No final das 1000 páginas podemos fechar o livro e decidir ficar com as impressões criadas ao longo das semanas de leitura, sem realizar qualquer esforço de as organizar, de lhes dar um sentido. Essa vontade pode ser maior quando de frente a livros que são escritos com a intenção de se furtar a essas tentativas de catalogação ou organização de significados, como é o caso de “2666”. Ainda assim, enquanto leitores dotados de competências, por vezes obsessivas, na identificação de padrões e atribuição de significados, torna-se difícil não encetar esse esforço. As linhas que se seguem são assim o resultado da minha experiência de leitura, condensada e verbalizada num conjunto de ideias e parágrafos.
“2666” é destacado no panorama literário por duas razões contextuais — o seu tamanho, que tem motivado uma discussão, irrelevante, sobre se deveriam ser 5 livros autónomos, ou apenas 1; e a morte prematura do autor, tendo o livro sido publicado de forma póstuma, um ano após a sua morte — e ainda uma razão narrativa — a descrição de violência, apresentando assassinatos de dezenas e dezenas de mulheres. Mas, na verdade, estas razões são adereços, contribuindo pouco para a compreensão do que está contido nesta obra, do que nos impacta e produz uma experiência singular.
Descartando desde já as razões contextuais que me parecem por demais óbvias na sua irrelevância, preciso de dar conta da questão da violência, que não sendo de somenos, acaba sendo-o pelo tratamento escolhido pelo autor para a representação da mesma. Passo a explicar. A violência apresentada numa cidade fictícia, na fronteira do México com os EUA, é facilmente conectada com a violência ocorrida na cidade de Juárez, a partir de 1993. Ou seja, aquilo que Bolaño nos apresenta não é pura ficção, é baseado em múltiplos relatos que leu sobre o que se passava em Juárez.
Assim, no início dos anos 2000 começaram a surgir, nos media internacionais, histórias e apelos à comunidade internacional para o alegado fenómeno de femícidio, sem precedentes em todo o planeta. Nuns meios falava-se em 100 mulheres, noutros em mais de 300, e noutros chegava-se a 500 mulheres assassinadas. Eram números nunca ouvidos, em parte alguma, tendo gerado forte comoção na sociedade internacional, e consequentemente respostas da literatura como “2666”, mas também “If I Die in Juárez” por Stella Pope Duarte, entre outras. No cinema, o realizador de “Bordertown” (2007) — com Martin Sheen e Jennifer Lopez — falava, em entrevista, que existiam mais 5 mil mulheres desaparecidas, só na cidade de Juárez. Nas revistas, escreviam-se títulos como "Juárez, a Cidade que Odeia as Mulheres".
Ou seja, Juárez, a ser uma cidade onde as mulheres, e apenas estas, morriam às mãos de homens, vítimas de violação violentas, de profanação, estaríamos a falar de uma maldade “encarnada”, racionalizada, capaz de olhar para a mulher como ser inferior, que serve apenas os propósitos do macho para depois ser descarta numa qualquer lixeira a céu aberto, tratada como nenhum animal. O problema de todo este enredo, que cria a representação de um Inferno à superfície da Terra, é que está longe da realidade. Se Bolaño fala e descreve dezenas e dezenas de assassinatos violentíssimos todos, sem exceção, cometidos sobre mulheres, quando olhamos para os dados efetivos da cidade de Juárez nos anos reportados por Bolaño, verificamos algo muito contrastante (ver tabela):
1993 foi ano em que mais mulheres face aos homens morreram, ainda assim por cada 2 mulheres mortas, apareciam 8 homens mortos. Se os dados, na altura examinada por Bolaño, impressionam, após a sua morte, em 2003, os números de assassínios na cidade Juárez viriam a explodir, atingindo valores absolutamente inauditos em 2010, com mais de 3600 pessoas assassinadas, mas mesmo aí, apenas 10% eram mulheres, uma percentagem baixa quando comparada com os 25% nos EUA [1]. Face à média de assassínios no México, que é já bastante alta na relação internacional, cerca de 30 por 100 mil, Juárez apresentou nesse ano uma média 10 vezes acima [2]. Para se poder ter uma noção do que são 3600 assassinatos, numa cidade de 1,3 milhões de habitantes, podemos dizer que Portugal, um país de 10 milhões de habitantes, apresenta menos de 100 assassinatos por ano.
Ou seja, existia um problema grave naquela cidade, mas esse problema nunca foi exclusivo das mulheres, como dão conta as quase todas 300 páginas do capítulo 4 de “2666”. Podemos dizer que o problema era muito menos racional, dirigido, refletido, e muito mais fruto dos ambientes de violência proporcionados pelas variáveis da droga, mas também de cidade fronteiriça que atraía milhares de pessoas de toda a américa latina, em busca do salto para os EUA. Muitas destas pessoas não possuiam papéis, não eram suportadas por laços familiares nem de proximidade, acabando em malhas complexas e tóxicas, para as quais a vida humana nada vale, é totalmente descartável seja homem, mulher ou criança.
Entrando agora na obra, nas suas qualidades estéticas e na experiência produzida. Tenho de dizer que Bolaño foi um virtuoso literário, tanto no modo como escrevia, como no modo como entrelaçava enredos, capaz de contar histórias como quem respira. Para esse efeito a sua escrita, aparentemente acessível, dá cor e tom ao historiar, permitindo que o leitor entre nos universos ficcionais criados, e se deixe ficar por ali, simplesmente pela experiência da leitura, mesmo sabendo que não existirão grandes respostas à espera no final. Bolaño transporta o leitor para o seu mundo, enreda-o, envolve-o, alimenta-o, e faz com que se sinta ali bem recebido, mesmo quando de relatar o horror se trata. Para isso, Bolaño convoca espaços espalhados pelo globo — Alemanha, França, Inglaterra, Itália, México, Chile, EUA, etc. — que vão servindo na ampliação do cenário, enredando-nos como se fosse abrindo sempre novas avenidas para dar a ver e sentir, alimentando tudo com pequenas histórias, múltiplas, umas dentro da outras, labirínticas no espaço e no tempo.
Contudo, nem sempre acompanhei o autor. Existem múltiplas secções, e em 1000 páginas não é difícil, em que sentimos Bolaño a dar pura rédea solta a criatividade, deixando a imaginação divagar sobre um qualquer caminho narrativo, totalmente irrelevante, alimentando-o de descrição, apenas porque sim, ou apenas para poder preencher mais algumas páginas do seu enorme tomo. Para atenuar estes momentos, menos engajantes, Bolaño usa a sátira, um elemento particular deste tipo de pós-modernismo, a fazer lembrar David Foster Wallace, ainda que bastante mais acessível, desde logo porque muito menos fragmentário. E ainda, na senda de DFW, usa a meta-narração, com o narrador a intrometer-se, sub-repticiamente, aqui e ali, para nos dar conta do que estamos a ler, porque estamos a ler, com comentários sobre a diferença entre o que estamos a ler e poderíamos ler noutro qualquer lugar, aprofundando assim o tom satírico pela autocrítica.
Finalmente, sobre o que diz, ou teria para dizer, com uma obra tão grande e dotada de momentos tão intensos. Confesso sentir algum vazio. A obra preencheu-me totalmente no processo de leitura, questionou-me e confrontei-a, mas terminada, fechou-se. Nem as pontas abertas me deixaram com vontade de procurar compreender porquê assim e não de outra forma. Existem múltiplas ideias, mensagens e conceitos espalhados pelas páginas, mas formam mais um conjunto de idiossincrasias do autor, da sua forma de estar no mundo, como olhava para a realidade, considerava o outro, a arte e a vida do que propriamente uma ideia ou visão que nos quisesse passar com esta obra em particular. Posso dizer que sempre senti uma inclinação para ver em 2666 o ano do diabo, para o qual convergiria todo o mal à face do planeta, podendo Juárez servir de epicentro. Mas tudo isso cai um pouco por Terra com o tratamento dado aos dados do que realmente aconteceu naquela cidade...
[1] Molly Molloy. (2014). “The femicide fallacy: tyranny of the ten percent”
[2] Steven S. Volk. (2015). The Historiography of Feminicide in Ciudad Juárez: Critical and Revisionist Approaches
Sem comentários:
Enviar um comentário