agosto 11, 2021

A anomalia anti-existencial

"A Anomalia" foi premiado com o maior prémio francês de literatura, o Goncourt em 2020, que lhe deu notoriedade, mas sendo um prémio elitista raramente os seus premiados puderam apresentar-se ao público como tendo vendido mais de 1 milhão de exemplares, como foi anunciado já em maio deste ano. Por outro lado, as reações nas redes não seguem esta aparente unanimidade, já que os comentários se dividem entre a paixão e o desprezo. Uns seguem o elitismo do prémio, reverenciando a inteligência do romance, outros desacreditam o prémio, catalogando-o de verdadeira anomalia. Do meu lado, li-o como comédia social que fala de temas sérios mas que não se quer levado demasiado a sério. Se dúvidas houvesse, bastaria dizer que um dos personagens do livro é um escritor que também escreveu um livro chamado "A Anomalia", e enquanto tradutor já traduziu “À Espera de Godot" para klingon.




Atenção aos spoilers a partir daqui.

"A Anomalia", de Hervé le Tellier, brinda os leitores com uma história que parece decalcada de uma qualquer série americana — de Flashforward a The Leftovers — apresentando um mesmo avião que faz França - Nova Iorque em Março 2021 (o livro foi publicado em 2020), e ao atravessar uma tempestade, um qualquer evento no meio da mesma fará com que aterre duas vezes. Ou seja, o avião aterra em Março 2021, mas em Junho 2021 o mesmo avião aterra novamente, e com ele todos os mesmos passageiros. Assim, o romance tem de enfrentar não um 1 duplo, mas 243 duplos. No fundo, temos o fenómeno típico dos acontecimentos com poder para gerar distopias televisivas. Este ponto explica o sucesso de vendas, reforçado pelo facto de o livro já se encontrar neste momento a ser adaptado para série de televisão.

Do outro lado, temos toda a ação a desenrolar-se nos EUA, aproveitando Tellier, enquanto francês, para produzir uma teia de críticas a toda a ação musculada das agências americanas, ao seu presidente, nunca nomeado mas apresentado como "grande cherne de peruca loura”, ainda que o próprio presidente francês na saia incólume, sendo apresentado como "idiotazinho arrogante". Quanto à comicidade do discurso, basta dizer que toda a reação ao avião duplo segue um Protocolo com o número 42, definido por uns estudantes de doutoramento, responsáveis por elaborar os protocolos de emergência da aviação no pós 11 de setembro, e que se socorrem da Douglas Adams para o fazer.

Mas no meio de tudo isto existe algo mais, subterrâneo, menos cómico, ainda que não seja para levar muito a sério, mas que oferece uma dimensão maior ao livro e que assenta no trabalho do filósofo de Oxford, Nick Bostrom, que se tornou famoso com um artigo que colocou a circular na internet em 2001, "Are You Living in a Computer Simulation?" e que ele viria a publicar na revista científica, Philosophical Quarterly (2003) Vol. 53, No. 211. Recordo a discussão surgida em redor do artigo, pois estávamos já no pós-fim de milénio, e Bostrom introduzia assim a possibilidade de o mundo em que vivíamos não passar de uma simulação, recuperando os argumentos do filme "The Matrix" (1999), mas apresentando-os como possibilidade efetiva, assente em pressupostos não passíveis de falseabilidade. 

Tellier introduz o conceito a meio do livro, dizendo que talvez o avião e os seus duplos possam ser  o resultado de uma falha na matriz computacional. E se isso nos parece uma ideia gasta, ele próprio parece chutar a mesma para canto, para seguir com os confrontos psicológicos e logísticos entre os duplos, evocando o princípio basilar do Existencialismo de Kierkegaard a Sartre, definido por "a existência precede a essência", para logo a seguir também o contradizer, colocando num palco de televisão o escritor da Anomalia e um filósofo francês que desmontam o apocalipse dizendo que com simulação ou ou sem ela, as nossas vidas continuam a ter de existir, todos os dias.

É neste cenário que se atinge aquilo que para mim parece ser o cerne da qualidade e originalidade deste texto, pois se o sentido da vida é questionado pela impossibilidade da originalidade, da singularidade individual, na verdade é da sua irrelevância que o romance nos fala. Sermos diferentes, únicos, autênticos e no fundo verdadeiros não é importante, porque tudo não passa de um conjunto de atributos que usamos para criar na nossa cabeça o sentido das nossas vidas (diga-se que condicente com o facto do autor ser matemático por formação). Indo um pouco mais ao fundo e ligando às preocupações atuais — fake news, deepfakes, Photoshop, IA, teorias da conspiração, campanhas de desinformação, imagem nas redes sociais, influencers, etc. etc. — percebe-se que Tellier nos está a dizer que tudo isso que já percepcionamos como ilusões criadas por nós, de uns para os outros, não podem definir as nossas vidas. Que todas estas preocupações (que formam o último nível da simulação proposta por Baudrillard) fazem parte de algo maior: a ilusão de querermos ser. Para dar força a esta ideia, Tellier abre o livro com a seguinte citação 

"E eu que digo que estás a sonhar, também estou num sonho." Zhuang Zhou

Enquanto experiência de leitura, lê-se avidamente desde que se assuma o tom cómico, e se perceba que não é para um fim existencial, pleno de decisões e respostas, que caminhamos na leitura. O livro segue registos distintos em função dos personagens, que são excessivos como se admite em alguns metadiálogos, e oferecem histórias dentro de histórias sobre ser e não ser, evocando o prédio da "A Vida Modo de Usar" de Georges Perec, parceiro do movimento Oulipo, ou as histórias inacabadas de Calvino, aqui diretamente referenciadas como "Se Numa Noite de Inverno duzentos e quarenta e três viajantes". No final senti que poderia ter ido mais longe, ser um pouco menos cómico, menos casual, mas talvez se o tivesse sido fosse impossível chegar à ideia que quis passar desde o início, de que: nos julgamos criaturas mais importantes do que aquilo que somos, ou queremos ser!

Sem comentários:

Enviar um comentário