ideias, se pode deixar consumir desta forma por argumentário político? Como é que alguém, denominando-se progressista, pode descer tão baixo? 

Ataca Herman por este demonstrar uma clara preferência por Aristóteles, seguindo a alegada mentora, Rand. No entanto, depois concede que o autor não defende nenhum acima do outro, antes defende a dialética entre ambos, a forma como ambas as visões têm servido para fazer avançar a civilização ocidental. Contudo, usa essa duplicidade, para mais uma vez ridicularizar Herman, dizendo que se escreveu todo um livro para dizer isto, sem defender nenhum dos lados, mais valia estar parado. E vai mais longe, atacando a ideia de Herman, “never-ending ever-ascending circle of renewal”, como mera abordagem "new age". Não satisfeito, Rieff cita alguns exemplos do excelente trabalho de novelização realizado por Herman, para dizer que este se dedica à especulação, que não é nem filósofo, nem historiador. 

Um dos ataques mais ridículos é ao facto de Herman considerar Platão como a base do cristianismo, algo que podemos encontrar em muitos dos que se têm dedicado à história das ideias, nomeadamente Karl Popper, mas também Nietzsche quando diz, na abertura do "Para Além do Bem e do Mal" (1886), “O cristianismo é o platonismo do povo”, numa alusão à máxima de Marx. Rieff deixa-se levar, e dedica duas páginas inteiras à explicação da importância do judaísmo e do modo como este sim terá estado sempre do outro lado da fronteira, face ao cristianismo e filosofia, demonstrando todo um fervor religioso.

Excerto do fresco de Raphael, "A Escola de Atenas" no Vaticano: vemos Platão apresentado com o livro "Timeus", no qual se conta a história do "Genesis" do universo, e em que se conta que o homem foi criado à imagem de Deus. Aristóteles traz "Ética a Nicómaco”, o livro que serviu a Tomás Aquino para reescrever a moral católica.

Obviamente que um livro que atravessa séculos de história, proferindo interpretações sobre tantas ideias e conceitos, não está incólume a erros. O seu problema não está apenas no final conservador, existem outros problemas, e um deles bem identificado por Rieff, o reducionismo. Ou seja, ao seguir esta abordagem, de ver todo o mundo por meio de um microscópio bipolar, acabou por ter de reduzir a enorme complexidade de que somos feitos a duas faces de uma moeda. Confesso que eu próprio já me tinha interrogado sobre esta dualidade, sobre a possibilidade de ambos —Platão e Aristóteles — poderem representar duas macro-posições antagónicas, mas aglutinadoras, de interpretação do mundo. Aliás, liguei na altura essa ideia ao quadro divisório de perfis de cientistas, proposto por William James, em “Pragmatism” (1907), que dividia o mundo em: “tough minded” e “tender minded”. Mas depois de algum aprofundamento da ideia, percebi que dois pólos seriam insuficientes para classificar tanta diversidade. Mais, encontrei este livro de Herman exatamente por ter feito várias pesquisas sobre a oposição entre Platão e Aristóteles, embora quando depois o resolvi começar a ler, já não estivesse convencido da ideia. Por isso, algumas das interpretações realizadas por Herman devem ser analisadas com cautela. Em boa verdade, Herman não defende estas duas visões como únicas, mas mais como extremos que tendem a puxar por aquilo que de que somos feitos.

Tendo apontado o principal problema, deixo uma lista de ideias que fui descobrindo ao ler esta obra: 

. A Atlântida surgiu pelas mãos de Platão, no livro Timeus.
. Que a Academia vem de Platão, e o Liceu vem de Aristóteles.
. Santo Agostinho leu avidamente Platão.
. Martinho Lutero não só abominava Aristóteles como foi anti-semita.
. Como foi traduzida a obra de Aristóteles para o ocidente no final da idade média.
. Muitos foram perseguidos apenas por quererem estudar Aristóteles.
. Pico Della Mirandola tentou construir um conceção única do mundo a partir do conhecimento das múltiplas religiões e filosofias.
. Rousseau era uma admirador dos valores de Esparta.
. Tomás Aquino serviu-se de Aristóteles para refazer a doutrina platonista do cristianismo.
. A relação entre a Matemática de Newton e Deus.
. O caráter científico das observações de Aristóteles.

“Newton’s biblical research was central to his entire scientific career. They form the essential backdrop for his most famous work, the Principia Mathematica. For like a true son of Plato, Newton never lost sight of the Big Picture, including the problem that had so perplexed Henry More and the other Cambridge Platonists. Where do we find God in a material and mechanical universe?” (Herman, 2013: Cap27:24)

“The evidence of the senses further corroborates the fact that the earth is round. How else would eclipses of the moon show segments shaped as we see them? In eclipses the outline is always curved; and since it is the interposition of the earth that makes the eclipse, the form of this line will be caused by the form of the earth’s surface, which is therefore spherical.…” Aristóteles, in “Dos Céus”, citado Herman (2013: Cap11:15)

Herman conta a história das ideias, vista pelos olhos de dois dos mais importantes pensadores da nossa civilização. Existem problemas, desde logo porque 700 páginas são muito parcas para tanto que se diz. Mas para quem tiver vontade de saber mais sobre estes dois colossos, e perceber melhor como se entrelaçam as suas ideias e a construção das visões do mundo que nos sustentam, este livro é uma excelente porta de entrada.

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