A leitura de “Heaven and Hell: A History of the Afterlife” (2020) fez-me perceber que o Céu e o Inferno não é fábula, ou histórias, é jogo, mecânicas básicas de recompensa e punição. Como tal, percebi que o fundamento da discussão do além-vida prende-se menos com uma significação e mais com uma quantificação. Ao longo dos séculos, a definição do além-vida foi pouco além da proposta de uma linearidade com dois polos, o alto e o baixo, em que quanto mais alto melhor. É irrelevante o significado, uma vez que o ponto atingido é para todo o sempre, tornando-se assim apenas importante a quantidade de sofrimento ou contentamento obtida.
Bart D. Ehrman é doutorado em Teologia e diz na introdução desta obra que em criança serviu na igreja e aos 15 anos teve “uma experiência espiritual profunda” que o conduziu “nascer-novamente” e a acreditar que “ia para o céu”, mas aquando da realização do seu doutoramento tudo mudou. O estudo da Bíblia levou-o a compreender o quanto esta “era um livro humano, com erros e preconceitos humanos e pontos de vista culturalmente condicionados”, e assim diz-nos: "comecei a mudar, e ao longo de vários anos passei por uma forma liberal de cristianismo" até que "finalmente deixei a fé por completo". Estamos assim perante alguém com conhecimento especializado nas Escrituras, mas também alguém que se assume completamente imparcial face às mesmas. A prova disso é que Ehrman realiza um escrutínio detalhado, sobre as representações do Céu e Inferno, desde as primeiras obras, sem distinguir o religioso do literário ou filosófico, começando por Gilgamesh, Odisseia até à Eneida, passando por Platão e Lucrécio, focando-se depois no Novo Testamento, em particular nos Evangelhos de João e Lucas, nas cartas de Paulo e no livro do Apocalipse.Quanto ao livro, o tema já me tinha ocorrido várias vezes, principalmente após a leitura de “A Divina Comédia”. Queria tentar compreender de onde tinham surgido todas aquelas cenas, um imaginário tão elaborado representando de forma quase perfeita o imaginário ocidental do além-vida. Ingenuamente, cheguei a pensar que Dante seria o grande coreógrafo deste nosso imaginário. E é por isso que este livro de Ehrman é tão importante. Porque analisa, em detalhe, as representações do céu e inferno produzidos desde que temos legado escrito, para nos dar a compreender como surgiu esse imaginário que pulula a nossa literatura e cinema e dá corpo a muito do que muitas pessoas acreditam ser o além-vida.
Assim o que Ehrman nos diz, naquela que é a grande conclusão deste trabalho, é que as menções ao além-vida, na forma de inferno e céu, não surgem mencionadas no Velho Testamento, nem tão pouco nas palavras de Jesus. Esses dois polos, e o julgamento que determina a posição em que cada um de nós se encontrará, são uma invenção posterior. Na antiga Grécia, acreditava-se que morríamos e íamos para o Hades, para todo o sempre, com os filhos de deuses e os heróis a seguirem para o Elysium.
Ehrman apresenta assim a criação do céu e o inferno como resposta à promessa de Salvação oferecida por Jesus e não concretizada. Ou seja, Jesus defendeu que aqueles que seguissem Deus seriam ressuscitados e viveriam para sempre no reino de Deus, aqui na Terra, enquanto que aqueles que a ele se opusessem seriam simplesmente aniquilados. Para Jesus, isto era algo que ia acontecer pouco depois de ressuscitar. Contudo, a promessa não se cumpriu e assim abriu-se uma espécie de caixa de Pandora para a interpretação de todos aqueles que vieram a seguir. Em essência, criou-se a ideia, nas mais diversas formas, de que um julgamento seria feito, e de que em função desse, seguiríamos para um lado ou outro, nas teses mais populares, para cima ou para baixo. O julgamento do além-vida que oferecia justiça ao momento presente em vida, rapidamente resvalou para visões tenebrosas da mais pura vingança sádica, na definição do inferno. Do gás sulfúrico aos grandes lagos de fogo eterno, da besta que será queimada durante mil anos ao número 666 (que não é mais do que a contagem dos caracteres hebraicos de “César Nero”), tudo não passaria de ficção criada para dar corpo a um ímpeto justiceiro, mas acima de tudo de temor, para se manipular a opinião de quem não pensava igual. Diga-se em sua defesa, que muito foi criado em resposta às perseguições a que os cristãos foram votados durante muito tempo.
Por outro lado, tendo em conta a influência posterior do pensamento grego, não só da mitologia, mas de Platão sobre o cristianismo, muito do que era o imaginário grego serviu e alimentou a construção e solidificação do discurso cristão na criação do Céu e Inferno. Desde logo a figura de um Deus todo poderoso, rei de todo o mundo e todo o sempre, à criação de privilégios em função dos julgamentos de cada ação.
“It is not difficult to see why humans started imagining a glorious and peaceful afterlife. Surely things aren’t meant to be the way they are now. Even apart from the ravages of poverty, starvation, disease, debilitating injury, and unfathomable loss, there are the mundane miseries we all have to put up with. Can’t we do better than that? One could only imagine what real happiness would be. In antiquity it often came in the form of a fantastically plush and pleasant garden—a “paradise”—with gorgeous and abundant fruit-bearing trees, gentle breezes, and warm sunshine, to be enjoyed in the company of loved ones forevermore (...) It is also not hard to grasp why heaven’s antipode, a place of everlasting punishment, arose. People have always wanted justice, and if it is not to be found in the present world, possibly it will come in the life beyond. Those who have sinned against the gods or abused their fellow humans must surely have to pay a price (...) In many respects, Christian hell is Hellenistic."
In "Heaven and Hell: A History of the Afterlife” (2020)
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