Comecei a ler “Molloy” de Samuel Beckett pouco depois de ter lido “The Pattern Seekers: How Autism Drives Human Invention” (2020) de Baron-Cohen, especialista internacional em autismo, e enquanto por acaso apanhava um episódio da série “The Good Doctor” [1] no Netflix, que retratava os dias de internato de um jovem médico autista. Com este fundo, comecei a ver a personagem Molloy emergir das páginas com uma caracterização muito distinta daquela que tinha criado a partir da leitura de resenhas e análises críticas da obra. Procurei saber mais sobre Beckett e descobri que o mesmo — tal como o seu mentor James Joyce — padecia do transtorno do espetro do autismo [2].
Analisar uma obra artística a partir de qualquer condição médica, nomeadamente mental, é altamente complexo, porque não é possível estabelecer ligações objetivas entre o que é representado com intenção e sem intenção. Ainda assim, considero que obras tidas como fundamentais na literatura internacional, devem ser estudadas tendo em conta todas as condicionantes da sua criação. A leitura que faríamos das obras de Toni Morrison ou Ralph Ellison não seriam iguais sem levar em conta a cor da sua pele. Ou de Émile Zola ou Honoré de Balzac sem os situar em França. Ou ainda, de "Odisseia" sem o contexto da realidade da era em que foi criada.
Apesar do autismo ter sido identificado nos anos 1940, só nos anos 1980 (DSM-III [3]) é que a psiquiatria começou a distinguir o autismo da esquizofrenia, permitindo que se começasse a estudar em maior profundidade a questão. O transtorno do espectro do autismo é muito distinto da esquizofrenia, e caracteriza-se por baixas competências de comunicação e interação social, dificuldade de leitura da emoção humana, assim como padrões de comportamento focados na repetição e sistematização da realidade, o que tende a conduzir o interesse destas pessoas mais para coisas do que para pessoas, porque as pessoas não são previsíveis, não produzem repetição, logo são mais difíceis de sistematizar em padrões. Assim, no início do novo milénio começou a considerar-se o autismo como simples transtorno, permitindo com algum trabalho, a conciliação de uma vida plena e ativa. Aliás, o livro de Baron-Cohen é exímio em dar conta dos contributos que podem ser dados por pessoas com este transtorno para a nossa sociedade atual. O seu discurso vem assim ao encontro da inclusão destas pessoas na sociedade, rumo ao que se tem vindo a convencionar como neurodiversidade (aceitação da existência de variações naturais no cérebro humano em relação à sociabilidade, aprendizagem, atenção ou humor).
É imensamente revelador verificar como Martha Nussbaum escreve "Narrative Emotions" (1990) [4] a partir de uma análise detalhada de “Molloy”, apresentando o estilo de Beckett como nas antípodas de Proust, por representar um corte com a emoção natural na narrativa. Nussbaum começa por dar conta do modo como construímos uma visão afetiva da realidade a partir das histórias que vamos absorvendo no mundo, para depois ilustrar o modo como Beckett procura afastar-se dessa emocionalidade. A minha questão aqui é, será que ele procura deliberadamente afastar-se da emoção narrativa, ou tal faz parte da sua condição neurodiversa?
Aliás, é interessante verificar a existência de múltiplos artigos unindo Beckett e a loucura [7] ou esquizofrenia [8], mas encontra-se muito pouco sobre o autismo [9]. Entretanto no ano passado saiu um livro editado por Sean Kennedy, com múltiplos artigos dedicados ao tema, mas não consegui ter acesso ao mesmo [10].
Para compreender um pouco melhor a questão, resolvi analisar um texto de Beckett sem fundo ficcional, para o que fui buscar o livrinho que Beckett escreveu sobre “Em Busca do Tempo Perdido” [6] de Proust, em 1930, quando tinha apenas 25 anos, e nada ali me surpreendeu. Pode-se dizer que se sentem inseguranças na escrita, que está longe da assertividade apresentada 20 anos mais tarde, mas tudo o resto está lá. Beckett escreve sobre uma das obras mais carregadas de psicologia humana do século XX, plena de digressões profundas sobre o sentir humano e os seus dilemas, confusões, contradições e paradoxos. No entanto, Beckett limita-se a ler na obra traços estruturais, secundando todos esses rasgos brilhantes de Proust, detendo-se na sistematização de cenas como as seguintes:
"Mas o que é a realização? A identificação do sujeito com o objeto do seu desejo. O sujeito morreu — quem sabe muitas vezes — pelo caminho. Que o sujeito B fique desapontado com a banalidade de um objeto escolhido pelo sujeito A é tão ilógico quanto esperar que a nossa fome se dissipe com o espetáculo da tia que come a sua sopa."
"O indivíduo é o sítio de um constante processo de decantação, decantação do recipiente contendo o fluido do tempo futuro, indolente, pálido e monocromático, para o recipiente contendo o fluido do tempo passado, agitado e multicolorido pelo fenómeno das suas horas."
Talvez o exemplo mais claro seja o seguinte parágrafo, no qual Beckett se detém na análise do humano como se estivesse a analisar uma máquina:
"Até aqui temos considerado um sujeito móvel perante um objeto ideal, imutável e incorruptível. Mas a nossa percepção vulgar não se refere a nada além de fenómenos vulgares. A isenção de fluxo interno num dado objeto não altera o fato de ele ser o correlativo de um sujeito que não goza de tal imunidade. O observador inocula o observado com sua própria mobilidade. Além disso, quando se trata de um caso de inter-relação humana, encontramo-nos face ao problema de um objeto cuja mobilidade não é meramente função da mobilidade do sujeito, mas independente e pessoal: dois dinamismos intrínsecos e separados, carentes de um sistema de sincronização."
E já agora, porque se conectam muito bem com o que temos “Molloy”, alguns rasgos de bizarro:
"Memória e Hábito são atributos do cronocarcinoma."
"O hábito é o lastro que acorrenta o cão a seu vómito."
"Desta feita, contudo, o dragão foi reduzido à docilidade e a caverna é um quarto."
Repare-se que estes mesmos rasgos que aqui não se podem conectar com nada, são usados, nas obras seguintes de Beckett, por críticos e académicos para realizar leituras interpretativas de um existencialismo simbólico, ou do que ficou conhecido como “absurdismo”. Mas será mesmo “absurdismo” aquilo que Beckett criou?
Voltando a “Molloy”, a personagem deixou de me parecer um mero esquizofrénico, e surgiu na minha frente um ser-humano, padecendo de um transtorno que condiciona a sua relação humana com os outros, que faz com que a sua atenção e interesse se foque em elementos que a generalidade da população não se foca. O mundo de Molloy deixou de ser um mundo de absurdo, e passou a ser um mundo diverso, com um sentido próprio, apesar das pessoas que rodeiam Molloy simplesmente não se aperceberem do mesmo. Ficam três excertos:
“Este homem que vem todas as semanas, é talvez graças a ele que estou aqui. Ele diz que não. Dá-me dinheiro e leva as folhas. Tantas folhas, tanto dinheiro. Sim, trabalho agora, um pouco como antes, somente não sei mais trabalhar."
"As pessoas levantam-se, frescas e dispostas, sedentas de ordem, beleza e justiça, exigindo a contraparte. Sim, das oito ou nove até ao meio-dia, é a passagem perigosa. Mas por volta do meio-dia isso se acomoda, os mais implacáveis estão saciados, recolhem-se, nada é perfeito mas fizemos um bom trabalho, houve sobreviventes mas não são muito perigosos, cada um conta os seus ratos."
“Foi assim que vi A e B irem lentamente um de encontro ao outro sem se darem conta do que faziam (...) Eram dois homens, impossível haver engano, um pequeno e um grande. Tinham saído da cidade, primeiro um, depois o outro, e o primeiro, cansado ou lembrando-se de uma obrigação, refazia os seus passos (...) Mas ao som talvez dos seus passos, ou advertidos por um instinto obscuro qualquer, levantaram a cabeça e se observaram, durante uns bons quinze passos, antes de pararem, um em frente do outro. Sim, não se cruzaram, mas pararam (...) Depois cada um retomou o seu caminho, A em direção à cidade, B através de regiões"
[1] “The Good Doctor” (2017-), Park Jae-bum
[2] Fitzgerald, M., & Walker, A. (2015). Unstoppable Brilliance: Irish Geniuses and Asperger's Syndrome. Liberties Press.
[3] Nussbaum, M. (1988). Narrative Emotions: Beckett's Genealogy of Love. Ethics, 98(2), 225-254.
[4] DSM and Autism
[5] Baron-Cohen, S. (2020). The Pattern Seekers: How Autism Drives Human Invention. Basic Books.
[6] Proust, M. (1913-1927). “À la Recherche du Temps Perdu”, Gallimard
[7] Breuer, H. (2006). Samuel Beckett and experimental psychology. English Studies, 87(3), 303-318.
[8] Weller, S. (2009). “Some Experience of the Schizoid Voice”: Samuel Beckett and the Language of Derangement. In Forum for Modern Language Studies (Vol. 45, No. 1, pp. 32-50). Oxford University Press.
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