dezembro 25, 2021

Milkman (2018)

"Milkman" é brilhante, mas não se oferece a todos do mesmo modo. Facilmente podemos encontrar quem deteste, como acontece com o crítico do NYT, ou quem adore e lhe ofereça o Booker 2018. Na generalidade fala-se de um livro de difícil leitura, mas ser um livro que exige uma leitura mais lenta e atenta não tem nada que ver com ser difícil. Mais, comparando com outros fluxos de consciência, Joyce ou Woolf, é imensamente acessível, muito mais na linha de um bem-humorado Tristram Shandy. Mas se a escrita impressiona, é o ponto-de-vista interior, como se estivéssemos literalmente dentro da cabeça de uma adolescente de 18 anos que enfrenta um mundo feito de conflitos numa Irlanda nos anos 1970, que acaba a marcar-nos.

Anna Burns tinha 56 anos quando escreveu "Milkman", apenas o seu terceiro livro. Escrevia com dores de costas horríveis enquanto vagueava pela Inglaterra tentando pagar as dívidas e alimentando-se da caridade dos bancos alimentares. O manuscrito foi recusado por múltiplos editores, para depois ganhar o Booker, o maior prémio britânico, levando Burns a dizer que "Era bom sentir-se solvente". Admire-se a persistência e enorme resiliência da autora, para ver o seu talento reconhecido a caminho dos 60.

Raparigas preparando cocktails molotov. Derry, 1969

Sobre a sua escrita, posso apenas dizer que é imensamente virtuosa. Demonstra uma competência ao nível de Lobo Antunes, pela capacidade de manipular o texto como quem manipula a oralidade de um monólogo interior. O tom é certeiro, se Salinger nos oferece um Holden Caulfield com uns verdadeiros 16 anos, Burns oferece-nos uma verdadeira adolescente com 18 anos, sem nome, numa cidade também sem nome. Enquanto fala, esta sem nome, transporta-nos para o interior de uma teia pegajosa composta de um mundo psicologicamente denso, torrencial, perspicaz e previdente. 

Crianças assistem à queima de veículos anti-motim. Belfast 1976

A caracterização da protagonista é fundamental para o que Burns pretende dar a ver, ou melhor sentir, que é a tensão vivida numa cidade em guerra, em que ninguém confia em ninguém, menos ainda nas instituições dependentes do governo. Diz Burns, "vejo tudo como uma ficção sobre uma sociedade que vive sob extrema pressão, com a violência a longo prazo vista como a norma". Ao que se acrescenta um olhar profundamente feminino que dá conta das relações e expectativas sobre cada género nos idos anos 1970, numa sociedade profundamente conservadora. Não raras vezes somos impactados com descrições da protagonista como estando esta a ler nas entrelinhas o subtexto do que é dito pelos outros, nomeadamente comportamentos, olhares e trejeitos, tudo enfatizado pela enorme consciência das regras e pressões operadas pela sociedade nas suas diferentes facetas e relatadas como perfeita normalidade apesar do absurdo e do grotesco. 

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