outubro 05, 2021

"Mil Cérebros" (2021), sem Emoção

"A Thousand Brains: A New Theory of Intelligence" (2021), tinha tudo para ser um grande livro, acaba por ser mera montra de ideias, e algumas delas com sérias deficiências. Apesar disso, a teorização proposta por Jeff Hawkins é interessantíssima, só requer que se leia com uma boa bagagem sobre o cérebro, consciência e emoção por forma a garantir suficientes competências ao pensamento crítico necessário à leitura. Aliás, essa mesma bagagem acaba por se revelar em falta em Hawkins o que responde por alguns dos problemas da sua discussão. Hawkins é uma pessoa peculiar, foi capaz de fundar a Palm em 1992 e criar o antecessor do smartphone, mas ao mesmo tempo nunca conseguiu integrar-se na academia, justificando que esta nunca foi capaz de compreender a sua visão. Mais recentemente fundou a sua própria empresa de neurociências e IA, a Numenta.

Na primeira parte do livro, Hawkins apresenta a metáfora sobre o funcionamento do neocortex, baseada no trabalho do neurocientista, Vernon Mountcastle, que a propôs no livro "The Mindful Brain" (1982), e em que se defende que o cérebro funciona segundo um princípio universal. Não existem áreas dedicadas, mas antes um sistema, ou "circuito" que pode ser "programado" de acordo com as necessidades. Anteriormente Hawkins já tinha proposta uma abordagem ao funcionamento da nossa computação da realidade como "memory-prediction framework", no livro "On Intelligence" (2004), de que falaremos a seguir, e agora avançou a teorização do cérebro constituído por milhares de modelos de referência da realidade. Deixo alguns excertos, para dar conta da demonstração da teoria:

“the brain grew large over evolutionary time by adding new brain parts on top of old brain parts. The older parts control more primitive behaviors while the newer parts create more sophisticated ones (...) However, Mountcastle goes on to say that while much of the brain got bigger by adding new parts on top of old parts, that is not how the neocortex grew to occupy 70 percent of our brain. The neocortex got big by making many copies of the same thing: a basic circuit.”

-- Hawkins in “A Thousand Brains”

“Put shortly, there is nothing intrinsically motor about the motor cortex, nor sensory about the sensory cortex. Thus the elucidation of the mode of operation of the local modular circuit anywhere in the neocortex will be of great generalizing significance.”

-- Vernon Mountcastle, in “A Thousand Brains”

Ou seja, podemos então dizer:

“Mountcastle proposed that the reason the regions look similar is that they are all doing the same thing. What makes them different is not their intrinsic function but what they are connected to. If you connect a cortical region to eyes, you get vision; if you connect the same cortical region to ears, you get hearing; and if you connect regions to other regions, you get higher thought, such as language.” 
-- Hawkins in “A Thousand Brains”

Ou seja, temos o caminho aberto para a ideia de um algoritmo universal que é capaz de dar sentido a tudo a partir da aprendizagem e interligação entre componentes. Algo que Hawkins vai depois defender como o caminho que a IA deve seguir, e que é no fundo aquilo que Pedro  Domingos já nos tinha oferecido em "The Master Algorithm" (2015) (Análise VI). Mas Hawkins vai um pouco mais longe, e explica então como compreendemos a realidade, como montamos a ideia sobre o mundo que nos rodeia, e no fundo criamos consciência, partindo desta ideia de que o neocortex usa um algoritmo para construir o seu modo de funcionamento no mundo.

“What the brain does may seem obvious to you. The brain gets inputs from its sensors, it processes those inputs, and then it acts. (...) But what about the neocortex? Can we say that the task of the neocortex is to take inputs from sensors and then immediately act? In short, no.”

(...)

“From the moment I became interested in how the brain worked, I realized that thinking of the neocortex as an input-leads-to-output system would not be fruitful” 

(...)

“I was at home, working at my desk. There were dozens of objects on the desk and in the room. I realized that if any one of these objects changed, in even the slightest way, I would notice it. My pencil cup was always on the right side of the table; if one day I found it on the left, I would notice the change and wonder how it got moved (...) “What struck me was that I would notice these changes even if I wasn’t attending to these objects. As I looked around the room, I didn’t ask, “Is my stapler the correct length?” I didn’t think, “Check to make sure the clock’s hour hand is still shorter than the minute hand.” Changes to the normal would just pop into my head, and my attention would then be drawn to them.”

(...)

“My brain, specifically my neocortex, was making multiple simultaneous predictions of what it was about to see, hear, and feel. Every time I moved my eyes, my neocortex made predictions of what it was about to see. Every time I picked something up, my neocortex made predictions of what each finger should feel. And every action I took led to predictions of what I should hear (...) These predictions occurred in every sensory modality, for low-level sensory features and high-level concepts, which told me that every part of the neocortex, and therefore every cortical column, was making predictions 

(...)

“To make predictions, the brain has to learn what is normal—that is, what should be expected based on past experience.” (...) “I used the phrase “the memory prediction framework” to describe the overall idea (...) Today I no longer use the phrase. Instead, I describe the same idea by saying that the neocortex learns a model of the world, and it makes predictions based on its model.”

(...)

“The brain creates a predictive model. This just means that the brain continuously predicts what its inputs will be. Prediction isn’t something that the brain does every now and then; it is an intrinsic property that never stops, and it serves an essential role in learning. When the brain’s predictions are verified, that means the brain’s model of the world is accurate. A mis-prediction causes you to attend to the error and update the model.”

(...)

“The inputs to the brain are constantly changing. There are two reasons why. First, the world can change. “The second reason is because we move. ”

(...)

“The brain learns its model of the world by observing how its inputs change over time. There isn’t another way to learn. Unlike with a computer, we cannot upload a file into our brain. The only way for a brain to learn anything is via changes in its inputs. If the inputs to the brain were static, nothing could be learned.”

(...)

“learning occurs by forming new connections between neurons that were previously not connected. Forgetting happens when old or unused connections are removed entirely.

The connections in our brain store the model of the world that we have learned through our experiences. Every day we experience new things and add new pieces of knowledge to the model by forming new synapses. The neurons that are active at any point in time represent our current thoughts and perceptions.”

-- Hawkins in “A Thousand Brains”


Deste modo, Hawkins propõe que criamos modelos de referência mental que preservam como estados da realidade a localização tridimensional da ação, o movimento e ainda os metadados, ou seja, a informação que liga essa localização e movimento a um conjunto de outras informações que já detemos. Ou seja, o nosso cérebro constitui-se assim por milhões de modelos que se complementam uns aos outros, e que nós utilizamos, "calculando" as melhores opções, que ele define como processos de "votação", para compreender o mundo.

Até aqui tudo parece correto com a teorização proposta, o problema surge quando começamos a deter-nos sobre os fundamentos da teorização, e o modo como Hawkins entende que o tal cálculo ocorre. Para Hawkins a razão não precisa de emoção, aliás, por ele esta poderia ser completamente eliminada. Cometendo uma gaffe insustentável. Pois, segundo António Damásio, sem a emoção a nossa razão entraria em ciclos de raciocínio infinitos, tornando-se incapaz de tomar decisões. 

Por outro lado, vai a ponto de dizer que a Consciência é meramente constituída de informação, que a consciência é apenas feita de todo este processo de cálculo de informação mapeada. Usando o exemplo do Alzheimer, esquecendo que as pessoas são mais do que memória informativa. Enquanto pessoas, somos constituídas também por uma enorme franja emocional — que não está só alojada no cérebro, mas em todo o corpo, e que não entra no domínio da informação — e que não se adequa a cálculo, mas que fazem de nós as consciências que somos e continuam a permitir experienciar o mundo, mesmo quando neocortex é afetado. 

Hawkins vai ao ponto de dizer que a Emoção é resquício animal — não que não seja, tudo é, mas di-lo com uma carga pejorativa— pertença do cérebro antigo e irrelevante. É tonto demais, pois não só ela é um auxilio fundamental as escolhas do neocortex, mas mais do que isso, ela é fundamental à construção do coletivo, sem emoção não existe social. Seríamos apenas caixas de informação deambulando pelo planeta, sem capacidade para chegar aonde chegámos, pois a nossa individualidade só se emancipa quando a rede social a sustenta.

Toda a segunda parte do livro, dedicada a discutir exemplos e a propor abordagens a problemas da IA, acaba por evidenciar um conjunto de problemas na forma como Hawkins concebe a realidade. São demasiados exemplos que demonstram uma mente que se especializou e esqueceu do mundo que o rodeia. Veja-se que se reconhece que a nossa consciência não poderia ser transplantada para uma máquina, não é porque reconhece a falta de toda emocionalidade agregada ao nosso corpo, mas porque a consciência passada para a máquina, seria um duplo que seguiria a sua vida em paralelo com a nossa. Diria que se aprende mais sobre isto jogando "SOMA" (VI análise). Hawkins evidencia vários problemas, um deles gritante é sobre a fecundação, natalidade e o progresso, ficando eu a pensar que devia ler "Factfulness" (análise VI), em vez de jornais sensacionalistas.

No final, não quero dizer que Hawkins não possa vir a ter razão, num futuro distante, se virmos o mundo da sua perspectiva: como um dos grandes defensores do progresso da IA e réplica do neurocortex a qualquer preço. Ou seja, nesse futuro poderemos vir realmente a perder as funcionalidades da camada mameliana do cérebro, responsável pela emocionalidade, quando a nossa espécie se extinguir e der lugar a uma nova raça, perfeita, sem animalidade, totalmente racional, feita apenas de algoritmos e dados.

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